Comentários que Enriquecem o Conhecimento
Documentos concernentes aos construtores das catedrais não faltam;
contudo, há problemas e lendas
que tornam ainda obscuras determinadas verdades históricas:
lenda das corporações, dos segredos, do trabalho voluntário, dos monjes construtores…
Jean Gimpel (Les Batisseurs de Cathédrales)
O post sobre Notre-Dame de Paris deixou inúmeros leitores admirados com os eventos que cercam a possivelmente mais conhecida Catedral de todo mundo e um dos pontos turísticos referenciais do planeta. Buscava o texto expressar fundamentalmente, frise-se, aqueles momentos de intensa manifestação de fé cristã para tantos e a curiosidade de outros mais frente ao inusitado acontecimento da chegada dos Sinos na Catedral de Notre-Dame. Não estava em causa no post do último dia nove, saliento novamente, pormenorizar-me em essencialidades que justificariam aprofundamentos, não apenas pelo caráter do evento como também pela exiguidade do espaço a que me proponho semanalmente para o convívio com os leitores. Aqueles que manifestaram a alegria pelo que se estava a viver nos dias mencionados fizeram-no com acuidade. Selecionei três mensagens, uma do dileto amigo Antoine Robert, mencionado no post em questão, e outros dois de músicos competentes que, sob olhares diferenciados, deixaram testemunhos que enriquecem o presente blog. Nesses dois últimos, ratifico, abrem-se as portas para estudos pormenorizados daqueles que assim o desejarem. O professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e o compositor e pensador François Servenière têm, pois, a pena que substancia suas posições.
Antoine Robert comenta de Paris:
“Ontem à noite a televisão divulgou longa reportagem sobre os 850 anos da construção de Notre-Dame. Uma parte da emissão foi consagrada aos novos sinos. A seguir, apresentaram uma sequência de observações sobre as fundições de Villedieu les Poêles. E quem você pensa que foi interrogado para explicar todo o trabalho realizado? Stéphane Mouton, um dos técnicos especializados com quem conversamos longamente naquele café perto da catedral. Fiquei emocionado ao revê-lo naquela entrevista, como se ele fosse um velho amigo. Sempre preciso em seus comentários, via-se que estava visivelmente feliz ao transmitir aos telespectadores os seus conhecimentos. Após, assistimos à partida dos sinos para Paris, sua passagem pelos Champs-Elysées e chegada em frente a Notre-Dame. As últimas imagens mostravam-nos exatamente como os vimos”. (tradução: JEM).
Pedrosa Cardoso escreve de Portugal:
“Quando visito a histórica Catedral, muito para além da sumptuosidade da linhas, das ogivas e das cores, o que sempre me entusiasma naquele ambiente é o espectáculo imaginado da música que historicamente nasceu com a própria construção daquele espaço, com a superação da simples monodia gregoriana pela contrução da admirável polifonia da chamada ‘Escola de Nôtre-Dame’, os quadrupla, tão absolutamente originais para a época. De facto, os graduais Viderunt omnes ou Sederunt príncipes (www.youtube.com/watch?v=FvJ6xl3l1ek ) de Pérotin, consagrando o cantus firmus tradicional (com a longuíssima pedal, qual bordão lembrado no sino maior por si evocado), levantaram uma nova sonoridade vertical a 4 vozes, nas quais já despontam sinais do contraponto, que tão longe chegaria na música ocidental, só comparável à das majestosas ogivas e cores dos seus vitrais. Pérotin (1160-1230) , mais que o seu mestre Léonin (1135-1201), teve a genial inspiração de inaugurar na música o que se estava a inaugurar na arquitectura, construindo obras tão revolucionárias para a História da Música como seriam quatro séculos depois (casando com altíssima inteligência a prima com a seconda prattica na salvaguarda de tradição e modernidade) os salmos igualmente magníficos de l vespro della Beata Vergine de Monteverdi (1567-1643). Da grande Catedral o post evoca os seus sinos, afinal também instrumentos de música, historicamente, penso eu, mais humildes do que o espectáculo gerado pela música litúrgica de Notre-Dame de finais do século XII e princípios do XIII”.
De Blangy-le Chatêau, François Servenière historia:
“Li seu artigo desta manhã e o achei-o de muito interesse, pois é um dos temas que me apaixona há muito tempo, as catedrais francesas. Foi uma vasta literatura percorrida sobre elas, a magia da súbita construção (em menos de 150 anos em toda a Europa), ligada ao retorno dos templários e à posse secreta (?) da Arca da Aliança e do ‘bastão’ de Aron’, descobertos no túmulo do Santo Sepulcro… Ainda hoje, as ordens maçônicas descendentes dos templários aqui mantêm uma espécie de fluxo artístico sobre esses aspectos mágicos das catedrais. Podem-se ler livros e mais livros sobre o assunto e a verdade apresenta-se sempre mais obscura. Riqueza dos templários e realeza francesa estão intimamente ligadas, assim como a França e a história das catedrais fazem parte da nossa civilização européia. O tesouro do Vaticano conserva certos segredos que não serão jamais revelados! Malgrado os romances de antecipação, como o Código Da Vinci, que desenvolve teses não comprovadas, mas embaraçosas! O Vaticano não diz constantemente que a França é a ‘filha mais velha da igreja’? O que esconderia essa expressão? Que herança a França possui? Seria uma herança de monumentos? Do espírito? É pouco provável. Herança em tesouros da antiguidade cristã? Que dívida tem a igreja em relação à França nesses tesouros escondidos? Lá ao sul, em Roma, não há prescrição de 50 anos para segredos de Estado guardados na Biblioteca do Vaticano, pois depositados ad eternum, salvo invasões bárbaras vindas de regiões que professam crenças únicas e fanatizadas e que, nesse caso, colocariam por terra os símbolos da identidade cristã na Europa. A verdade, talvez, seja muito mais simples do que tudo o que está escrito. Todavia, ela apagaria a magia, e a ausência da magia gera a ausência de ‘dízimos’ próprios dos cultos e das visitas, onde se inclui Notre-Dame de Paris, assim como todos os lugares de culto na Europa, ou seja, o mecanismo mercantil necessário à sobrevivência. Apesar dos recursos financeiros do turismo cristão para a manutenção desses monumentos, há nessas construções aspectos mágicos ligados à acústica, ao gênio inventivo do abade Suger, que foi mestre de obras em Saint-Denis, mas que também influencia toda a Arte da França, ou seja, a Arte Gótica. Ficou essa arte maior e incrivelmente perene; permaneceu a qualidade do labor de artesões dos quais são descendentes os Compagnons du Tour de France e os Compagnons du Devoir - confrarias profissionais oriundas de tantas outras, artesanais, que construíram catedrais e igrejas – companheirismo que eu reivindico também na minha formação intelectual e artística, pois ela estabelece a arte profunda, preciosa e elitista de nosso país como um todo, como se gerações sucessivas tivessem transmitido essa noção de exigência e de excelência através dos tempos. É a evidência, bem entendido! Considere-se toda uma ideologia dos últimos cem anos para a qual a igualdade é fundamento – na realidade, jamais almejada pelos detentores do poder – que in facto nunca existiu desde a aurora dos tempos, mas considera o trabalho uma condição de escravidão. Trabalho esse entendido pelos descendentes filosóficos das catedrais como arte sagrada da vida. Compreenda-se que liberalismo e capitalismo são consubstanciais ao espírito das catedrais. Haveria condições de construir tais edifícios sem a liberdade individual e sem o capitalismo? Por acaso foram os escravos que construíram tais obras-primas? Não, foram homens livres, evidentemente, vindos de toda a Europa para participar dessa obra excepcional que estava a nascer. Havia trabalho para todos esses cidadãos e cada um sonhava poder participar, trabalhando e dando o melhor de suas capacidades. A história, sim, a história relata que eles eram bem pagos. Eu não ouso sequer estimar o capital necessário disponível para a construção dessas catedrais e igrejas jamais igualadas na perfeição arquitetônica.
As catedrais têm esse aspecto maravilhoso. Nelas adentrar é tecer reflexões sobre o período, a história, o passado, o presente. É talvez o único lugar, hoje, onde podemos permitir-nos a reflexão sobre todos os conceitos acima, além de nosso entendimento e que ocultam nossos pragmatismos e obrigações cotidianas aqui na Terra. Frequentemente vamos às Basílicas de Lisieux e de Sainte-Cathérine, em Honfleur, por esses motivos transcendentais. Para sair de nosso tempo presente tão forte e inquisidor. Partilho de sua emoção à chegada dos sinos de Villedieu-les-Poëlles, que eu conheço muito bem, assim como o fabricante, que visitei várias vezes.
Incrível história das catedrais, de suas raízes, de sua descendência! Mundo real, histórico, humano e esotérico se amalgamam permanentemente. Magia, pedras, feitiçaria, crenças, recolha… Toda essa argamassa secular da qual, infelizmente, nunca conheceremos todos os ingredientes”. (tradução: JEM)
Agradeço aos dois ilustres especialistas, que tão bem esclarecem aspectos pontuais que enriquecem os espaços do presente post. Quanto a Antoine Robert, ele é partícipe de uma amizade que remonta ao ano de 1960.
My post on the bells of Notre Dame cathedral received much feedback. This week’s post is a selection of messages I received on the subject: one is about the bells and how they became news on the French television; a second tells us of composers and musical experiments of the Notre Dame School of Polyphony ; the last one is about the workforce involved in building cathedrals in the Middle Ages and the secrets of the Catholic Church.
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