Em torno de Témoignages

A vinda a Paris teve como finalidade principal presenciar a edição do livro Témoignages, tema do post anterior. A longa gestação da publicação deveu-se à necessidade da transmissão in totum de reflexões que, ao longo de minha trajetória, fui armazenando prazerosamente e, por vezes, com certo amargor. As questões formuladas por François Servenière e José Francisco Bannwart apenas aguçaram a dimensão de respostas que não permitiam concessões, mormente no que tange à carreira pianística, à “composição” de nossos dias – uma verdadeira Torre de Babel -, ao drama da universidade. Chega-se a uma idade em que uma revisão, por vezes dolorosa, faz-se imperativa. O que somos sem a busca da verdade interior?

O recital do dia 28 teve uma acolhida que me comoveu. O magnífico atelier dos Godard estava lotado e a mensagem que busquei transmitir com um repertório inusitado agradou. Em torno de Francisco de Lacerda e de Debussy uma comunhão se fez. Desconheciam a extraordinária criação do compositor açoriano, Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, e sua composição Danse Sacréee – Danse du Voile, que influenciaria decididamente seu amigo Debussy nas célebres Danses Sacréee et Profane. Estas foram interpretadas após a obra lacerdiana, em primorosa transcrição para piano solo realizada pelo editor e amigo do compositor francês, Jacques Durand. Três criações de François Servenière dedicadas à memória de Lacerda integraram o programa. Como extraprograma, a fim de não descaracterizar o clima monolítico, causei surpresa. Explico-me. Meu dileto amigo Luca Vitali há tempos realizou sete magníficos acrílicos sobre tela, a série Cósmica. Enviei-a a Servenière. Pensou o compositor imediatamente em escrever sete estudos para piano para minha coletânea, que nasceu em 1985 e que conta, atualmente, com 80 Estudos vindos de diversos países. Sinergia é o último deles e Servenière realizou uma releitura de Clair de Lune, de Debussy, certamente a mais paradigmática composição para piano escrita em França. Havia certo temor de minha parte e Servenière me confessaria que ficou impactado e trêmulo no momento em que anunciei a peça, não sem antes mostrar ao público uma bela reprodução da tela de Vitali. A recepção à criação de Servenière foi incrivelmente entusiasta.

Eis o recital na visão de Françoise Servenière, presente na plateia:

“O concerto e seu espaço de exceção, um antigo atelier de artista com seus imensos vitrais voltados na direção norte e convertido em ‘salon’ de música, tinham-me sido anunciados há algum tempo por José Eduardo Martins. Chegamos diante dessa porta em arcos, incrustada numa imensa e austera fachada de tijolos vermelhos nas imediações do Observatoire de Paris e cuja arquitetura encontrou inspiração, segundo os proprietários, na fabulosa cidade de Toulouse. Um primeiro choque. A porta está entreaberta desde um quarto de hora antes do começo do recital. Uma pequena multidão de iniciados e de amigos já se aglomera, aguardando o pianista. O atelier suntuoso, no terceiro andar do edifício, é dominado por clássico mezanino, do qual se descortina a grande sala onde dois Steinways se impõem, um deles recém-chegado. O todo circundado pelas paredes repletas de quadros do pintor Jean-Paul Laurens, a dimensionar magnificamente o altíssimo pé direito. Estamos, pois, num recinto mágico do membro da Académie des Beaux Arts, seu atelier e morada particular e histórica, que ele idealizou e concretizou em 1903 com a ajuda de um colega arquiteto-decorador da École Nationale Supérieur des Beaux-Arts. A família mantém o mito, organizando concertos intimistas com acústica excepcional. Chega enfim o momento do concerto e da entrada em cena do pianista brasileiro. Após breve explicação do mestre, a parte musical tem início pela exposição completa, e em primeira audição em França, das Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, do compositor açoriano Francisco de Lacerda, mágica obra-prima que integra o repertório de Martins desde os anos 90. A seguir, o pianista apresenta minha homenagem ao compositor, encomendada pelo músico brasileiro e apresentada também em primeira audição em França (já havia sido tocada em Coimbra em 2011). O recital finda pelas mágicas Danses Sacrées, de Debussy. Como extraprograma, eis que surge a grande surpresa para mim, minha criação ‘Sinergia’, o sétimo estudo do ciclo de ‘Études Cosmiques’ encomendados pelo pianista em homenagem às obras homônimas de seu amigo, o pintor brasileiro Luca Vitali, uma releitura de Clair de Lune, obra paradigmática do mestre francês. Tudo se concretiza. O público de conhecedores, artistas, músicos e musicólogos sai entusiasmado com todo esse inédito material musical interpretado por um mágico do piano, já conhecido pela discografia excepcional de 22 CDs gravados aqui na Europa. Permaneço extasiado e trêmulo pelo local, pelo concerto, pelo presente prodigioso que José Eduardo acabara de me oferecer e pela recepção calorosa e eminentemente intelectualizada dos mestres presentes – nas artes, na política -, pelas familias Godard e Laurens, descendentes do célebre pintor falecido em 1921. O coquetel após o concerto foi o final feliz dessa fabulosa soirée intimista, um instante mágico como poucos na vida. Não é necessário realizar concertos diante de 100.000 pessoas para emocionar-se. Obrigado a todos, às famílias Godard, Laurens, Robert, Billy e a José Francisco Bannwart que, com José Eduardo e seu talento excepcional, sua mulher Regina e sua filha Maria Beatriz, contribuíram para esse concerto sublime num espaço atemporal”.