O Requinte Sonoro como Fim
Par ailleurs, je me persuade, de plus en plus,
que la musique n’est pas, par son essence,
une chose qui puisse se couler dans une forme rigoureuse et traditionelle.
Elle est de couleurs et de temps rytmés…
Claude Debussy
(Carta ao seu editor e amigo Jacques Durand. Pourville, 3 de Setembro de 1907)
As comemorações relativas ao sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy (Saint-Germain-en-Laye, 22 de Agosto de 1862), apesar de tímidas em nosso país, trazem à pauta um dos maiores compositores da história. A importância de Debussy é incomensurável em toda a decorrência do século XX.
Se em sua formação haveria indícios de certa rebeldia contra métodos de ensino e mesmo à Instituição, seria contudo nas fronteiras dos séculos XIX-XX que, decididamente, Debussy posicionar-se-ia como um compositor preocupado com a qualidade sonora a sobrepor a forma. Não lhe agradando uma primeira versão de Reflets dans l’eau, primeira das peças do primeiro caderno de Images para piano (1904-1905), Debussy, em carta ao seu editor Jacques Durand, escreveria uma frase paradigmática “… resolvi, pois, compor uma outra, sobre dados novos e segundo as mais recentes descobertas da química harmônica…”. Se em tantas missivas o compositor emprega metáforas, a incursão definitiva num processo que estava a ser alimentado desde os últimos anos do século XIX faz-se “oficial”. Considere-se a gestação da extraordinária ópera Pelléas et Mélisande (1902), que duraria 10 anos!!!
Nestes últimos decênios têm surgido métodos analíticos variados, não descartando tabelas numéricas e gráficos, para não mais me alongar, distantes de outras tradicionais. Se enquete fosse feita entre os intérpretes, pouquíssimos consultam esses novos caminhos, por vezes áridos e cerceadores, bem mais frequentados na Academia ou por outros interessados não intérpretes, friso. Mesmo as análises tradicionais, que vigoravam durante a existência do compositor, não lhe causavam impacto. Aliás, o músico francês não gostava de ver suas obras analisadas, segundo o compositor Charles Koechlin (1867-1950). No caso de Debussy, compositor que causaria efeitos inalienáveis na música do século XX, da criação erudita à música de cinema e tantas outras vertentes, a observância de suas mensagens já estaria a apontar desideratos precisos. Confessaria bem tardiamente, em 1915, ao seu amigo Bernardo Molinari, que “… estamos ainda na ‘marche d’harmonie’, e raros aqueles a quem basta a beleza do som”. Essa constatação englobaria um universo criativo outro que, para Debussy, era o fulcro de suas intenções. Buscar a essência essencial e, nesse caminho absoluto, distanciar-se do fulgurante, da explosão sonora tão característica em muitos compositores do romantismo e do século XX, assim como de elucubrações estruturais e formais. A busca sonora implicaria forçosamente a opção clara, contrária ao refletor ofuscante. As baixas intensidades propostas no conjunto de sua obra são testemunhos eloquentes, pois cerca de 80% de sua opera omnia navega entre p e pp; portanto, nas sonoridades seletivas. Essa escolha teria tributos a pagar. Debussy é conhecido majoritariamente por quantidade relativamente pequena de sua obra. Distante de estatísticas quantitativas relativas a de alguns de seus coetâneos, a produção debussyniana é até restrita, mas impecavelmente construída. Dizia o músico francês que escrevia quando sentia a necessidade de fazê-lo.
Se considerei técnicas analíticas erigidas nas últimas décadas, que surgem e tendem por vezes ao mergulho no esquecimento, geralmente “criadas” por não intérpretes, consideraria que três aspectos essenciais sempre deveriam estar à testa no momento desse debruçar sonoro. Salientaria: a agógica (flutuação do andamento), a dinâmica (entre as baixíssimas intensidades e raríssimos fortíssimos) e as acentuações. Outros mais tendem a ser negligenciados no que se refere particularmente à criação pianística: a onipresente mão esquerda, à qual Debussy reserva participação extraordinária, e a ter como indicativo a absoluta preocupação com as acentuações e a dinâmica. Nada passa ao largo quando Debussy escreve a notação da mão esquerda, muitas vezes a buscar a região mais grave do instrumento. Minha mestra, a grande pianista e professora Marguerite Long (1874-1966), intérprete de Debussy e dedicatária de autores como Isaac Albéniz (1860-1909), Gabriel Fauré (1845-1924) e Maurice Ravel (1875-1937), afirmava sempre, ao considerar as obras de Debussy e de Fauré, à nous les basses. Não por outra razão o compositor francês vem a ser o primeiro músico a tudo assinalar, mormente após o início do século XX. A problemática dos andamentos é outra questão relevante. Com preocupação assiste-se hoje, mais acentuadamente, à tendência de “forçar” os andamentos de suas obras, o que provoca, em tese, um gosto para a elevação dinâmica (intensidades). Contrariam esse quesito, assumido por tantos intérpretes, intenções expressas pelo autor não apenas em seus manuscritos musicais, como na sua monumental produção epistolar. O resultado é desastroso, pois a aceleração progressiva tende a colocar as criações debussynianas para piano, principalmente as de andamento vivo, num patamar “virtuosístico” que não apenas descaracteriza determinadas obras, mas à força da repetição provoca uma espécie de modismo com seguidores “fiéis”.
Aspectos concernentes à interpretação mereceriam ser citados. Interessariam mais ao leitor com o conhecimento pianístico. Salientaria a “magia” a ser buscada no emprego dos pedais. O da direita a seguir as flutuações mais tênues, num processo que requer um aprimoramento que deveria ser meta essencial de um pianista. Deve, nessa oscilação, distanciar-se o intérprete do pedal até o fundo, raras vezes a ser utilizado o processo. O da esquerda, una corda, a ter emprego tanto nas baixíssimas intensidades como, em tantas oportunidades, em outras mais elevadas, nessa procura de timbres seletivos. Consideraria ainda a necessidade imperiosa da denominada substituição, quando, sobre determinada tecla já apoiada por um dedo, sem que esta seja “abandonada”, o pianista coloca um outro dedo, a fim de que o legato, um dos segredos da interpretação das obras de Debussy, se concretize. Frise-se que essa prática não estaria apenas no singular, pois, por vezes, pode-se substituir vários dedos sobre teclas já pressionadas. Exemplo típico se encontra em Et la lune descend sur le temple qui fut, segunda peça do segundo caderno de Images.
Tenho insistido em tema que não parece ter o menor interesse entre a maioria dos intérpretes, empresários, sociedades de concerto e público receptor. No que se refere à obra para piano, tocam-se prioritariamente as mesmas composições de Debussy, e algumas como chamarizes para plateias que se identificam com o compositor nesse restrito repertório. Exaustivamente o fato se repete. Nada a fazer. Criações como a maioria das peças avulsas, os 12 Études, La Boîte à Joujoux, como exemplos, passam ao largo. Da Suite Bergamasque, pereniza-se Clair de Lune; dos cadernos de Images, prioriza-se o primeiro, mormente Reflets dans l’eau; dos dois livros de Préludes, que perfazem 24 peças exemplares, alguns apenas são frequentados. Quase sempre os mesmos. Tendo apresentado a integral para piano em quatro recitais, no Brasil e em Portugal, poderia afirmar que Debussy é um dos poucos compositores que não têm obra menor, se bem que seria o próprio autor que consideraria os 12 Études pairando num outro cimo de excelência.
Em todos os gêneros abordados deixaria suas impressões digitais identificadoras do estilo. Nessas marcas, o timbre inusitado, a combinação instrumental, a qualidade sonora… Considere-se ainda a devoção à natureza, não como elemento descritivo, mas como fonte essencial para a sugestão e para o simbólico. Tem-se em muitas de suas obras o divisor absoluto das tendências na composição. Nas inefáveis mélodies para canto e piano, como exemplos, soube escolher os poetas que permaneceram: Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé, Charles Baudelaire, Pierre Louÿs e outros ilustres mais. Sob a égide poética, tantos são os títulos de obras para piano e para orquestra de Debussy com apelo requintado. Cuidava o compositor desse amálgama sonoro poético. Nos Préludes para piano insere os títulos no final de cada peça levando intérprete e ouvinte à sugestão.
A ilustração inserida no post é de autoria da excelente artista búlgara Penka Kazandjiev. Após recital que apresentei em Sófia, na Bulgária, em 1996, Penka inspirou-se em L’Isle Joyeuse de Debussy, uma das obras do programa, e com rara criatividade realizou a bela homenagem em que não falta exaltação a Leonardo da Vinci.
Para o leitor interessado em se aprofundar no tema, sugeriria algumas obras exemplares: Claude Debussy, Monsieur Croche et autres récits, France, Gallimard, 1987, 361 pgs. Tem-se um conjunto de textos críticos do compositor. Claude Debussy Correspondance (1872-1918), Paris, Gallimard, 2005, 2.330 pgs. François Lesure, Claude Debussy, France, Fayard, 2003, 614 pgs. Creio ser a mais importante biografia do compositor. Recomendaria a consulta ao site www.debussy.fr , do Centre de Documentation Claude Debussy, o mais significativo existente. Entre outras publicações, tem o Centro o renomado Cahiers Debussy, publicação anual.
Quanto às gravações, poderá o leitor consultar a ampla discografia de Claude Debussy e terá diante de si uma lista apreciável. A escolha dos intérpretes tende a ser pessoal na maioria dos casos. Dos três CDs que dediquei à obra pianística de Claude Debussy, gravados para o selo De Rode Pomp da Bélgica, um foi reeditado no Brasil – “Doze Estudos para Piano” – pela Clássicos (www.classicos.com.br ).
In this post, a tribute to the seminal French composer Claude Debussy on the occasion we celebrate 150 years since his birth, I comment on some aspects of his works ― in particular pieces for piano ― with focus on issues such as interpretation of indications in the scores, performance and tempo, always bearing in mind that the essence of his creations lies in the use of selective instrumental timbres or, in his own words, the search for the beauty of sound.
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