Navegando Posts publicados em julho, 2012

“O Primeiro Português no Cume do Evereste”

Um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir.
Amyr Klink

Foram muitas as minhas leituras de narrativas concentradas no montanhismo, mormente aquelas referentes à cadeia do Himalaia. Testemunhei sempre o fascínio que as aventuras empreendidas por intrépidos alpinistas causam neste intérprete e atleta amador de corridas de 10km. Muitos os relatos corajosos e trágicos que percorri sempre com grande interesse. Inúmeros livros resenhei ou comentei. A leitura de mais uma história me fez voltar ao tema.

Quando da última viagem a Portugal recebi dos diletos amigos Ana Cristina e Joaquim, ela pianista e ele a ter como hobby a corrida,  um palpitante livro de João Garcia (A Mais Alta Solidão – O Primeiro Português no Cume do Evereste, Lisboa, Caderno, 2006). Meu conhecimento das façanhas de João Garcia era quase nulo. O livro em apreço, ora  na 12ª edição, fez-me compreender mais do que todos os anteriores sobre os problemas vividos por esses visionários. Confesso que iniciei a leitura ainda no voo de regresso ao Brasil e, à medida  que lia as narrativas, pude entender os antagonismos do pensar de um alpinista. A maior parte da literatura específica existente contém uma dose bem grande de ufanismo natural por êxitos obtidos. Os pequenos equívocos, as falhas que têm de ser reparadas, o desalento ficam majoritariamente à parte nos relatos desses heróis e amantes das grandes altitudes, nessa fronteira tênue entre a realização e a auto-destruição. Os limites fronteiriços existem, estão lá, sempre a apontar as únicas possibilidades, exceção à desistência, que se traduzirá ou na depressão ou no estímulo para outro ato visionário.

Para um leigo, seria possível admitir que, mais do que a transmissão triunfalista de um alpinista-narrador, haveria o interesse em acompanhar o sonho que leva ao projeto acalentado e às suas consequências: múltiplas dificuldades encontradas, longo tempo de aclimatação à altitude,  decorrentes mudanças de humor, declínio físico e a inquebrantável vontade de atingir cumes. Sabe-se que o alpinista tem sempre a morte à espreita, seja através do chamado mal da montanha – edemas pulmonar ou cerebral por redução drástica de oxigênio em grandes altitudes – seja por fendas que se  podem abrir nas geleiras, blocos de gelo ou seracs que tombam, ou a fatalidade do abismo. João Garcia consegue, em A Mais Alta Solidão, transmitir ao leitor todas essas vicissitudes de maneira franca, sem subterfúgio e a ter como referências a solidariedade de amigos que permanecem ou que se foram, perdidos nas alturas ou nos abismos.

Atingir o topo do Everest é o sonho de quase todo alpinista. João Garcia focaliza no livro sua tentativa frustrada de atingir o cume do Everest e a dramática conquista posterior, parte de seu ambicioso projeto já realizado. Façanhas absolutamente extraordinárias tem o alpinista português empreendido. Como se não bastasse, João Garcia conquista montanhas acima dos 8.000m sem auxílio de oxigênio suplementar e, como escreve, “ao utilizar oxigênio estamos a enganar a montanha e a nós próprios”. Em post anterior já me referira ao nosso notável alpinista Vítor Negrete (vide “Espírito Livre“, 21/04/12), primeiro brasileiro a subir o Everest sem oxigênio suplementar, mas que, em decorrência, encontraria a morte poucas dezenas de metros na infausta descida.

João Garcia, a fim de fundamentar razões que o levaram a enfrentar o Everest, historia vários acontecimentos, alguns trágico, como o das expedições de 1996, nas quais houve quantidade de mortes. De uma delas há o relato dramático de Jon Krakauer (No Ar Rarefeito), um clássico da literatura sobre o tema. Para seu intento maior, João Garcia se faz acompanhar de seu grande amigo, o alpinista belga Pascal Debrouwer, a quem o livro é dedicado. Pormenores  da estada em Katmandu, a descrição pormenorizada dos costumes da cidade, meca dos escaladores dos altos picos, e a crítica mordaz ao simples turista: “Muitos passeiam uma manhã pelos arredores de Katmandu, vão até umas montanhas de onde se veem alguns picos e dizem que já fizeram um trek”. Percebe-se no esportista português o distanciamento do amadorismo e sua profunda consciência profissional. Durante a permanência no Campo-Base (5.200m) João Garcia descreve suas criações para baratear a escalada. Inventa várias peças, tem o talento para compor uma tenda que seja prática, resistente às intempéries. Tudo é meticulosamente pensado.

Há em João Garcia a vontade de não esconder enganos. Após meses de preparação e duras subidas e descidas aos vários Campos Avançados para aclimatação, Garcia e Debrouwer sentem-se prontos para o ataque ao cume. João Garcia, sem auxílio do oxigênio suplementar, vai à frente. Reconhece erros cometidos. A certa altura abandona em lugar “seguro” a  lanterna presa à testa e, posteriormente, as luvas suplementares. Ao atingir o pico mais alto do planeta durante o dia, tem dúvidas sobre se realmente lá chegara devido às mínimas elevações existentes no local, certificando-se contudo: “Ao fim de um bom bocado acabo por me convencer que o cume era ali. Até porque era o mais sujo. Ironia amarga, não é? O ponto mais alto, mais remoto do mundo, é identificável por estar sujo…”. Deslumbra-se e permanece não os pouquíssimos minutos recomendáveis, mas um tempo muito maior. Exalta a visão magnífica e o estar lá. Confessa que, devido à altitude, “já estou, há que reconhecê-lo, num misto de alucinação e mau funcionamento do cérebro, devido ao ar rarefeito”. Logo após iniciar a descida vê seu amigo Pascal que buscava, sôfrego, atingir o cume. Este insiste junto a Garcia que o acompanhe, pois o português não se deixara fotografar quando no pico. Nova ascensão, novo erro. Nas alturas permanece mais um bom tempo e, ao descer, a noite já se anunciava. Vai à frente novamente, mas sempre a aguardar o amigo. Cochila por vezes devido à exaustão, caminha às escuras, recobra forças e continua a descer. Em determinado instante, confuso, acredita que Pascal deva ter por ele passado. Ledo engano.  Sem a lanterna na testa e sem luvas apropriadas, tem consciência da série de equívocos. “Avançava agarrado às cordas geladas e nesta altura já só usava as luvas de lã, já não tinha as luvas de nylon postas. Tinha as mãos insensíveis e já não havia discernimento para avaliar a gravidade do que estava a fazer, a estupidez que era andar àquela altitude, esgotado e desidratado, apenas com luvas de lã. Foi aí que acabei de gelar as mãos”. Ao ser encontrado por amigos, inquietos pela longa demora, soube que o amigo belga não chegara. Um abismo certamente o tragou. Destino igualmente trágico aconteceria a um membro de expedição polonesa, cuja tenda ficava próxima à de Garcia.  

Saliente-se a clareza do autor ao abordar o esforço despendido por um alpinista  após atingir a zona da morte, assim considerada a marca dos 8.000m, quando, para cada passo, várias aspirações e expirações são realizadas, pois a quantidade de oxigênio nessas circunstâncias é ínfima. Essa situação provoca pensamentos confusos, difícil raciocínio justamente quando mais aguda deveria estar a mente. A longa exposição às baixíssimas temperaturas, a ausência do oxigênio suplementar e das luvas de nylon sobre as de lã resultaram num drama comum que acomete muitos alpinistas de grandes altitudes. A descida é sempre mais temida e foi ainda mais dramática para João Garcia. Saber voltar. Com extrema dificuldade os vários Campos Avançados foram atingidos: C3, C2, C1, o Acampamento Avançado e o Acampamento Base, até a segurança de um hospital. A necrose instalou-se nas extremidades dos membros de  João Garcia, que perderia as pontas de alguns dedos das mãos e dos pés, assim como segmento do nariz. Ficaria internado durante meses.

A intrepidez desse notável alpinista fê-lo reiniciar as escaladas, completando os 14 picos acima dos 8.000m e os sete mais elevados dos continentes. Para quem admira a literatura sobre montanhismo, A mais Alta Solidão é livro recomendado e estaria a evidenciar a presença de João Garcia, um dos mais importantes alpinistas da atualidade.

Comments on the book “A Mais Alta Solidão” (The Highest Solitude), written by the mountain climber João Garcia, the first Portuguese alpinist to reach the summit of Mount Everest without supplementary oxygen in 1999. In this book he recounts this dramatic experience, in which his partner Pascal Debrouwer fell to his death and João himself suffered severe frostbite, having later part of his fingers and nose amputated.

        

Narrativa em Torno do Notável Henry Le Boursicauld

À loucura da peregrinação do meu antigo confrade,
Henry Le Boursicaud, quis eu juntar a minha peregrinação,
de esgarafunchar a história da “herética divinização” dos Papas.
Mas não vejam aqui senão uma crítica amiga.
Luís Guerreiro
(dedicatória manuscrita do autor e amigo no exemplar que nos foi enviado)

Luís Guerreiro é um escritor de convicções fortes.  Bem anteriormente, dediquei um post ao instigante romance Oitavo Dia da Criação (29/06/07). O presente, O Peregrino (Brasília, Ser, 2012), vem comprovar a preocupação maior do autor com os rumos da Igreja Católica Apostólica Romana. Para tanto, descreve com acuidade os passos sofridos do missionário redentorista francês, Henry Le Boursicaud (1920- ), em uma caminhada épica empreendida a pé pelo padre aos 75 anos de idade. Escritos de Le Boursicauld durante o trajeto são entremeados pela interpretação de Guerreiro, a dar movimento à narrativa, numa caracterização em que a veracidade pode ter eflúvios da inventiva do escritor, sem, contudo, fugir à certeza de um fato real.

Henry Le Boursicauld é uma figura notável. Padre da Ordem dos Missionários Redentoristas. À certa altura deixou o abrigo certo do convento e partiu para uma aventura que se prolonga aos nossos dias. Percorreu o mundo, a viver nas comunidades mais carentes, não apenas aquelas dos pobres e desvalidos, mas também a integrada pelos oprimidos, pelas populações desprovidas das necessidades básicas. Inicialmente viveria entre milhares de imigrantes portugueses em Champigny,  perto de Paris. Esteve prolongadamente em alguns dos guetos mais desfavorecidos deste planeta, a desenvolver ações comunitárias. Notáveis suas contribuições junto aos abandonados pelo poder público em Fortaleza e entre os catadores de lixo em São Paulo, assim como a prolongada ação junto aos pigmeus, na África, onde ensinou o plantio de inúmeros vegetais, que corroborariam o sobreviver da etnia africana. Seus livros são o resultado desses apelos interiores e de uma vida cristã realmente dignificada pela ação. E tudo teria acontecido quando recebeu um tapa em reunião de párocos, simplesmente por ter dito que não lhe parecia difícil encontrar a casa da paróquia em pequena localidade, pois esta era preferencialmente a melhor.

Luís Guerreiro, que em Oitavo Dia da Criação ratificava sua posição clara relacionada a alguns desvios da Igreja, e o personagem do livro, Deodato, apreendia o sentimento solidário relacionado àqueles oprimidos pelos poderosos, encontra no exemplo de Henry Le Boursicauld o herói vivo, palpável, admirado, mormente pelo fato de ter sido seu antigo confrade redentorista. Constrói uma história a partir de um feito inédito e excepcional empreendido pelo personagem.

Desiludido com a pompa existente em setores da Igreja e com a falta de dedicação plena aos menos favorecidos, Henry Le Boursicauld empreende uma viagem tida por tantos como um ato de loucura, de sonhador, de visionário. Segue a pé de Paris a Roma, a fim de entregar carta de seu punho e cinco livros do teólogo alemão Berhnard Häring ao Papa João Paulo II. Na missiva,  pede com firmeza uma ação maior voltada aos oprimidos e aos pobres segregados. Fá-lo aos 75 anos e de 18 de Junho a 23 de Setembro de 1995 caminha em direção ao Vaticano. Seriam 97 dias em que sequer pediu carona, pois o trajeto teria de ser completado a pé!!! Apenas aos sábados descansava. Quase sempre recebia acolhida para repouso em casas de moradores ou religiosos das pequenas localidades. Em França e na Itália. Transpôs os Alpes! Nas longas e perigosas subidas pelo acostamento das estradas alpinas, receberia convite de motoristas querendo levá-lo, pois sua peregrinação ganhara manchetes. Recusava sistematicamente. Tantos o têm como um Profeta. Creio que Luís Guerreiro soube captar essa vontade férrea de Le Boursicauld. Nessa epopeia, o missionário redentorista se faz – involuntariamente – acompanhar de um jovem alemão forte e alto que se sentiu impelido a segui-lo: “Henry, dou-te três meses da minha vida”. Guerreiro insere os textos fortes do missionário sobre episódios papais, alternando-os com os seus, colega redentorista, descritivos, romanceados. Essa técnica torna leve a interpretação do cotidiano da longa viagem, a possibilitar que as observações duras escritas pelo padre tornem-se referências aguardadas pelo leitor. Dos diálogos entre Jürgen, o jovem, e o velho missionário, Guerreiro sabe caracterizar a intrepidez do sacerdote nascido na Bretanha. Não por vezes há discordâncias entre os dois peregrinos, mas Guerreiro capta nesse “romance histórico” o lado altruístico do germânico companheiro de Henry e a sua admiração pelas características indomáveis de Le Boursicauld.

Nessa determinação, até certo aspecto visionária, a almejar que sua carta pudesse ser lida pelo Papa João Paulo II, reside o cerne do livro. Mostra-se Le Boursicaud obcecado por mudanças na Igreja, que na realidade pouca guarida poderiam ter por parte das autoridades eclesiásticas. Percebe-se, por parte do padre, uma revolta interior pelos desmandos dos papas, desde os primórdios da Igreja. Tece reflexões a respeito da célebre frase contida nos evangelhos “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. A interpretação, tomada à risca pelos papas, teria sido a responsável por tantas arbitrariedades cometidas por suas ações ao longo da história. Le Boursicaud historia em seus apontamentos o lado trágico e autoritário nessa milenar sucessão de papas. Essa constatação, somada à infalibilidade papal, apenas do Papa, proclamada durante o pontificado de Pio IX no século XIX, à ostentação ainda existente na cúpula da Igreja e à existência de determinado “sistema” elitista arcaico constantiniano (secreto?) a visar ao Poder iriam se chocar com a visão oposta voltada aos abandonados, à miséria, aos oprimidos, razão maior da cruzada apostólica do missionário. Diria que amor sincero e revolta, não ódio, frise-se, fazem-se presentes no transcorrer da obra. Ficaria claro que o amor é a essência na vida do missionário peregrino, mas a revolta estaria a apontar o caminho da denúncia.  Afirmaria Le Boursicauld: “Colossais despesas das viagens do papa pelo mundo endividam as dioceses. Ao mesmo tempo, João Paulo II é obrigado a colar-se aos ricos, por vezes pouco desejáveis. Em Bogotá, antes de sua chegada, retiraram da rua todas as crianças miseráveis, para que ele não as visse, e levantaram anteparas diante dos bairros de lata. O primeiro dos crentes parte dos palácios luxuosos para anunciar a Boa Nova aos pobres! Como se pode compreender isso”? Como afirma Luís Guerreiro, “supostos sucessores de Pedro, houve papas santos, alguns deles mártires. Noutros, Cristo não teria hipotecado a sua confiança”. O padre redentorista bretão teve a fortificá-lo em suas convicções o Abbé Pierre (1912-2007), fundador do Movimento Emaús, motivo maior para que Le Boursicauld fundasse posteriormente a sua comunidade “Emmaüs Liberté”. Influenciou-o e o estimularia posteriormente o ilustre teólogo Bernhard Häring (1912-1998).

A grande decepção de Henry Le Boursicaud, cuja peregrinação durara 97 dias, sempre a andar, e cuja repercussão na mídia antevia bem antecipadamente a sua chegada ao Vaticano, foi a de não ter sido recebido pelo Papa João Paulo II. Entregou sua carta e presentes ao Cardeal Etchegaray. Assim como duas cartas endereçadas ao papa nunca foram respondidas, essa em especial, após essa caminhada épica, também não seria.

O Peregrino é livro polêmico. Li-o com a devida cautela, cônscio da austeridade, probidade e competência teológica do autor e da extraordinária Missão Apostólica de Henry Le Boursicauld, que, às portas de seus 92 anos, foi morar com os mais pobres e oprimidos na favela Vila Velha, em Fortaleza. Ali pretende ficar, até que Deus o receba. Mistérios.

An appreciation of the book “O Peregrino” (The Pilgrim), in which writer Luís Guerreiro recounts, in a mixture of facts and fiction, the epic journey from Paris to Rome undertaken on foot by the Redemptorist Father Henry Le Boursicauld in 1995.

      

 

 

 

Opiniões Contundentes

Como nada entenderam do passado,
nada podem sonhar para o futuro.
Agostinho da Silva

Foram inúmeros os e-mail recebidos a respeito do último post. Os de nossos conterrâneos ratificariam, por vezes com acentos sombrios, a atual situação de nossos aeroportos, enfatizando os preços das passagens internas e das tarifas abusivas, a desorganização e a falta de espaço para os passageiros na hora do check-in, a limpeza pouco eficiente de nossos toilettes, a  insegurança quase que total, entre tantos outros problemas.

Concentrar-me-ei em duas mensagens vindas do Exterior, uma curta, a sintetizar a veracidade; outra reflexiva e com olhar de lince.

Maria Elizabeth Atristain escreve do México:Realmente é um horror o Aeroporto Internacional de São Paulo. O da cidade do México é bonito, limpo e organizado. Infelizmente quando alguém viaja pelo mundo percebe as carências brasileiras… O que será da Copa? Não há estrutura nem bases sólidas para receber a quantidade de estrangeiros que chegará ao Brasil”.

O compositor e pensador francês François Servenière escreve texto sociológico, a observar com isenção o drama do descaso de governo e empresa privada num conluio estranho, a resultar no esquecimento da figura mais importante em todo o processo: o ser humano. Preocupa-se com a imagem que será difundida de nosso país durante e após a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas, imagem hoje em alta nas considerações europeias. Salientemos que é pouco divulgada além-mar a endêmica corrupção no Brasil, mãe incontestável de todas as nossas dificuldades. O desconhecimento de tantos problemas que nos afligem faz com que paire uma visão onírica por parte de muitas mentes esclarecidas do hemisfério norte.  Insiro parte substancial do texto de Servenière, pois o músico por vezes penetra em outras áreas, mas seu pensamento não perde contato com o tema, no caso, os aeroportos brasileiros. Nossa correspondência, trocada semanalmente, já está a atingir 500 páginas!   

“Fiquei chocado ao ler a descrição catastrófica que você fez do Aeroporto de São Paulo e o tempo despendido para a chegada à sua casa após o desembarque. É incompreensível, e você tem razão ao dizer que, nas circunstâncias de eventos mundiais que se aproximam para 2014 e 2016, essa desorganização, com forte dose de um descaso administrativo, corre o risco de custar muito caro se nada for feito para remediá-la. Esse o dilema do mundo capitalista atual, pois uma reputação se faz e se desfaz num simples estalo dos dedos. Não somente o risco do fracasso organizacional desses dois eventos mais populares do mundo (não é certo, mas pode acontecer), mas o fracasso de uma política que leva sempre os investidores do mundo inteiro a duvidar da perenidade de suas aplicações num país incapaz de se organizar. Isso nós verificamos hoje em França… Nossos aeroportos são belos, mas as greves afugentam as pessoas que a eles se dirigem, preferindo os TGV para vir a centros como Paris. O fracasso na organização (primeiramente nas portas do país, os aeroportos) da Copa do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos será um duro golpe para a reputação do Brasil em termos mundiais. O seu artigo é um verdadeiro sinal de alarme. Se é certo que nossa Copa do Mundo de 1998 foi um incrível sucesso quanto a transporte, infraestrutura, recepção, retransmissões televisivas, a equipe local a ganhar o campeonato… espera-se algo semelhante do Brasil em 2014. Deverá ser a maior festa do Football Association jamais organizada, no país do futebol. Torna-se necessário arregaçar as mangas urgentemente para a melhoria dos aeroportos, senão os estádios ficarão muito distantes dos centros e a festa estará estragada.

Na realidade, o seu artigo criou um paradoxo na minha cabeça, aquele que eu chamo o Paradoxo Wall-E. Inicialmente, você professa a admiração pela organização dos aeroportos europeus, no que tem toda razão pela forma e conteúdo, o respeito às pessoas, à organização, mesmo que sob o prisma da forma econômica capitalista. O capitalismo não é um mal, pois cria trabalho para um número grande de pessoas, inventando necessidades sempre novas, serviços e produtos impensáveis anteriormente. O que diriam nossos avós se vivessem hoje? Assim eles próprios deveriam pensar em relação aos antepassados dos séculos XVIII e XIX. O paradoxo de Wall-E é esse: “quanto mais nos dirigimos a um mundo perfeito, portanto com pouco a acrescentar, mais as pessoas estarão entediadas”.

Na verdade, os estudos sociológicos, os testemunhos de viajantes, na terra, no mar, no espaço aéreo (Stevenson, Saint-Exupéry, Théodore Monod, de Monfreid…), falam-nos de um mundo antigo onde a precariedade, a desorganização, os costumes tribais constituem a norma. Eles testemunham e denunciam um mundo ‘ainda’ desorganizado. Foi o material dessa desorganização, como esse de seu aeroporto, que lhes serviu para os relatos e testemunhos, para os romances, ficções e filmes. Num mundo perfeito, haveria a possibilidade de temas para filmes, livros, comentários, artigos? A vida inteira é um risco permanente. O nascimento é um risco. Temos de estar terrivelmente conscientes de que a sociedade moderna é asséptica, socializante e normativa, e tem como meta confessa a supressão do risco. Verificamos que as estradas apresentam maior segurança, o tráfego aéreo é mais confiável, os toilettes dos aeroportos mais limpos, etc… Todavia, os escritores não mais escrevem sobre os aeroportos modernos, a não ser para montar um quadro kafkiano, para descrever o universo organizado, concretado, asséptico, mas transitório e desumano! Se eles querem o exotismo, o fervor, o excitante,  partem para o sudeste asiático, ou Ushuaia ou o interior da Amazônia. Um tema sobre o aeroporto de Roissy (Charles de Gaulle) faz cair os picos de audiência a zero. Um tema sobre os traficantes de ouro entre a Guiana Francesa e o Brasil banhados pelo rio Oiapoque, as escaramuças entre os catadores de ouro brasileiros e os militares franceses é história épica e causa entre nós picos de audiência. O mundo perfeito é, pois, a direção escolhida pelas sociedades modernas social-liberais, mas creia-me, este mundo deve ser entendido com desconfiança, pois deixará cada vez menos espaço ao exotismo e ao risco (compor música e interpretá-la são riscos enormes em termos de vida e de precariedade, os músicos não integrados ao cinema, aos conjuntos orquestrais, ao mundo da educação pública ou privada, ao show business ‘morrem de fome’, da mesma maneira que pintores e escultores que não mais têm os mecenas de antigamente). Será que produzirão obras notáveis quando todos os artistas forem obrigados a descrever um mundo perfeito? Você conhece a resposta como eu. O mundo imaginário da criação alimenta-se da imperfeição e da desordem. A ordem é desejável porque melhora a vida cotidiana, mas a desordem é mágica, pois ela nos dá a nossa dose de aventura. A parábola ilustra bem o destino e a vida de meu pai. Era ele político e farmacêutico, realizado não apenas pelo sucesso de sua empresa, mas também pelo conceito que desfrutava merecidamente como homem público. Contudo, ele se chateava em sua farmácia e encontrava um grande prazer fazendo teatro, momentos em que ele se tornava uma verdadeira criança. As pessoas adoravam vê-lo representando, pois meu pai mostrava-se o homem de duas faces, um personagem janusiano. O homem sério e responsável na vida profissional e política e o clown que entusiasmava o público ao atuar. Na verdade, tudo isso é uma metáfora da vida. Temos a necessidade imperiosa da ordem e da desordem. ‘Ordem e Progresso’, a fim de que o país não se esqueça de que a festa trará desapontamento se não houver uma organização perfeita. Pode parecer paradoxal para um país como o Brasil, que tem as festas mais incríveis do planeta. Sob essa égide, é verdadeiramente o país onde se inventa o futuro do mundo, o país antikafkiano e ‘anticomunista’ por excelência. É necessário fazer de suas qualidades os defeitos e dos seus defeitos as qualidades. O Brasil por sua natureza incrível é livre. Mas não se pode quebrar essa liberdade por uma devastação irresponsável da Amazônia ou pela desordem desmesurada dos aeroportos, dos transportes, ou ainda, pela criação de cidades tentaculares nas quais é difícil viver. Caso haja essa quebra, o mito do Brasil corre o risco de desaparecer no século XXI, pelo menos é o que eu penso, talvez equivocadamente.

Há ainda um espaço até 2014 e 2016 e os brasileiros são trabalhadores e inteligentes. O Maracanã quase pronto! Incrível proeza! O mesmo estádio mítico de outrora, é incrível! É a prova do talento de um povo. Nada resiste ao trabalho!” (tradução: J.E.M.).

The post of last week on Brazilian airports received much feedback. I selected two messages (from Mexico and France) for this week’s post.