“Rôle et Responsabilités de l’interprète aujourd’hui”
Fazer justiça a uma obra,
é também conjugar sua compreensão e liberação de suas forças.
Só uma disciplina englobando a leitura justa,
assimilação paciente, gesto circunstanciado,
pode dar ao intérprete a liberdade e permitir-lhe insuflar vida à obra
- canalizando envolvimento emocional, intelectual, energético,
sem aos quais, mesmo uma obra prima permaneceria letra morta.
Pierre-Laurent Aimard
A interpretação musical foi tema de muitos posts nestes últimos seis anos. Em sendo o elo intermediário da criação-interpretação-recepção, fica reservada ao executante a difícil tarefa da decodificação da escrita musical contida na partitura e transmissão da maneira a mais autêntica e digna. Nesse desiderato, literatura foi escrita por historiadores, musicógrafos e intérpretes ao longo do tempo, mormente a partir do século XX, quando determinados instrumentos, eleitos como solistas, e mais conjuntos orquestrais e corais, tendo à frente um regente, passaram a despertar interesses precisos.
Como sempre faço, a cada viagem ao Exterior não deixo de buscar literatura musical e de outras áreas. Percorrendo prateleira reservada a Debussy em livraria especializada, encontrei um pequeno livro que me interessou de imediato. A leitura apenas ratificou minha primeira boa impressão.
Pierre-Laurent Aimard é pianista renomado internacionalmente. Seu vasto repertório e sólida discografia estendem-se de J.S. Bach à música contemporânea, mormente a mais ventilada entre os adeptos. Admitido no tradicional Collège de France, Instituição fundada em 1530, Aimard seria responsável pela cátedra de criação artística nos anos 2008-2009. A aula inaugural do músico seria publicada e tem profundo interesse, pois a abordar problemas tangíveis não apenas da interpretação, como repertório, cultura, apresentação pública, gravação, recepção (Pierre-Laurent Aimard. Rôle et responsabilités de l’interprète Aujour’hui. France, Collège de France/Fayard, 2009, 46 pgs.).
Apesar de destinada aos intérpretes, preferencialmente pianistas, a aula inaugural evidencia posições claras do autor, que incluem rigor repertorial, fidelidade à partitura, compromisso com a música presente e preocupação com tendências que proliferam.
A respeito do intérprete que navega em mares imensos, do barroco à contemporaneidade, o autor classifica-o como arqueólogo e explorador e é nesses vastos espaços que Aimard busca realizar suas buscas repertoriais. Sob outra égide, entende que o executante infesso, que encontra no amplo leque histórico o seu repertório, corre o risco de não se aprofundar, pois o todo necessitaria de tempo. Superespecialização e ecletismo desmesurado podem, assim, ser obstáculos ao pleno desenvolvimento do intérprete. Este teria de ser o homem de intuição, de estudo e de transmissão que atuará no palco, no estúdio de gravação ou na pedagogia “num universo em mutação extremamente rápida”, afirma Aimard. Tem consciência da prevalência massacrante do repertório consagrado e mais antigo frente ao contemporâneo dos últimos decênios. Observa que, se a interpretação tende a impecabilidade, sob outra égide é hoje menos inspirada.
O discurso de Aimard, ao referir-se à contemporaneidade, poderia conter determinado paradoxismo. Entende, como Serge Nigg (vide post Serge Nigg “Captar o passado, apreender o presente, pressentir o futuro”, 04/03/2011), que quantidade de compositores na atualidade, independentes e individualistas, “pensa ir mais longe do que nunca, sem que sintamos efeitos na própria criação”. Nigg argumenta que só se deparava com compositores, pois “todos” almejavam esse patamar. Aimard comenta que os “criadores de peso do século XXI são os mesmos do século precedente”. Independentemente do repertório visitado pelo pianista, que se estende de J.S.Bach à música dos últimos cem anos, constata-se em sua discografia a atração preferencial por Debussy, Stravinsky, Messiaen, Berg, Bartok, Ligeti, Marco Stroppa, Elliott Carter, sem contar suas performances de obras de Boulez e Stockhausen. A guardar as precauções devidas, não estaríamos diante de uma “reiteração” repertorial movida pelo interesse de grandes gravadoras, no caso, que buscam nomes mais divulgados da música dos últimos decênios? Aquilo que Aimard nomeia, entre determinados criadores da música da atualidade, como “território que é ocupado por músicas comerciais ou revisionistas”, não seria a crítica às tendências não comprometidas com aquelas que são hoje consagradas e que têm seus profetas que se fazem ouvir pelos acólitos? Pierre Boulez não se teria pronunciado sobre a importância da ligação do músico à Instituição? Não estaria esta a financiar ad eternum, de preferência, friso, nomes consagrados na Europa e alhures? A mídia a dar guarida às obras musicais e o pensar incisivo desses compositores não influenciaria o todo? O certo, hélas, é que se de um lado temos “legião de jovens compositores”, grande parte sem ideias coerentes, há um número qualitativo de valores reais, jovens e nem tanto, que não conseguem penetrar num círculo fechado já sedimentado. Pareceria – a partir da discografia valiosa de Aimard – que o pianista de excelência especializou-se nesse compartimento sacralizado contemporâneo de grande importância, mas não o único, pois há outros compositores que não têm suas obras mais divulgadas, mas que mereceriam tal espaço. A pergunta de Aimard sobre o lugar reservado à criação dos intérpretes - para a obra contemporânea consagrada, mais precisamente - está a merecer, de há muito, que o leque se abra de vez, com o apoio de mídia e… gravadoras. Subjetivamente ou não, o peso dos notáveis sobrepõem-se à realidade existente. A menção de Aimard a Elliott Carter (1908-2012) não estaria a expor o sacralizado: “não é flagrante, para citar apenas um caso, que o maior compositor americano vivo seja um dos mais europeus, e que esse criador centenário nos surpreenda por sua vitalidade criativa e seu frescor, preferencialmente a tantos jovens lobos”?
Cônscio da pluralidade de estilos composicionais do barroco aos nossos dias, Aimard entende determinadas proximidades interpretativas, no caso de Haydn idoso, Mozart e Beethoven, este na juventude. Contudo “uma das atribuições do intérprete é a caracterização das diferentes maneiras de agir para fazer jus à originalidade de cada compositor no seio de um mesmo estilo. No coração de nossa Torre de Babel, ao contrário, o intérprete é levado a descobrir constantemente estéticas e técnicas novas; torna-se um linguista experimentador… e poliglota”, afirma.
Aimard faz duras críticas à educação superior, na qual o Sistema de ensino permanece basicamente o mesmo desde o final do século XIX para instrumentos como piano, violino e canto, tomados como exemplos. Vê com preocupação os holofotes projetados sobre jovens não suficientemente maduros e o mal que o fato acarreta. Todo um sistema a dar guarida sempre aos “novos talentos” criaria situações que desestabilizam precocidades, pois substituídas logo após por nova leva de candidatos ao estrelismo. Creio que poderíamos acrescentar os concursos nacionais e internacionais, principalmente para os instrumentos mencionados por Aimard, quando meteoros tendem a desaparecer, tantas vezes para sempre, mercê do desvio sistemático do foco de luz.
Sobre a popularização da música clássica, entende com reservas essa ascensão. O que poderia servir de alerta residiria na maneira de ela ser configurada para atender as massas: “Quando esse fenômeno se produz no coração do sistema, sem que distinção seja feita entre divertimento populista e música com outras exigências, o risco de confusão é grande”. A assertiva viria ao encontro de manifestações, que têm se acentuado atualmente, de uma mescla da chamada música clássica com várias tendências populares de intensa divulgação. Tem-se o simulacro da primeira e apenas mais uma aparição de gênero que preferencialmente, esse sim, faz concessão ao se acoplar ao erudito.
Preocupa-se Aimard com a montagem dos repertórios, que não se deve basear na cópia de modelos tradicionais que não atenderiam à atualidade multicultural. Afirma “O repertório de cada intérprete é o reflexo artístico de suas convicções profundas. Essa teia de obras é uma manifestação da sua identidade (diga-me o que tocas e eu te direi quem és), mas também o resultado de seu olhar crítico sobre o estado do mundo musical – carências a contrabalançar, atos pedagógicos… “. O contexto seria fundamental para a apresentação de uma obra e a montagem de um programa deveria atender a vários atributos nesse desiderato. Entende Aimard que “o mais nobre de um intérprete é aquele de servir aos criadores de seu tempo”. Elenca as dificuldades nessa missão, como a relacionada a uma obra recém-composta quando fica destinado ao executante “dormir três curtas vezes por semana se o concerto estiver próximo”. Outro quesito colocado pelo pianista é aquele relacionado à importância do estudo de uma obra contemporânea com o próprio autor. Acredito ser esse um compartimento fundamental – quando possível, é claro. Se a obra tem valor, a tradição passará a ter seu curso. Insiste Pierre-Laurent Aimard na diferenciação estilística que deve ser respeitada e menciona Debussy e Ravel, que merecem tratamentos distintos.
Aimard vê com simpatia compositores atuais que tentam explicar suas criações. Lembraria o ilustre compositor cubano-norte-americano Aurelio de La Vega, que, em entrevista a mim concedida (Aurelio de La Vega – Os musicólogos têm pouca visão. In: “Cultura” de “O Estado de São Paulo”, 18/05/1986) dizia que tantas vezes a “bula” é bem mais extensa do que a obra, o que entendia como um equívoco. Aimard compreende, entretanto, fundamental esse trabalho testemunhal, pois ajuda o intérprete a melhor captar as mensagens de um criador.
Um dos aspectos fulcrais da música é a pedagogia e Aimard dela não descuida em seu acurado texto. Aponta para a necessidade de o professor ser honesto, sem fugir das reais capacidades de um aluno, desaconselhando-o a seguir a trajetória musical, se for o caso. Compreende indispensável a transmissão dos muitos estilos através da história, mormente as várias tendências da música contemporânea, mas vê com preocupação “a resistência por vezes tenaz de certas mentalidades”.
Aimard entende a importância da tecnologia e a utilização de meios proporcionados pela internet. A possibilidade de “estar presente” a tantos eventos ligados à atividade musical, como gravações de toda sorte, aulas, cursos, documentários, traz ao ouvinte e ao aprendiz o conhecimento imediato, a transpor geografias.
Pormenoriza-se no intérprete e na necessidade imperiosa de ele ser “proteiforme e agir sobre diversos fronts: criação, pesquisa e releitura do repertório, pedagogia diversificada, trabalho sobre diferentes suportes, etc.” Acrescenta que, sobretudo, deve ele ser “o conteúdo que dita a ação, e não a função social que aprisiona o conteúdo”. Para tanto, o conhecimento abrangente dos gêneros praticados por um compositor apenas enriquecerá a interpretação. Sob outra égide, deve o intérprete ter consciência da “transposição” ao apreender que obras, mormente as do passado, foram concebidas para instrumentos e espaços outros. Todo uma apreensão histórica e contextual não pode ser negligenciada.
Nessa temática, Aimard entende que “parte considerável da obra cravística executada ao piano revela-se inoperante, ou inaceitável”. Lembro-me sempre da frase do ilustre musicólogo François Lesure, que ao referir-se à obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada ao piano, escrevia que “o que importa não é o instrumento, mas a qualidade do intérprete”. Não poderia parecer subjetivo, talvez paradoxal, que essa “parte considerável da obra cravística ao piano” tenha por parte de Pierre-Laurent Aimard a aplicação do livre-arbítrio quanto à escolha, pois gravaria ao piano A Arte da Fuga de J.S.Bach. Há controvérsias quanto à destinação dessa obra-prima do Kantor: para cravo ou sem especificação definida? Critérios de escolha.
Rôle et responsabilités de l’interprète aujourd’hui revela-se da maior importância, apesar das poucas páginas, pois se trata da tradução de um acúmulo de conhecimentos concentrados por um músico na acepção em rara obra pedagógica.
When admitted to the Collège de France in 2008, the remarkable pianist Pierre-Laurent Aimard gave an Inaugural Class that was turned into a book. This post is about this book, which I believe addresses issues of great interest for any interpreter of classical music.
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