In Memoriam
Navego no mundo em que nasci,
me realizo com formas e cores que estão dentro de mim e assim será,
mesmo nos mares agitados.
Luca Vitali
A morte não é a maior perda da vida.
A maior perda da vida é o que morre dentro de nós enquanto vivemos.
Dalai Lama
Alguns posts jamais gostaria de escrever. A inexorabilidade dos fatos impede-me de concretizar essa vontade empírica. Tenho por hábito mencionar a outra margem da vida, metáfora usual a traduzir tanto! Mors certa hora incerta ao chegar inesperadamente causa profundo impacto, pois nunca sabemos o instante do acontecido, mesmo em doenças prolongadas. Como bem escreve Vladimir Jankélévich, apenas o condenado a morte presencia o fatídico instante.
Amizades independem da contagem dos anos. Pode nascer de empatia fulminante, que imediatamente se aprofunda. Conheci Luca Vitali numa degustação de vinhos numa sexta-feira à tardinha em loja de rede de supermercado. Sabia de sua trajetória dignificante em tantas áreas como pintura e desenho, designer de móveis e arquitetura promocional, decoração, ilustrações no mundo da literatura. Conhecia ele minhas atividades musicais. Apresentados, olhos nos olhos e nosso entendimento já planava nas nuvens da Arte. Foi assim que aconteceu. E de pensar que nosso enraizamento é recente, data de 2007! Marcamos um encontro para o dia seguinte e os temas fluíam como lavas de vulcões gêmeos. Irmão pela escolha doravante. Marisa, sua esposa, e Regina, minha mulher, seguiram durante todos esses anos nossa fusão na Arte, estimulando-a. Pintura, desenho e música como temáticas infinitas. Debruçávamos sobre um conceito e elucubrávamos. Num segundo estágio, Luca passou a ouvir os posts que eu preparava e um ou dois dias após enviava-me uma ilustração a tudo apreender. Generoso ao extremo, realizou dezenas de desenhos e charges para os meus posts, enriquecendo-os. Apresentei-o ao meu irmão Ives Gandra e também generosamente criou 36 poéticos desenhos para quatro livros de sonetos que estavam a ser escritos diariamente.
Certo dia Luca enviou-me a reprodução de suas obras (acrílico sobre tela), que denominou “Série Cósmica”. Entendi tais criações como extraordinárias. Transmiti, via internet, ao meu dileto amigo e compositor de grande mérito, o francês François Servenière, sugerindo-lhe como ideias para coletânea de Estudos para piano que deveriam integrar ambicioso projeto que iniciei em 1985 e que deverá se estender até 2015, dele já constando mais de 80! Meses após, impregnado pela infinitude cósmica, Servenière me envia a magnífica série de sete Études Cosmiques para piano, composições maiúsculas e de imensa dimensão musical. A literatura para piano ficou enriquecida. Um deles, Sinergia, apresentei no recital em Paris em Janeiro último, não sem antes mostrar e colocar ao lado do piano reprodução da magnífica pintura de Luca Vitali que inspirou o belo Estudo. Impressionou vivamente a todos os presentes.
A partir dessa interação pintura, composição, interpretação, passamos a formar um triângulo voltado inteiramente à nossa paixão, a Arte. Palavras existentes como rentier de l’art (capitalista da arte) não existem em nossos dicionários. É difícil sobreviver assim sendo? É-o, mas traz resultados que preenchem a alma; e é-o como enriquecimento que se substancia a cada dia. Se minha correspondência em francês com Servenière brevemente chegará às 1.000 páginas, o recente dossiê em espanhol de Luca com o músico gaulês já tem substância. E de pensar que nesse triângulo a vaidade – uma doença segundo Saint-Exupéry -, o prevalecimento individual e os holofotes jamais tiveram a menor guarida, há algo para reflexão.
Luca Vitali foi irmão escolhido, como afirmei. Independe da genética. Nos últimos tempos almoçávamos invariavelmente às terças-feiras no Natural da Terra do Brooklin Campo Belo. Eu chegava sempre atrasado devido ao treino para as corridas e Luca pacientemente ficava a ler ou rabiscar. Convivíamos diante da mesa e a comunhão da amizade se prolongava por duas ou três horas. Discutíamos arte, pintura, música, cotidiano… Lia meus posts em ebulição e Luca sugeria uma ou outra valiosa ideia e as desenhava mentalmente. Quantas não foram as vezes em que, durante a leitura de um próximo post, via o que estava a rabiscar. Dizia a Luca que havia um lápis em seu cérebro, a tudo captar. Telefonávamo-nos praticamente todos os dias. Havia sempre algo a descobrir.
Quando menciono o rentier de l’art, estou a pensar no trabalho de dedicação amorosa que Luca manteve generosamente durante décadas com deficientes físicos com totais impossibilidades. O orientador competente encontrava naqueles impasses uma via para a arte, resgatando no desalentado deficiente uma mínima chama de pequena vela que pudesse indicar caminhos. Um dos exemplos relatei em post de 5 de Dezembro de 2009 (Evilásio Cândido – Artista da Hiper-Super-Ação). Vítima de paralisia cerebral, Evilásio esteve impossibilitado para o mundo. Luca conseguiu dar-lhe esperanças ao abrir o caminho da pintura. Cândido merecia atenção da Associação de Assistência à Criança Defeituosa (A.A.C.D.). Luca, o bom samaritano em trabalho voluntário, que invariavelmente realizava um dia por semana. Ausência total de autopromoção. Evilásio depende de tudo, membros e fala atrofiados, nem mesmo pode conduzir sua cadeira de rodas, mas tem a mãe e a dedicada Eliana Pereira Bento como anjos protetores. Luca, após tentativas frustradas, conseguiu adaptar à testa de Evilásio um artefato que o faz pintar, pois entendeu através do difícil balbuciar a presença do artista entrevado a querer explodir em sua arte. Semanalmente assistiu-o durante anos e anos.
Evilásio é hoje um artista real e a incapacidade física não o demoveu da vontade de criar. A revisita ao post mencionado mostra belas obras pintadas pelo discípulo desse imenso coração abnegado que deixou de mensurar o tempo na madrugada desta última quinta-feira.
Luca Vitali. Meu grande amigo. Quando soube de sua morte inesperada, através do telefonema de sua dedicadíssima Marisa, choramos copiosamente, Regina e eu. Porque hei de negar! Ao contatar pelo Skype nosso amigo comum, François Servenière, em Blangy-le Chatêau, não consegui falar mais que alguns segundos. O pranto jorrou como voltaria a jorrar nos abraços de seus filhos queridos, Alexandre e Rodrigo, no crematório de Vila Alpina. Não posso negar! Tudo foi muito rápido e essa singela homenagem traduzida em post é para afirmar que nosso projeto acarinhado amorosamente para a apresentação dos sete Études Cosmiques para piano de François Servenière com a exposição de suas instigante e belas telas deverá ir em frente. Servenière escreveu-me a dizer que sentia-se effondré (desmoronado) com sua partida. De onde você estiver, raios de esperança deverão acalentar nossa empreitada. Luca, grande artista e coração imenso aberto ao bem, ao belo… Tê-lo conhecido foi dádiva inefável.
On the death of Luca Vitalli, a dear friend, an exceptional human being and a great artist, who enriched my posts for years with his black and white illustrations. I was fortunate to have known him and worked with him. Hope my grief will lessen overtime and be replaced by the joyful memories of the moments we spent together.
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