Navegando Posts publicados em março, 2013

 

“Rôle et Responsabilités de l’interprète aujourd’hui”

Fazer justiça a uma obra,
é também conjugar  sua compreensão e liberação de suas forças.
Só uma disciplina englobando a leitura justa,
assimilação paciente, gesto circunstanciado,
pode dar ao intérprete a liberdade e permitir-lhe insuflar vida à obra
- canalizando envolvimento emocional, intelectual, energético,
sem aos quais, mesmo uma obra prima permaneceria letra morta.
Pierre-Laurent Aimard

A interpretação musical foi tema de muitos posts nestes últimos seis anos. Em sendo o elo intermediário da criação-interpretação-recepção, fica reservada ao executante a difícil tarefa da decodificação da escrita musical contida na partitura e transmissão da maneira a mais autêntica e digna. Nesse desiderato, literatura foi escrita por historiadores, musicógrafos e intérpretes ao longo do tempo, mormente a partir do século XX, quando determinados instrumentos, eleitos como solistas, e mais conjuntos orquestrais e corais, tendo à frente um regente, passaram a despertar interesses precisos.

Como sempre faço, a cada viagem ao Exterior não deixo de buscar literatura musical e de outras áreas. Percorrendo prateleira reservada a Debussy em livraria especializada, encontrei um pequeno livro que me interessou de imediato. A leitura apenas ratificou minha primeira boa impressão.

Pierre-Laurent Aimard é pianista renomado internacionalmente. Seu vasto repertório e sólida discografia estendem-se de J.S. Bach à música contemporânea, mormente a mais ventilada entre os adeptos.  Admitido no tradicional Collège de France, Instituição fundada em 1530, Aimard seria responsável pela cátedra de criação artística nos anos 2008-2009. A aula inaugural do músico seria publicada e tem profundo interesse, pois a abordar problemas tangíveis não apenas da interpretação, como repertório, cultura, apresentação pública, gravação, recepção (Pierre-Laurent Aimard. Rôle et responsabilités de l’interprète Aujour’hui. France, Collège de France/Fayard, 2009, 46 pgs.).

Apesar de destinada aos intérpretes, preferencialmente pianistas, a aula inaugural evidencia posições claras do autor, que incluem rigor repertorial, fidelidade à partitura, compromisso com a música presente e preocupação com tendências que proliferam.

A respeito do intérprete que navega em mares imensos, do barroco à contemporaneidade, o autor classifica-o como arqueólogo e explorador e é nesses vastos espaços que Aimard busca realizar suas buscas repertoriais. Sob outra égide, entende que o executante infesso, que encontra no amplo leque histórico o seu repertório, corre o risco de não se aprofundar, pois o todo necessitaria de tempo. Superespecialização e ecletismo desmesurado podem, assim, ser  obstáculos ao pleno desenvolvimento do intérprete. Este teria de ser o homem de intuição, de estudo e de transmissão que atuará no palco, no estúdio de gravação ou na pedagogia “num universo em mutação extremamente rápida”,  afirma Aimard. Tem consciência da prevalência massacrante do repertório consagrado e mais antigo frente ao contemporâneo dos últimos decênios. Observa que, se a interpretação tende a impecabilidade, sob outra égide é hoje menos inspirada.

O discurso de Aimard, ao referir-se à contemporaneidade, poderia conter determinado paradoxismo. Entende, como Serge Nigg (vide post  Serge Nigg “Captar o passado, apreender o presente, pressentir o futuro”, 04/03/2011), que quantidade de compositores na atualidade, independentes e  individualistas, “pensa ir mais longe do que nunca, sem que sintamos  efeitos na própria criação”. Nigg argumenta que só se deparava com compositores, pois “todos” almejavam esse patamar. Aimard comenta que os “criadores de peso do século XXI são os mesmos do século precedente”. Independentemente do repertório visitado pelo pianista, que se estende de J.S.Bach à música dos últimos cem anos, constata-se em sua discografia a atração preferencial por Debussy, Stravinsky, Messiaen, Berg, Bartok, Ligeti, Marco Stroppa, Elliott Carter,  sem contar suas  performances de obras de Boulez e Stockhausen. A guardar as precauções devidas, não estaríamos diante de uma “reiteração” repertorial movida pelo interesse de grandes gravadoras, no caso, que buscam nomes mais divulgados da música dos últimos decênios? Aquilo que Aimard nomeia, entre determinados criadores da música da atualidade, como “território que é ocupado por músicas comerciais ou revisionistas”, não seria a crítica às tendências não comprometidas com aquelas que são hoje consagradas e que têm seus profetas que se fazem ouvir pelos acólitos? Pierre Boulez não se teria pronunciado sobre a importância da ligação do músico à Instituição? Não estaria esta a financiar ad eternum, de preferência, friso, nomes consagrados na Europa e alhures? A mídia a dar guarida às obras musicais e o pensar incisivo desses compositores não influenciaria o todo? O certo, hélas, é que se de um lado temos “legião de jovens compositores”, grande parte sem ideias coerentes, há um número qualitativo de valores reais, jovens e nem tanto, que não conseguem penetrar num círculo fechado já sedimentado. Pareceria – a partir da discografia valiosa de Aimard – que o pianista de excelência especializou-se nesse compartimento sacralizado contemporâneo de grande importância, mas não o único, pois há outros compositores que não têm suas obras mais divulgadas, mas que mereceriam tal espaço. A pergunta de Aimard sobre o lugar reservado à  criação dos intérpretes  - para a obra contemporânea consagrada, mais precisamente  -  está a merecer, de há muito, que o leque se abra de vez, com o apoio de mídia e… gravadoras.  Subjetivamente ou não, o peso dos notáveis sobrepõem-se à realidade existente. A menção de Aimard a Elliott Carter (1908-2012) não estaria a expor o sacralizado: “não é flagrante, para citar apenas um caso, que o maior compositor americano vivo seja um dos mais europeus, e que esse criador centenário nos surpreenda por sua vitalidade criativa e seu frescor, preferencialmente a tantos jovens lobos”?

Cônscio da pluralidade de estilos composicionais do barroco aos nossos dias, Aimard entende determinadas proximidades interpretativas, no caso de Haydn idoso, Mozart e Beethoven, este na juventude. Contudo “uma das atribuições do intérprete é a caracterização das diferentes maneiras de agir para fazer jus à originalidade de cada compositor no seio de um mesmo estilo. No coração de nossa Torre de Babel, ao contrário, o intérprete é levado a descobrir constantemente estéticas e técnicas novas; torna-se um linguista experimentador… e poliglota”, afirma.

Aimard faz duras críticas à educação superior, na qual o Sistema de ensino permanece basicamente o mesmo desde o final do século XIX para instrumentos como piano, violino e canto, tomados como exemplos. Vê com preocupação os holofotes projetados sobre jovens não suficientemente maduros e o mal que o fato acarreta. Todo um sistema a dar guarida sempre aos “novos talentos” criaria situações que desestabilizam precocidades, pois substituídas logo após por nova leva de candidatos ao estrelismo. Creio que poderíamos acrescentar os concursos nacionais e internacionais, principalmente para os instrumentos mencionados por Aimard, quando meteoros tendem a desaparecer, tantas vezes para sempre, mercê do desvio sistemático do foco de luz.    

Sobre a popularização da música clássica, entende com reservas essa ascensão. O que poderia servir de alerta residiria na maneira de ela ser configurada para atender as massas: “Quando esse fenômeno se produz no coração do sistema, sem que distinção seja feita entre divertimento populista e música com outras exigências, o risco de confusão é grande”. A assertiva viria ao encontro de manifestações, que têm se acentuado atualmente, de uma mescla da chamada música clássica com várias tendências populares de intensa divulgação. Tem-se o simulacro da primeira e apenas mais uma aparição de gênero que preferencialmente, esse sim, faz concessão ao se acoplar ao erudito.

Preocupa-se Aimard com a montagem dos repertórios, que não se deve basear na cópia de modelos tradicionais que não atenderiam à atualidade multicultural. Afirma “O repertório de cada intérprete é o reflexo artístico de suas convicções profundas. Essa teia de obras é uma manifestação da sua identidade (diga-me o que tocas e eu te direi quem és), mas também o resultado de seu olhar crítico sobre o estado do mundo musical – carências a contrabalançar, atos pedagógicos… “. O contexto seria fundamental para a apresentação de uma obra e a montagem de um programa deveria atender a vários atributos nesse desiderato. Entende Aimard que “o mais nobre de um intérprete é aquele de servir aos criadores de seu tempo”. Elenca as dificuldades nessa missão, como a relacionada a  uma obra recém-composta quando fica destinado ao executante “dormir três curtas vezes por semana se o concerto estiver próximo”. Outro quesito colocado pelo pianista é aquele relacionado à importância do estudo de uma obra contemporânea com o próprio autor. Acredito ser esse um compartimento fundamental – quando possível, é claro. Se a obra tem valor, a tradição passará a ter seu curso. Insiste Pierre-Laurent Aimard na diferenciação estilística que deve ser respeitada e menciona Debussy e Ravel, que merecem tratamentos distintos.

Aimard vê com simpatia compositores atuais que tentam explicar suas criações. Lembraria o ilustre compositor cubano-norte-americano Aurelio de La Vega, que, em entrevista a mim concedida  (Aurelio de La Vega – Os musicólogos têm pouca visão. In: “Cultura” de “O Estado de São Paulo”, 18/05/1986) dizia que tantas vezes a “bula” é bem mais extensa do que a obra, o que entendia como um equívoco. Aimard compreende, entretanto, fundamental esse trabalho testemunhal, pois ajuda o intérprete a melhor captar as mensagens de um criador.

Um dos aspectos fulcrais da música é a pedagogia e Aimard dela não descuida em seu acurado texto. Aponta para a necessidade de o professor ser honesto, sem fugir das reais capacidades de um aluno, desaconselhando-o a seguir a trajetória musical, se for o caso. Compreende indispensável a transmissão dos muitos estilos através da história, mormente as várias tendências da música contemporânea, mas vê com preocupação “a resistência por vezes tenaz de certas mentalidades”.

Aimard entende a importância da tecnologia e a utilização de meios proporcionados pela internet.  A possibilidade de “estar presente” a tantos eventos ligados à atividade musical, como gravações de toda sorte, aulas, cursos, documentários, traz ao ouvinte e ao aprendiz o conhecimento imediato, a transpor geografias.

Pormenoriza-se no intérprete e na necessidade imperiosa de ele ser “proteiforme  e agir  sobre diversos fronts: criação, pesquisa e releitura do repertório, pedagogia diversificada, trabalho sobre diferentes suportes, etc.” Acrescenta que, sobretudo, deve ele ser “o conteúdo que dita a ação, e não a função social que aprisiona o conteúdo”. Para tanto, o conhecimento abrangente dos gêneros praticados por um compositor apenas enriquecerá a interpretação. Sob outra égide, deve o intérprete ter consciência da “transposição” ao apreender que obras, mormente as do passado, foram concebidas para instrumentos e espaços outros. Todo uma apreensão histórica e contextual não pode ser negligenciada.

Nessa temática, Aimard entende que “parte considerável da obra cravística  executada ao piano revela-se inoperante, ou inaceitável”. Lembro-me sempre da frase do ilustre musicólogo François Lesure, que ao referir-se à obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada ao piano, escrevia que “o que importa não é o instrumento, mas a qualidade do intérprete”. Não poderia parecer subjetivo, talvez paradoxal, que essa “parte considerável da obra cravística ao piano” tenha por parte de Pierre-Laurent Aimard a aplicação do livre-arbítrio quanto à escolha, pois gravaria ao piano A Arte da Fuga de J.S.Bach. Há controvérsias quanto à destinação dessa obra-prima do Kantor: para cravo ou sem especificação definida?  Critérios de escolha.

Rôle et responsabilités de l’interprète aujourd’hui  revela-se da maior importância, apesar das poucas páginas, pois se trata da tradução de um acúmulo de conhecimentos concentrados por um músico na acepção em rara obra pedagógica.

When admitted to the Collège de France in 2008, the remarkable pianist Pierre-Laurent Aimard gave an Inaugural Class that was turned into a book. This post is about this book, which I believe addresses issues of great interest for any interpreter of classical music.

 

     

Temas que Fazem Pensar

 A inflação é o mais poderoso instrumento de transferência de renda
dos que trabalham para os que exploram o capital.
Tancredo Neves

Então, como em surdina,
se ouviu um grande coral
que parecia do céu:
os que ensinarem a muitos,
ou a um só,
os caminhos da justiça, da ciência
e caridade,
Brincarão como estrelas em perpétua
Eternidade…
Dom Fr. Henrique Golland Trindade, O.F.M. (1997-1974)

Luca sempre surpreende. Estávamos a tomar café em tarde chuvosa quando vem a pergunta sobre diferenças de custo de vida entre Brasil e França. Lera sobre a grave crise que assola a país europeu e a queda vertiginosa da popularidade do Presidente francês François Hollande. Curiosamente, ao regressar à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, em meados de Fevereiro, pensei  no tema, pois apesar do momento atual em França, diferenças há nos custos nos dois países que nos devem preocupar sensivelmente. O temor maior vem de uma espiral  ascendente nos preços do cotidiano aqui nos trópicos, que no mínimo deveria servir de alerta. Sob outro aspecto, alguns desses preços estão em patamar completamente fora da realidade, hoje, de França e Bélgica, como exemplos.

Como estivemos hospedados em Paris no apartamento independente de diletos amigos, minha mulher e eu em várias oportunidades íamos a um supermercado bem parecido com os de São Paulo. Produtos expostos de maneira organizada e certamente uma variedade maior de alimentos e bebidas. A impressão nítida que tínhamos era a de entrar em um estabelecimento com os preços 20, 30 ou mais %  em conta daqueles encontráveis em nossa cidade. Leite, pão, manteiga, bem abaixo dos nossos. Um pacote a conter 10 salsichas ao preço do equivalente a três reais, quando aqui chega aos sete; 30 ovos a nove reais, quando uma dúzia em São Paulo está a sete em supermercado bem conhecido.  Alguns exemplos chegam a ser chocantes. Na seção de vinhos estavam expostos alguns chilenos bem conhecidos entre nós ao preço de seis a sete euros (R$ 16 ou 18), quando nos nossos estabelecimentos eles atingem  cifras que variam de 34 a 45 reais!!! Verdadeira e preocupante distorção!!! Todo um continente e mais o Atlântico a serem transpostos e a diferença absurda de preços faz-nos pensar em algo que não está a funcionar bem em nosso país. No compartimento de queijos, alguns dos mais conhecidos entre as centenas deles, como Camembert, Roquefort, Saint-Nectaire, Pont l’Evêque, Chèvre, Bleu d’Auvergne e tantos outros, muitíssimo mais baratos do que as poucas variedades, de qualidade bem inferior, produzidas no Brasil. O mesmo em relação às massas já prontas para microondas. Nesse caso também, relação abissal. No caminho das diferenças, outdoors anunciavam carros que se vendem também no Brasil. Sem comentários. Uma rede de hotéis mundialmente conhecida oferece preço de diária para duas pessoas na região da Ópera de Paris – um dos centros mais conhecidos da Europa -, mais acessível daquele apresentado em São Paulo. O leitor atento deve-se lembrar que, durante a Rio20, muitos executivos e figuras ligadas aos governos desistiram de vir à “cidade maravilhosa” mercê dessas diferenças que, àquela altura, eram astronômicas. Disparidades constrangedoras, evidenciando que algo soturno está a acontecer no Brasil e assistido passivamente. Se considerado for que o salário mínimo em França é cerca de cinco vezes o nosso, algo está a acontecer. Corrobora a condição da oferta e da procura sem que o fator humano essencial seja considerado. Estou a me lembrar de conversa que mantive com amigo, dono de restaurante de minha cidade bairro que costumávamos frequentar. Em poucos meses os preços galoparam. Encontrei-o e, a sorrir, suas palavras esclarecem muito. Perguntou-me a razão de nosso afastamento. Cordialmente respondi que os preços de seu bom restaurante deslancharam. Afirmou-me que nada podia fazer, pois todos os seus concorrentes estavam procedendo a aumentos que ele mesmo considerava exagerados, mas que a afluência de clientes não diminuiu. Nada a fazer, pois essa escalada em quase todas as áreas, inclusive a de serviços e as praticadas por profissionais liberais, aponta para perigoso caminho inflacionário. Há falta de bom senso, certamente. Economistas salientam diariamente pelos meios de comunicação que o custo Brasil é preocupante. É-o na realidade e devemos estar atentos, pois o discurso oficial caminha num sentido totalmente oposto. Conseguiremos suportar tais diferenças durante quanto tempo? Não por outro motivo milhares de brasileiros preferem passar as férias no Exterior, onde os preços estão bem abaixo dos nossos. Há a preocupação em desburocratizar o país? A corrupção continuará endêmica nessa relação tantas vezes estranha entre Estado e empresas privadas? Nossos três Poderes continuarão a aumentar bem acima da inflação seus polpudos salários? A real diminuição de impostos e de servidores se concretizará?  Somente através de um saneamento drástico poderemos ter alguma esperança. Realmente, continuo pessimista e nenhum sinal é apresentado para que possa – é sempre um almejo – alterar minha posição.

Um outro tema que Luca e eu discutimos tem a ver com a eleição do Papa Francisco. Luca comentou a situação sombria do mundo atual e a tarefa gigantesca que o Papa eleito terá pela frente. O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, escolhido no conclave, tem currículo que o recomenda. Para a América Latina a escolha reveste-se de significado transcendente, apesar de o Papa, na essência, pairar acima de países e continentes. Será possível supor que a Igreja Católica Apostólica Romana, no conclave a reunir bem mais de uma centena de cardeais tenha optado, salvo melhor juízo, por um Papa mais idoso, a fim de que um longo pontificado, como os de Leão XIII (25), Pio XI (17), Pio XII (19), Paulo VI (15) e João Paulo II (26), não se repita. Nesse mundo de tão imensa e rápida mutação em quase todas as áreas, de crescimento de seitas de toda procedência, de embates em nome de religiões  que atingem, por vezes, o limite da intolerância, e na aceleração também da descrença no poder divino, um papado mais curto poderá representar uma possibilidade maior por parte da Igreja de seguir os passos da humanidade em crise pandêmica e de renovar as equipes internas que a administram. Se considerado for que o carisma e a exposição mediática do Papa João Paulo II, em seu longuíssimo papado, não propiciaram a Sua Santidade a transcendência renovadora de João XXIII em seu curto período de cinco anos como pontífice, há o que se pensar. Aos 76 anos e com um só pulmão, as qualidades do Papa Francisco estariam a apontar – sempre no campo das hipóteses – para um pontificado não tão longo. Que o Papa Francisco tenha uma longa existência, esse é o desejo de centenas de milhões de católicos espalhados pelos quadrantes do planeta e que presentemente oram pelo eleito, que terá pela frente desafios incomensuráveis!  A trajetória do ungido, com nítida vocação voltada aos menos favorecidos, só nos faz ter esperanças em uma ação menos hermética em prol dos problemas cruciais da atualidade por parte do Vaticano. Toda a história papal mostra pontífices que tiveram comportamento não à altura, mas tantos outros mais que primaram pela direção segura da Igreja. Sob outra égide, impressionam a capacidade e a formação sólida dos que estiveram no conclave para a escolha do novo papa. Presente na Capela Sistina o resultado de decênios de estudos teológicos aprofundados e de sacerdócios, tantos deles extraordinários, em prol da escolha mais precisa. É admirável todo esse processo. Há que se convir.

Sincera e significativa a resposta do Papa Francisco aos jornalistas no último dia 16. Disse ele que a escolha do nome tem, sim, referência a São Francisco de Assis. A lembrança teria vindo logo após a eleição, quando, abraçado e beijado por seu dileto amigo, o franciscano D. Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, ouviu deste a frase: “não se esqueça dos pobres”. As palavras penetraram seu coração e a lembrança imediata foi a do Santo venerado: “Francisco é um homem da pobreza, da paz, que ama e protege a criatura”, afirmaria o novo Papa. Um jesuíta a entender e assimilar a mensagem fraterna de um franciscano. Esse olhar voltado aos mais humildes é um bom prenúncio.

On Brazil’s outrageous cost of living compared with that of France – not forgetting the country’s low minimum wage rates and unfair income distribution – and on the election of the new Pope, maybe a good choice at a difficult moment for the Roman Catholic church that is losing members in droves in part due to Vatican’s traditionalism and finantial and sexual scandals.

 

Sylvain Tesson e os Oleodutos da Ásia Central 

Não li os jornais, mas vivo assim mesmo.
Vou bem, faço progressos nesse aperfeiçoamento da calma interior.
Canto, passeio cabeça descoberta a contemplar o céu, a noite.
Knut Hamsun

Escrever é condensar a vida comprimindo-a entre as camadas de papel.
A página branca me angustia:
Terei eu papel suficiente para descrever o que vejo?
Sylvain Tesson

Confesso que admiro a obra literária de Sylvain Tesson. A experiência viva, solitária, sem subterfúgios por territórios inóspitos do planeta não é apenas a aventura pela aventura, pois há sempre um motivo para as prolongadas excursões. Causaram-me curiosidade os títulos de seus livros quando numa livraria em Paris dois anos passados. Questionado por mim a respeito do autor, o livreiro nada soube informar. Adquiri três obras e gostei imenso. Na recente viagem à capital francesa, vários amigos já estavam a ler com o maior interesse a obra de Sylvain Tesson. Anteriormente já resenhara três de seus livros: Petit traité sur l’immensité du monde e L’axe du loup (28/05/2011), assim como La marche dans le ciel – 5.000 km à pied à travers l’Himalaya (25/02/2012), caminhada essa percorrida em companhia de Alexandre Poussin.

Sylvain Tesson tem a sabedoria de um “eremita” andarilho. Diferentemente do que faz o romance a partir da criação de personagem(s), Sylvain Tesson é figura que tece reflexões à medida que os espaços vão sendo transpostos. O imenso acúmulo de quilômetros percorridos a pé ou de bicicleta pelo mundo fê-lo ver in loco povos, costumes, a natureza bela ou preferencialmente inóspita e, como afirma, “a solidão é minha fiel companheira”. Preenche a realidade com rico imaginário e a metáfora parece ser seu porto seguro. Se lhe falta nessa área a poética plena de encantamento de Saint-Exupéry, que amalgama realidade e devaneio, sobra-lhe  pragmatismo.

Em Éloge de l’énergie vagabonde (France, des Équateurs, 2007), Tesson realiza possivelmente a sua mais árdua e árida aventura, ao percorrer a Ásia Central do Ubequistão à Turquia seguindo a rota da tubulação que serve para levar o petróleo e que atravessa o Azerbajão, a Geórgia e o Kurdistão. Mares internos – Aral, Cáspio e Negro – são circundados ou aflorados, e em bicicleta ou a pé Sylvain Tesson realiza o seu “périplo” terrestre até chegar ao Mediterrâneo na Turquia. Escreve: “A inspiração dessa viagem surgiu de minha paixão pelos oleodutos. Os tubos me obsecam e seus traçados  me encantam. Posso contemplar durante horas as estrias desenhadas na rede sobre as cartas de geografia. Assemelham-se aos intestinos de algum deus da energia que teria feito hara-kiri diante das ameaças da penúria dos hidrocarburetos”. Acrescenta, em outro segmento: “Um pipeline é um fantasma da cartografia, uma cicatriz no terreno tão retilínea como um traço sobre um mapa”.

Esse fascínio do autor poderia desestimular leitores devido à agrura do tema. Ledo engano, o longo trajeto percorrido “sem motor” dá a dimensão de Tesson. Observa tudo, e os mínimos pormenores de costumes, por vezes antagônicos, chamam a atenção do andarilho. Países da ex-União Soviética são transpostos durante o verão e temperaturas que chegam por vezes aos 52º, apesar de fatigarem Tesson, “a estepe cria o deserto em mim”, não o desestimulam. Segue o caminho da tubulação e fica impressionado pelo fato de que a poucos metros do solo a riqueza acumulada durante milhões de anos corre por pipelines em direção à Turquia de onde seguirá para o mundo, mormente os Estados Unidos. Tece considerações sobre pró e contra oleodutos. Os mais conscientes têm noção que finda a recolta – talvez uns 100 anos -, países terão de sobreviver com parcos recursos, mercê da aridez de territórios inóspitos da Ásia Central. Assistir àquela viagem do óleo bruto o angustia, mormente ao pensar que a profundeza da Terra está a se exaurir em prol do consumo exagerado em progressão geométrica. Seguir o pipeline, a pé ou de bicicleta, significa acompanhar o prenúncio de um caos que certamente virá, após todos os recursos de hidrocarburetos esgotados. Se considerado for que só os U.S.A, com população de 5% de pessoas existentes na Terra, consomem 25% dessa energia que vem das entranhas do planeta, há que se compreender determinadas atitudes dos povos da região.  Tesson capta as mensagens no dia a dia durante o percurso. Visita os postos e terminais, atravessa aldeias e cidades, tem de conviver com o tórrido calor, que por vezes o sufoca. Nada, contudo, tira seu estímulo. Não afirmaria que “a nostalgia é uma preguiça”?  Vem-lhe a metáfora do livro a partir do ouro negro: “Assemelha-se ao barril de óleo bruto. Nele dorme o pensamento. Ele se condensa entre as folhas, como os hidrocarburetos entre as camadas do subsolo. Para se liberar, a força das palavras espera o refino da leitura”.

Sylvain Tesson por vezes percorre dezenas de quilômetros em pleno sol causticante e irrita-se com o vento de proa que o impede de ir mais rápido, assim como bendiz o vento que o atinge no dorso. Contudo, não deixa de observar pormenores, que retém com rara acuidade: “O frescor da Anatólia reaviva minhas forças. Meu corpo se descontrai e recorda, pois possui a memória da felicidade”. Esse rememorar, segundo Tesson, nos faz retornar ou provar novamente aquilo que em algum dia do passado, deu-nos prazer. Escreve: “Essa energia da lembrança dos momentos felizes nos dinamiza e nos leva a querer recriá-los”.

A trajetória empreendida pela Ásia Central propicia ao autor observar costumes dos povos da vasta região. Dos muçulmanos tece comentários sobre a valoração masculina e o papel reservado às mulheres, em seus trajes típicos cobrindo por vezes todo o corpo, assim como o chamamento à oração pelo muezzim do alto do minarete. Presenciou em lugares diferentes e não fica alheio ao fato, comenta-o: “Somando-se ao espesso visco atmosférico, às dezesseis horas ecoa o chamado do muezzim. Elevo o olhar em direção ao minarete, esse mirador destinado a vigiar o caminho da fé em direção aos corações de fiéis que se encaminham sob as cúpulas. Um primeiro canto cai do céu, logo seguido por outras encantações que nascem uma a uma de cada ponto cardeal”.

A longa travessia leva Tesson à uma conclusão drástica sobre o planeta em perigo. A metáfora que elabora fá-lo refletir sobre a febre: “Ninguém pensou até agora que o aquecimento climático assemelha-se a uma febre gripal. Quando um organismo vivo sofre o ataque de um vírus, a reação inflamatória aumenta a temperatura interna e a febre se declara como uma das aliadas da luta contra o mal. O corpo combate, aquecendo. Responderá a Terra à febre causada pelo vírus que seria constituído pela humanidade?” Continua: “Não são mais as ideologias que agitam a humanidade superpovoada, tampouco o entusiasmo messiânico que a levanta, nem a agressividade dos governos que a sacode, nem os nacionalismos que a atravessam, mas a imensa pressão das necessidades crescentes e a exasperação de ter esperado tanto para satisfazê-la… A Terra assemelha-se a uma bola em chamas”. Nesse quadro pessimista, Tesson acredita que a teoria do decrescimento encontra um impasse. Ninguém está interessado em iniciar o grande caminho em direção à desaceleração. Comenta: “Na teoria, cada um está de acordo em baixar a temperatura dos motores de nossas existências, viver sem petróleo, banir o plástico. Todavia, com a condição de não ser o único. Decrescer sim, mas não de maneira individual. E ninguém começará”.

Éloge de l’Énergie Vagabonde é livro de grande interesse, mormente pelo fato de o “profeta” andarilho ter percorrido lentamente essa imensa teia que leva o ouro negro ao consumo crescente e desmesurado. Há profunda coerência em toda a narrativa e o final bem poderia ser uma das frases de Sylvain Tesson no início do livro: ” O capitalismo é a redução do intervalo entre o momento em que compramos um objeto e o trocamos”.

This post is an appreciation of the book “Éloge de l’Énergie Vagabonde”, in which the French geographer and world traveler Sylvain Tesson tells about his long march through the harsh steppes of Central Asia, following the route of the pipelines that convey oil to the rest of the world, while musing on different cultures, human condition and the future of civilization.