Sylvain Tesson e os Oleodutos da Ásia Central 

Não li os jornais, mas vivo assim mesmo.
Vou bem, faço progressos nesse aperfeiçoamento da calma interior.
Canto, passeio cabeça descoberta a contemplar o céu, a noite.
Knut Hamsun

Escrever é condensar a vida comprimindo-a entre as camadas de papel.
A página branca me angustia:
Terei eu papel suficiente para descrever o que vejo?
Sylvain Tesson

Confesso que admiro a obra literária de Sylvain Tesson. A experiência viva, solitária, sem subterfúgios por territórios inóspitos do planeta não é apenas a aventura pela aventura, pois há sempre um motivo para as prolongadas excursões. Causaram-me curiosidade os títulos de seus livros quando numa livraria em Paris dois anos passados. Questionado por mim a respeito do autor, o livreiro nada soube informar. Adquiri três obras e gostei imenso. Na recente viagem à capital francesa, vários amigos já estavam a ler com o maior interesse a obra de Sylvain Tesson. Anteriormente já resenhara três de seus livros: Petit traité sur l’immensité du monde e L’axe du loup (28/05/2011), assim como La marche dans le ciel – 5.000 km à pied à travers l’Himalaya (25/02/2012), caminhada essa percorrida em companhia de Alexandre Poussin.

Sylvain Tesson tem a sabedoria de um “eremita” andarilho. Diferentemente do que faz o romance a partir da criação de personagem(s), Sylvain Tesson é figura que tece reflexões à medida que os espaços vão sendo transpostos. O imenso acúmulo de quilômetros percorridos a pé ou de bicicleta pelo mundo fê-lo ver in loco povos, costumes, a natureza bela ou preferencialmente inóspita e, como afirma, “a solidão é minha fiel companheira”. Preenche a realidade com rico imaginário e a metáfora parece ser seu porto seguro. Se lhe falta nessa área a poética plena de encantamento de Saint-Exupéry, que amalgama realidade e devaneio, sobra-lhe  pragmatismo.

Em Éloge de l’énergie vagabonde (France, des Équateurs, 2007), Tesson realiza possivelmente a sua mais árdua e árida aventura, ao percorrer a Ásia Central do Ubequistão à Turquia seguindo a rota da tubulação que serve para levar o petróleo e que atravessa o Azerbajão, a Geórgia e o Kurdistão. Mares internos – Aral, Cáspio e Negro – são circundados ou aflorados, e em bicicleta ou a pé Sylvain Tesson realiza o seu “périplo” terrestre até chegar ao Mediterrâneo na Turquia. Escreve: “A inspiração dessa viagem surgiu de minha paixão pelos oleodutos. Os tubos me obsecam e seus traçados  me encantam. Posso contemplar durante horas as estrias desenhadas na rede sobre as cartas de geografia. Assemelham-se aos intestinos de algum deus da energia que teria feito hara-kiri diante das ameaças da penúria dos hidrocarburetos”. Acrescenta, em outro segmento: “Um pipeline é um fantasma da cartografia, uma cicatriz no terreno tão retilínea como um traço sobre um mapa”.

Esse fascínio do autor poderia desestimular leitores devido à agrura do tema. Ledo engano, o longo trajeto percorrido “sem motor” dá a dimensão de Tesson. Observa tudo, e os mínimos pormenores de costumes, por vezes antagônicos, chamam a atenção do andarilho. Países da ex-União Soviética são transpostos durante o verão e temperaturas que chegam por vezes aos 52º, apesar de fatigarem Tesson, “a estepe cria o deserto em mim”, não o desestimulam. Segue o caminho da tubulação e fica impressionado pelo fato de que a poucos metros do solo a riqueza acumulada durante milhões de anos corre por pipelines em direção à Turquia de onde seguirá para o mundo, mormente os Estados Unidos. Tece considerações sobre pró e contra oleodutos. Os mais conscientes têm noção que finda a recolta – talvez uns 100 anos -, países terão de sobreviver com parcos recursos, mercê da aridez de territórios inóspitos da Ásia Central. Assistir àquela viagem do óleo bruto o angustia, mormente ao pensar que a profundeza da Terra está a se exaurir em prol do consumo exagerado em progressão geométrica. Seguir o pipeline, a pé ou de bicicleta, significa acompanhar o prenúncio de um caos que certamente virá, após todos os recursos de hidrocarburetos esgotados. Se considerado for que só os U.S.A, com população de 5% de pessoas existentes na Terra, consomem 25% dessa energia que vem das entranhas do planeta, há que se compreender determinadas atitudes dos povos da região.  Tesson capta as mensagens no dia a dia durante o percurso. Visita os postos e terminais, atravessa aldeias e cidades, tem de conviver com o tórrido calor, que por vezes o sufoca. Nada, contudo, tira seu estímulo. Não afirmaria que “a nostalgia é uma preguiça”?  Vem-lhe a metáfora do livro a partir do ouro negro: “Assemelha-se ao barril de óleo bruto. Nele dorme o pensamento. Ele se condensa entre as folhas, como os hidrocarburetos entre as camadas do subsolo. Para se liberar, a força das palavras espera o refino da leitura”.

Sylvain Tesson por vezes percorre dezenas de quilômetros em pleno sol causticante e irrita-se com o vento de proa que o impede de ir mais rápido, assim como bendiz o vento que o atinge no dorso. Contudo, não deixa de observar pormenores, que retém com rara acuidade: “O frescor da Anatólia reaviva minhas forças. Meu corpo se descontrai e recorda, pois possui a memória da felicidade”. Esse rememorar, segundo Tesson, nos faz retornar ou provar novamente aquilo que em algum dia do passado, deu-nos prazer. Escreve: “Essa energia da lembrança dos momentos felizes nos dinamiza e nos leva a querer recriá-los”.

A trajetória empreendida pela Ásia Central propicia ao autor observar costumes dos povos da vasta região. Dos muçulmanos tece comentários sobre a valoração masculina e o papel reservado às mulheres, em seus trajes típicos cobrindo por vezes todo o corpo, assim como o chamamento à oração pelo muezzim do alto do minarete. Presenciou em lugares diferentes e não fica alheio ao fato, comenta-o: “Somando-se ao espesso visco atmosférico, às dezesseis horas ecoa o chamado do muezzim. Elevo o olhar em direção ao minarete, esse mirador destinado a vigiar o caminho da fé em direção aos corações de fiéis que se encaminham sob as cúpulas. Um primeiro canto cai do céu, logo seguido por outras encantações que nascem uma a uma de cada ponto cardeal”.

A longa travessia leva Tesson à uma conclusão drástica sobre o planeta em perigo. A metáfora que elabora fá-lo refletir sobre a febre: “Ninguém pensou até agora que o aquecimento climático assemelha-se a uma febre gripal. Quando um organismo vivo sofre o ataque de um vírus, a reação inflamatória aumenta a temperatura interna e a febre se declara como uma das aliadas da luta contra o mal. O corpo combate, aquecendo. Responderá a Terra à febre causada pelo vírus que seria constituído pela humanidade?” Continua: “Não são mais as ideologias que agitam a humanidade superpovoada, tampouco o entusiasmo messiânico que a levanta, nem a agressividade dos governos que a sacode, nem os nacionalismos que a atravessam, mas a imensa pressão das necessidades crescentes e a exasperação de ter esperado tanto para satisfazê-la… A Terra assemelha-se a uma bola em chamas”. Nesse quadro pessimista, Tesson acredita que a teoria do decrescimento encontra um impasse. Ninguém está interessado em iniciar o grande caminho em direção à desaceleração. Comenta: “Na teoria, cada um está de acordo em baixar a temperatura dos motores de nossas existências, viver sem petróleo, banir o plástico. Todavia, com a condição de não ser o único. Decrescer sim, mas não de maneira individual. E ninguém começará”.

Éloge de l’Énergie Vagabonde é livro de grande interesse, mormente pelo fato de o “profeta” andarilho ter percorrido lentamente essa imensa teia que leva o ouro negro ao consumo crescente e desmesurado. Há profunda coerência em toda a narrativa e o final bem poderia ser uma das frases de Sylvain Tesson no início do livro: ” O capitalismo é a redução do intervalo entre o momento em que compramos um objeto e o trocamos”.

This post is an appreciation of the book “Éloge de l’Énergie Vagabonde”, in which the French geographer and world traveler Sylvain Tesson tells about his long march through the harsh steppes of Central Asia, following the route of the pipelines that convey oil to the rest of the world, while musing on different cultures, human condition and the future of civilization.