Gilberto Mendes e o Romance
O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
é tê-las feito.
Agostinho da Silva
O nosso grande compositor Gilberto Mendes, nos seus 90 anos de idade, continua a causar impacto. A composição flui viva em sua pena clara, sem subterfugios, direta, a expor sua mensagem sonora rica e diversificada. O compositor tem suas preferências nítidas que não ficam enclausuradas unicamente na criação de seus ilustres ascendentes musicais, mas viajam para outras latitudes e o cinema, o jazz band, o mar de sua Santos eterna servem de subsídios que, transfigurados, aportam em seu vasto catálogo. É surpreendente seu interesse por tudo que o cerca. Hoje não mais viaja para o Exterior. Entende o seu tempo físico, que, apesar de não o desapontar, tem regras inexoráveis. Ideia e criação desafiando o tempo implacável. Gilberto personaliza o pulsar vulcânico controlado, mas constante. As lavas são jorradas das entranhas de seu criar, em absoluta concordância com o outro Gilberto, o do cotidiano, que merece a admiração e o carinho de todos os que têm o privilégio de com ele conviver.
Em meados do ano passado fui visitá-lo em Santos. Com regularidade estamos em contato, mormente por telefone. Durante o almoço, a saborear ostras em restaurante da maior confiança de Gilberto, confessou-nos, à minha mulher e a mim, que estava a finalizar um romance. Romance? – perguntei-lhe pasmo. Dois posts dedicados à sua obra literária, na qual Gilberto narra sua odisséia musical vivida sem alterações fantasiosas, testemunham minha sempre admiração pelo colega e amigo (vide posts de 13/10/2007 e 04/04/2009). A viagem literária do compositor, a brotar da imaginação, surgiu-me no instante como fato inédito. E é. Aos 90 anos!!! Gilberto disse-me à altura que procurou divertir-se ao criar personagens para Danielle em Surdina, Langsam (São Paulo, Algol, 2013). E como se diverte. Mas se é fim deste post o conhecimento desse talento que desabrocha, não o é, entretanto, o panegírico tout court. Lembraria que “langsam” é palavra germânica bem utilizada na terminologia musical e tem correspondentes em outras línguas: lento, lent, slow. Enigmático en surdine… Como não pensar em Paul Verlaine (Fêtes Galantes) ou Charles Baudelaire?
O romance de Gilberto Mendes não tem o manejo linguístico e formal de especialistas do ofício. Nem poderia tê-lo. Seria pedir muito àquele que destinou sua vida às sonoridades, à palavra que serviria aos seus desideratos musicais e à cena teatral em função de uma adequação à mensagem musical e estética. Danielle… sintetiza muitos dos devaneios gilbertianos, que percorrem dezenas de títulos em suas composições. Nestes, Gilberto é insólito, desconcertante, divertido ou trágico. Quem neste país fez o mesmo com tanta naturalidade? O pente de Istanbul; Ulysses em Copacabana surfando com Doroty Lamour e James Joyce; Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do sul; Santos Football Music; a tragédia em Cubatão, Vila Socó meu amor; Vers les joyeux tropiques, avec une musique vivante, théatrale! e tantos outros revelam o observador da vida em sua acepção. Dir-se-ia que o criador de imagens sempre esteve definido. Sob outra égide, sua pena firme e crítica comentou durante decênios concertos e denunciou irregularidades a contagiar a sociedade. O homem em sua convicta ideologia de esquerda não se furtaria a apontar descasos culturais e sociais de variadas origens. Mas jamais com o ranço que caracteriza tantos adeptos.
Danielle em Surdina, Langsam, passa-se em dois tempos, numa espécie de forma bipartida, mas com alternâncias geográficas. O “tempo” de Danielle… obedece ao presente (Alemanha) e ao passado (Santos). Em todo o curto romance o personagem central, Mathias Emmanuel, se vê frente à reminiscência. A realidade é o instante do acontecido. Fundem-se os tempos e o presente renascido encontra final surpreendente.
Impressiona a vitalidade imaginativa de Gilberto Mendes. O personagem Mathias Emmanuel é músico e o autor o acompanha dos primórdios pianísticos em Santos até o porto final, Alemanha, no qual estaria definitivamente radicado como compositor alemão. O alerta já se apresenta no peristilo do livro. Há, no personagem criado por Mendes, um misto de alter ego e de ecos dos anos 1930-1940. Lugares caros a Gilberto em sua cidade berço, situações vividas e encontráveis nas sua “biografias” reais, mas metamorfoseadas, a depender das circunstâncias, a lembrança lúdica da infância e adolescência em que a música para Mathias Emmanuel estaria amalgamada à descoberta do perfil feminino em sutilezas por vezes sensuais, “olhar os joelhos e pernas das colegiais”, a libido a confundir-se com amor, mas a propiciar o conhecimento. Pureza, temor, arrojo, concretude, seja nos braços de uma prostituta que se parecia com Hedy Lamarr, seja no observar uma estudante adolescente, Danielle, paixões mensuráveis em contextos diferentes. Essas situações provocam no leitor a indagação, deixando-o estupefato, tal é o jogo de palavras. Surpresa acompanhar a lista de sinônimos que Mathias elabora na Alemanha para termos como meretriz e casa de tolerância. Gilberto parece se divertir nessas recordações, que todo adolescente ao menos conhece em parte. Mathias Emmanuel, em noite insone em Dresden, recorda-se da quantidade de agências de vapores que adentram pela Ponta da Praia. Enumera-os, assim como o nome dos navios que aportavam, lentamente. Gilberto converte essa listagem na transcendência humana do observar. A matéria banal a volatizar-se na poética imaginação.
Danielle… encanta pelos instantes fantasiosos, trágicos, libidinosos, puros. Os personagens flutuam como névoas nessa viagem através das décadas. Desfilam pelo romance, esporadicamente, nomes que marcaram a música no século XX, tanto a erudita como a popular, e Mathias “julgava as músicas populares norte-americanas e alemãs como as duas faces de uma mesma moeda, algo de certo modo também erudito. As outras seriam músicas populares propriamente ditas”. Devaneia num universo lúdico-sonoro-sensorial.
A guardar as muito devidas contextualizações, Romain Rolland, no belo e caudaloso romance Jean-Christophe, não sacraliza Beethoven jovem? A seguir, na continuação da saga do personagem até a morte, não realiza essa simbiose música-destino, esperança e amor estiolados, sendo a música a única fiel companheira? No breve Danielle em surdina, langsam, Mathias Emmanuel ratifica a imagética de Gilberto e sonha como Jean-Christophe. Se este tem final solitário, Mathias tem surpresas.
É deliciosa a leitura do romance de Gilberto Mendes, mormente ao sabê-lo pleno de entusiasmo pela vida em história reveladora de alguns de seus segredos. Desvelados? Não diria. Há mistérios insondáveis em Gilberto Mendes. Mathias Emmanuel e “Danielles” encantam, e o desdobramento final surpreende. Leitura prazerosa. Gilberto…
Gilberto Mendes, one of the most prominent Brazilian composers, has just published a novel called “Danielle en Surdine, Langsam”. This post is about his book, a light and engaging reading in which fiction and Mendes’ own experiences are intertwined: the hero is a young musician who has spent his childhood and adolescence in Santos and later became a compositor in Germany. Now with 90 years old, instead of enjoying a quiet life in retirement the great Gilberto Mendes is still surprising us.