Missivas Cativantes de Musicista Norte-Americana
Posso afirmar que este livro é um bom livro,
tão bom como Charles Auchester, meu romance preferido,
e espero que ele fará compreender aos jovens que,
para se chegar ao conhecimento pleno de qualquer arte,
há a necessidade de muitos anos de estudo, de esforços e de disciplina.
O poeta H.W. Longfellow (1807-1882) ao editor das cartas,
após ter ouvido a leitura do manuscrito.
A literatura sobre música escrita durante o vasto período romântico tem características específicas. As biografias salientam a presença do herói, os escritos sobre a história apresentam períodos idealizados e as brisas românticas parecem circular em espaços etéreos. Compositores que deixaram larga produção epistolar debruçam-se sobre afetos os mais variados, mudanças de humor, nostalgia e dor. A troca de cartas entre memorialistas natos bem evidencia um universo muito distante de nossa atualidade.
Durante minha formação em Paris, na transição dos anos 1950-1960, um de meus prazeres era buscar nos bouquinistes livros que me pudessem entreter nos momentos de descontração. Obras epistolares me interessavam muito e lembro-me da leitura das cartas de um mestre da língua francesa, Gustave Flaubert (1821-1880), ao seu colega russo, o poeta e escritor Ivan Turgueniev (1818-1883); a riquíssima troca de correspondências entre Wagner e Liszt, entre tantas outras obras do gênero. Aprende-se muito com essas confissões que se metamorfoseiam ao passar para personagens criados, literária e musicalmente. Em uma das investidas, encontrei o livro Music Study in Germany, na tradução francesa de Mme B. Sourdillon do original em inglês, sob o título Lettres d’une Musicienne Américaine (Paris, Dujarric, 1907, 299 pgs.). Interessou-me, li alguns trechos, mas em plena época de estudos pianísticos que chegavam, por vezes, a dez horas diárias, posterguei a leitura para… mais tarde. Chamou-me a atenção àquela época o precioso prefácio do ilustre compositor francês Vincent d’Indy (1851-1931) que, estando na Alemanha para estudos, conhece fortuitamente Amy Fay. Tantas outras literaturas percorridas durante décadas e o livro de Amy Fay acabaria em uma estante, bem ao alto. Há poucos meses, buscando outra obra a fim de fundamentar um texto, encontrei ao fundo de prateleira as cartas de Amy Fay à sua irmã Harriet Melusina Fay (Zina), primeira mulher do ilustre Charles S. Peirce (1839-1914), lógico, filósofo, matemático e também conhecido como o “pai do pragmatismo”.
Se a trajetória de Amy Fay, após a permanência durante anos na Alemanha a partir de 1869, a fim de estudar piano, seria muito profícua não apenas para a didática pianística, mas através de incontáveis passos empreendidos no desiderato de fazer ver à sociedade o relevante papel que a mulher teria de desempenhar, considere-se que a força dessa valorosa musicista teria vindo desses anos a trabalhar seu instrumento com alguns dos maiores mestres do período.
O livro é simplesmente delicioso e traz a cada página traços marcantes das personalidades das figuras ilustres e de estudantes seus colegas, da vida musical em Berlin e Weimar, dos concertos e saraus, dos interiores das casas, dos passeios empreendidos, um deles com sua irmã e Charles Peirce. Diálogos mantidos com músicos relevantes dão a veracidade que pode ser comprovada através de estudos realizados, mormente a partir da segunda metade do século XX, por historiadores e musicólogos.
Foi uma privilegiada ao estudar com mestres como Carl Tausig (1841-1871), Theodor Kullak (1818-1882), Franz Liszt (1811-1886) e Ludwig Deppe (1828-1890). Ao visitar Friedrick Wieck (1785-1873), pai de Clara Schumann, comenta inclusive alguns aspectos ligados à sua didática. Debruça-se sobre cada professor e seus ensinamentos, distingue claramente métodos de ensino, características humanas no trato com alunos, interpretação de notáveis músicos como Joseph Joachim (1831-1907), Clara Schumann (1819-1896), Anton Rubinstein (1829-1894), Hans von Bülow (1830-1894), e capta na essência o perfil psicológico de um compositor que admirava, mas de temperamento complexo, Richard Wagner (1813-1883).
O livro reúne parte considerável da correspondência à irmã, pois as mais íntimas não foram selecionadas por Zina. Não obstante, importa considerar que o panorama pianístico interpretativo e pedagógico, através da qualidade dos personagens, está nitidamente delineado.
Amy Fay, nesses anos germânicos, relata preferencialmente suas impressões musicais como estudante de piano, ouvinte e observadora da vida nas cidades em que esteve. É minuciosa ao olhar para os interiores das casas, dos quartos, dos salões, pois nada lhe passa desapercebido. Sob aspecto outro, tem o gosto pela natureza e por vezes a descreve. Seria contudo no imenso conteúdo verossímil, e não tratado nos muitos compêndios biográficos ou da história da música, que a coletânea de cartas de Amy Fay adquire importância imensa, a apontar para as dezenas de edições nos Estados Unidos, assim como nas várias traduções feitas da obra.
Através do relato de Fay pode-se entender que pouco teria mudado em muitas das práticas didático-musicais. A denominada master class era algo habitual nos cursos oferecidos por Tausig, Kullak e Liszt, como exemplos. Reuniam alunos escolhidos, tutelados ou não, amigos e visitantes. Quanto ao repertório, as Sonatas de Beethoven, obras de Schumann, Chopin e Liszt eram as mais frequentadas. A missivista citou a irritação de Liszt quando uma aluna apresentou-lhe o Scherzo em si bemol menor de Chopin, pois, apesar da grande amizade e admiração que manteve com o compositor polonês, já estaria cansado de ouvir a conhecida obra. Em relação à mesmice repertorial, Amy Fay cita aquele que mais lhe transmitiu ensinamentos técnico-pianísticos, Ludwig Deppe, que também foi regente, diretor da Ópera Real e professor de piano da Imperatriz da Alemanha. Uma aluna apresentou ao maestro o Concerto para piano e orquestra nº 5 de Beethoven. Comenta a missivista “Ela havia preparado o grande concerto em mi bemol de Beethoven, que todos tocam aqui. Deppe sentiu, ao ouvi-la, o mesmo enfado e dificuldades que Liszt no que se refere ao scherzo em si bemol de Chopin. ‘Pobres regentes somos nós!’ diz ele, continuarão os artistas a nos trazer sempre o concerto em mi bemol de Beethoven? … Hoje todo mundo quer o grande repertório. A grande torrente rápida está na moda, mas quem pode simbolizar no seu toque o riacho e suas ondulações e as rugas graciosas nesse oscilar delicado! Ninguém mais destina sua interpretação a essas bonitas passagens”. Amy Fay ainda observa: “Contudo, o professr Deppe escutou pacientemente, pela milésima vez, o concerto em mi bemol que a jovem Steiniger apresentou”. O leitor poderá observar que a repetição repertorial, que reiteradamente tenho criticado, não é prática recente, mas tendência que se prolonga por bem mais de dois séculos!
Para um músico, sobretudo pianista, o conjunto epistolar de Amy Fay, escrito na Alemanha durante os anos de estudos, revela as tipicidades ainda existentes na transmissão professor aluno, quando em nível elevado. Tausig, jovem, impetuoso e pianista destacado, é apresentado com características pedagógicas a depender de provável “ciclotimia”. Kullak, autor de tantos métodos de piano, mormente os estudos de oitavas, surge como mestre capaz de solucionar os problemas do aluno através do exemplo em sala de aula. Liszt, generoso, atencioso, mas a atentar para as grandes linhas de uma obra, tem a aura do demiurgo. Seria contudo Deppe o professor que, sur le tard, propiciaria o trabalho técnico-pianístico laboratorial que se fazia necessário. Amy Fay teve não só de refazer desde exercícios e estudos que são a base do aprendizado de todo pianista, como, a partir de observação arguta, transmiti-los por escrito à sua irmã. Basicamente, a técnica dos cinco dedos apreendendo na abrangência escalas, arpejos, acordes, assim como a posição correta das mãos, articulação, relaxamento para a melhor execução e pedal representariam um regresso aos “princípios”, após ter trabalhado com mestres excelsos. Em nenhum instante se insurge contra o fato, apenas lamenta não ter iniciado o seu aperfeiçoamento na Alemanha pela orientação de Deppe. Considere-se que esses princípios fundamentais de Deppe são ainda muitíssimo válidos.
Se o livro é riquíssimo nessas observações que passam ao largo dos tratados de história ou das biografias, pois vivenciadas por observadora sensível e atenta, não descartemos determinados tópicos de humor. Escreve Amy Fay na carta enviada à irmã da cidade de Weimar no dia 24 de Julho de 1873: “Segunda-feira tive um dos mais agradáveis tête à tête com Liszt, motivado pelo acaso. Tive a oportunidade de ir ao seu encontro e, coisa estranha, ele estava só, ocupado na escrita. Insistiu para que ficasse alguns instantes e tivemos uma conversa alegre e descontraída. Era a primeira vez que eu conseguia conversar realmente com Liszt. Ele estava bem espirituoso. Falamos da faculdade da mímica e ele contou-me uma anedota bem divertida sobre Chopin. Disse-me que, quando jovem, alguém revelara-lhe que Chopin tinha um dom de imitar personagens. Pediu, pois, que o amigo viesse à sua casa evidenciar essa habilidade. Certo dia Chopin o visita, coloca uma peruca loira e se veste com a indumentária de Liszt. ‘Eu era bem loiro nessa época, disse Liszt. Tendo um de meus amigos chegado, Chopin foi ao seu encontro a imitar de maneira tão perfeita a minha voz que o visitante, acreditando dirigir-se a mim, marcou um encontro para o dia seguinte. E eu estava no quarto. Não é extraordinário?’, completou”.
Quantas não foram as trocas de cartas entre estudantes fora de seus lares com familiares? Quantas obras não ficaram no ostracismo o mais abissal? Várias foram as confluências que levaram Music Study in Germany à grande difusão. Primeiramente, deve-se à irmã da autora, Harriet Melusina Fay, a edição, em 1880, da correspondência epistolar selecionada. Outros fatores, como as qualidades de observação e redação de Amy Fay; os seis anos na Alemanha, um dos centros referencias para a música na Europa; conseguir ser aceita em classes de professores de primeiríssima linha e que permaneceram na história da música, como Liszt e Tausig na performance e Kullak e Deppe na didática; haver conhecido Wagner, Hans von Bülow, Joachim, Clara Schumann, Anton Rubinstein e tantos outros e deles traçar perfis acentuados; comentar recitais e concertos; narrar interiores das casas e a culinária típica; discernir costumes e o pulsar das cidades por onde passou; interpretar coleguismo e outros pormenores vistos e assimilados fazem da obra em apreço, lida por mim na tradução francesa publicada em 1907, uma narrativa real. Seus personagens flutuam desde então na imensa bibliografia sobre música, sempre in progress. Verdadeiro deleite para o leitor. O livro pode ser encontrado através da internet nos sites especializados, pois continua a ser editado na língua inglesa.
My comments on the book “Music Study in Germany”, written by the American pianist Amy Fay, in which – through letters written to her sister – she gives a vivid account of her music studies abroad from 1869 to 1875. The volume has had countless reissues and it can be explained by the fact that Amy Fay studied with la crème de la crème of those days: Franz Liszt, Theodor Kullak, Carl Tausig, Ludwig Deppe. She also went to concerts of celebrated musicians of the time, like Wagner, Anton Rubinstein, Clara Schumann. Observant, she offers little known details of her teachers’ methods and personalities, impressions of her concert-going experiences and of German customs and manners. A delightful detailed portrait of an era with an endless stream of luminaries, highly recommended for classical music enthusiasts.