Um Modelo a Ser Seguido
“[...] (chegamos) à lamentável conclusão
de que nem os portugueses conhecem nada da música brasileira,
nem os brasileiros têm notícia alguma da música portuguesa,
ou, pior do que isso:
que o que nós conhecemos da música do Brasil se reduz ao samba,
que o que eles [...] conhecem da música de Portugal se limita ao fado. [...]“
Fernando Lopes-Graça (1906-1994)
As agências internacionais de concertos
apoderaram-se inteiramente da nossa vida musical,
onde colocam (por vezes a peso de ouro) o êxito acumulado do “centro”.
E nem sequer passa pela cabeça das instituições e dos seus “programadores”
que Brasil e Portugal, juntos,
bem podiam criar uma nova dinâmica de efectivo intercâmbio
que se projectasse não só no espaço cultural luso-brasileiro,
mas também para fora dele.
Mário Vieira de Carvalho (1943- )
Uma das dificuldades da propagação da cultura musical erudita em alto nível reside na superficialidade, despreparo ou razões outras que impedem a confiabilidade do que merece ser transmitido. Revistas, periódicos ou guias tantas vezes meritórios perecem após alguns números, outros mais subsistem fazendo concessões de toda sorte e a realidade mostra-se sombria. Publicações, arbitradas ou não, de música de concerto, erudita, clássica e outras mais designações teriam de apresentar em seus quadros, preferencialmente, membros da área, conhecedores do que se passa em uma partitura. A experiência da escuta é apenas uma entre tantas e tê-la como única salvaguarda é temeroso. Não se exige conhecimento específico em áreas como a Medicina, Direito, Engenharia? Sob a égide acadêmica, nas poucas revistas existentes no Brasil e em Portugal, a endogenia, esse mal que impede o arejamento das ideias e a comparação que enriquece, é realidade constante. Fato. O compadrio universitário propicia malefícios claros.
“Glosas” nasceu bem em terras lusíadas. Inicialmente voltada à cultura musical portuguesa, diversificou-se com o tempo. Recentemente a Direção criou o Conselho Científico Lusófono e três núcleos foram formados: africano/asiático, brasileiro e português. Fazem parte do segundo, por ordem alfabética nos créditos da revista: José Eduardo Martins, Paulo Castagna, Ricardo Tacuchian e Susana Igayara. Destes, Susana pertence ainda ao Grupo de Comunicação e Pesquisa e, de minha parte, recebi o honroso convite para ter uma coluna em cada número, unicamente a tratar da música portuguesa ou de relacionamentos pátrios a envolver a cultura musical dos dois países. Terá como título “Ecos d’Além Mar”. A Revista é quadrimestral e o nº 7 (Janeiro), recebi-o apenas nestes dias, fruto do atraso de nossos correios, pois outras correspondências vindas d’outros países também têm tardado. Por enquanto, nada a fazer.
O número em questão tem matérias relevantes e entre estas destacamos o núcleo temático (44 páginas) sobre o importante compositor Frederico de Freitas (1902-1980), com várias colaborações que enriquecem o conhecimento ainda pequeno que se tem do músico em Portugal. Lembro ao leitor que, em 2012, minha mulher, a pianista Regina Normanha, apresentou em várias cidades portuguesas a encantadora coletânea de Frederico de Freitas, “O Livro de Maria Frederica”, 36 pequenas peças à la manière do “Álbum para a Juventude”, de Robert Schumann. Na década de 1980 adotei-o, juntamente com “Música de Piano para Crianças” de Fernando Lopes-Graça, nos meus cursos de piano complementar na Universidade de São Paulo. Não tive seguidores. A registrar.
Temas de grande interesse para a cultura musical portuguesa estão pouco a pouco sendo tratados. Glosas fornece textos cuidadosos que remetem ao organista e professor Antoine Sibertin-Blanc (1930-2012), nascido em França e figura ímpar no ensino e divulgação do órgão em Portugal; ao notável compositor Marcos Portugal (1762-1830), mercê de homenagens prestadas por ocasião dos 250 anos de nascimento e a partir de iniciativas de exposição e publicações empreendidas pela Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) juntamente com o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM); às entrevistas com músicos portugueses atuantes: o grupo “Músicos do Tejo”, aos pianistas Ricardo Vieira e Tomohiro Hata, divulgadores da música portuguesa e japonesa mundo afora; às conversas com compositores de Portugal (Daniel Moreira e Nuno da Rocha); ao debruçamento sobre a música de câmara de Luiz Costa; ao fundamental texto “Introdução à História da Música em Portugal”, de Maria Augusta Barbosa (1912-2012), traduzido do original em alemão por Otto Solano. De 2007 é o substancioso pronunciamento de Rui Vieira Nery sobre a importância da professora Maria Augusta Barbosa, fundadora das Ciências Musicais em Portugal e a primeira portuguesa que se doutorou nessa área. O compositor Sérgio Azevedo analisa com acuidade devida o conto musical de Fernando Lopes-Graça, “A menina do mar” (1958-59). Colaboradores competentes imprimem respeitabilidade a todos os textos inseridos em Glosas.
Em tantos posts tenho ratificado posição crítica ao descaso quase absoluto que nossos meios de divulgação dispensam à música portuguesa de concerto. Quando sempre, colocam estandartes em raros intérpretes portugueses que realmente nada fazem pela música composta em Portugal, sendo pois executantes que se deslocam pelo planeta a apresentar o repertório sacralizado clássico-romântico de países ao norte das terras lusíadas ou da Espanha. Em seus certificados de nascimento consta que são portugueses. Nada mais. E de pensar que tantos são os intérpretes portugueses de valor que interpretam a excelente música erudita do país e que nunca são convidados por nossas sociedades de concerto! Situação vexatória! As atrações para as sociedades que agendam concertos no Brasil e em Portugal são as mesmas. O Sistema conhece bem a manutenção da mesmice. Mantê-la é sobreviver! Também, hélas, nada a fazer, ao menos por enquanto.
Na contramão desse descaso, é de grande relevância o fato de Glosas prestar homenagem a dois compositores brasileiros. Susana Cecília Igayara, em arguto e inteligente artigo, pormenoriza-se em Oscar Lorenzo Fernández (1897-1948) na preciosa seção “Compositores a descobrir”. Consegue a pesquisadora traçar perfil bem amplo do compositor para os leitores de Glosas. O Diretor da revista, Edward Luiz Ayres de Abreu, por sua vez, esteve no Rio de Janeiro e São Paulo. Na antiga capital entrevistou o compositor Ricardo Tacuchian (1939- ) em recinto emblemático, o Real Gabinete Português de Leitura. Ayres de Abreu formulou perguntas a abranger a trajetória do ilustre criador, maestro e professor brasileiro. Bem conhecido em Portugal através da apresentação de suas obras, conferências e participação em bancas nas principais universidades portuguesas, Ricardo Tacuchian sentiu-se à vontade e seus depoimentos revestem-se de rico material nessa imprescindível ligação cultural Brasil-Portugal.
A presença do Conselho Científico Lusófono deverá incrementar certamente uma ligação que de há muito se faz necessária entre os países que comungam a língua portuguesa. Inventariar as manifestações musicais e seus partícipes nas mais variadas áreas poderá estabelecer, com o passar dos anos, documentação invejável. Temos muito a dizer. Nossas histórias precisam formar elos de união.
Os próximos números, Maio e Setembro, já têm núcleos temáticos agendados: Clotilde Rosa, conceituada compositora contemporânea portuguesa, e o compositor romântico brasileiro Henrique Oswald, respectivamente.
An appreciation of issue nº 7 of Glosas, the music magazine with news, interviews and articles covering the world of classical music in the community of Portuguese language countries.