Quando o Leitor Estimula Argumentos

Nos autores referenciais
o estilo permanece como ponte entre todos os gêneros abordados,
em todas as épocas. É um fato musicológico.
François Servenière

O post do último dia 30 de Março suscitou muitos comentários. Alguns por via telefônica. Da França, Portugal, Holanda e Argentina escreveram-me sobre impasses relativos ao intérprete de hoje, sedimentado no tradicional sacralizado, e outro compartimento de executante, consciente do passado menos frequentado e da ebulição repertorial que está a se processar e que compreende as oportunas palavras de Pierre-Laurent Aimard, ao considerá-lo como “arqueólogo e explorador”.  Essas definições, sob outro ângulo, não são feitas sem consequência, pois ao intérprete voltado à abertura do amplo leque repertorial estará fadado, a partir de atitudes, pagar tributos. O Sistema não privilegia aqueles que traçam caminhos outros. Pouco a fazer.

Mais e-mails comentam o desinteresse da maior parte das obras contemporâneas, tantas delas compostas por jovens egressos do conservatório ou da universidade, sem preparo suficiente, quando não desprovidos de talento. Ratifico a opinião de Serge Nigg, que, a certa altura de seu depoimento para Témoignages (nº3), editado pelo OMF da Paris Sorbonne (2008), diria que estava sempre a ser apresentado para compositores. Eles proliferam. O multidirecionamento das tendências permite que essa Torre de Babel realmente exista. O mais grave é a existência de torres babélicas individuais, encontráveis entre inúmeros que jamais terão impressões digitais a expressar coerência, pois deprovidos de estilo. Não obstante, quem seria realmente bom? Raríssimos subsistem, mas durante bienais, congressos e festivais mundo afora legião de pretendentes têm suas obras apresentadas e incontáveis aqueles sem a menor qualidade. Enfadonhas “composições”, mas que estimulam o mau exemplo. E quantas não são as vezes que buscam explicar ininteligivelmente suas obras? Atônitos acólitos acreditam estar diante de oráculos! Contudo, para os raros que ultrapassam as grandes ondas que vêm findar nas praias, a possibilidade de ganhar o mar aberto e subsistirem pode trazer esperanças. A construção de barcos que venceram o quebra-mar tormentoso foi feita com perícia e o timoneiro tem lá sua maestria.  Desconhecidos ainda desse público restrito da música de nossos dias, esses jovens ou não tão jovens compositores têm de encontrar no intérprete “explorador” (o que descortina) a guarida corajosa que os faça vir a público através da execução de suas composições. Para o executante, resta a necessária missão que o levaria a dizer não quando frente à inocuidade do pensar. Desencorajar a ausência do talento pode parecer rude atitude, mas é a única senda a ser apontada para pretendentes sem pendor.

Posicionara-me em tantos posts anteriores e no do último dia 13 sobre as tendências composicionais. Mencionei Aimard e suas preferências relacionadas à música contemporânea já consagrada, objeto de suas gravações referenciais. Assim como já escrevi também sobre a nossa crítica musical, basicamente inexistente e que, quando presente, tem como redatores  jornalistas de ofício e não músicos, o que impede o olhar novos talentos, mas o sacralizado que não lhes trará riscos de avaliação. Assim, acredito também que será a visão do intérprete atento à qualidade não hesitar e apresentar publicamente um compositor desconhecido de nossos dias, seja ele de qual tendência for, contanto que qualitativo. Sem censura estética ou dogmática, pois. Nesse turbilhão que se divide entre legião de compositores, nesse turnover incessante deveria o intérprete não ficar unicamente atento à fama, tantas vezes aparênca da verdade, mas ter o discernimento da escolha certa.

O leitor, que generosamente tem acompanhado meus posts desde 2007, captou ao longo dos anos uma preocupação, quiçá insistência de minha parte, relativa à mesmice que normalmente sobrevoa sonoramente nossas salas de concerto. Se mencionarmos apenas um gênero, o concerto para piano e orquestra, facilmente o leitor detectará o impasse, pois intérpretes residentes no país, ou aqueles que atravessam os continentes e aqui aterrissam, têm o hábito de repetir uns poucos concertos consagrados. Exceções louváveis existem, mas ficam nessa categoria. Aimard se insurge contra essa repetição. Corroboro a opinião de amiga francesa que me escreveu a dizer que considera a ação da mesmice, no caso preferencial dos intérpretes consagrados, como o ato de um “rentier de l’art” (capitalista da arte), percebendo, sob aspecto outro, a ausência de riscos para esse executante, pois todo o repertório exaustivamente repetido está sedimentado e sob controle. Longe ele se encontra da labuta noites adentro quando o novo de mérito tem de ser apresentado, como professa Aimard.

O tema fez-me pensar em livro que estou a ler a respeito do insigne pianista, compositor, professor e musicógrafo português Viana da Mota (1868-1948). Oportunamente será tema de um post. É inacreditável o repertório do músico lusíada que, em suas tournées, por vezes realizava em uma cidade sete, oito recitais e concertos, todos com programas diferentes. Seu vastíssimo repertório ia de François Couperin a Manuel de Falla e coetâneos, sem negligenciar as 32 Sonatas de Beethoven, parte expressiva do grande repertório romântico e as obras fundamentais de J.S.Bach. Essa característica hoje basicamente inexiste, visto que a regra é o Sistema convidar uma série de intérpretes para uma só apresentação em temporadas com programas que se perpetuam na repetição. Nada a fazer, a não ser imaginar esses extraordinários mestres do passado, que percorriam longos trajetos em carruagens ou navios, mas que, nessas cansativas digressões, não ficavam apenas em uma cidade, frise-se, continuavam seus caminhos a semear vasto repertório.  

Em que porto atracamos? É tão mais fácil seguir o caminho da não abertura! Não há contestação, as mentes se acomodam numa pastosa situação na qual tudo parece bom, nada deve ser mudado. Repetir ad nauseam o sacralizado, quando a parte fundamental do iceberg  que o faz singrar oceanos é incomensuravelmente maior. O Sistema projetaria o olhar à la manière do escafandro para o desconhecido submerso? Sob outra égide, teria abertura para o contemporâneo não consagrado, mas meritório e, sobretudo, de tendências múltiplas? Dificilmente, sem contar as “igrejas” que não admitem outra verdade além da defesa de vanguardismos sustentados ideologicamente por “profetas” da música. A endogenia generalizada parece ter tentáculos imensos. Estimular as mentes através da diversidade. Seria pedir muito?

In this post I resume the subject of the main issues addressed by Pierre-Laurent Aimard in his Inaugural Class when admitted to the Collège de France in 2008: the uneven quality of contemporary composers, the courage of the interpreters that act as pathfinders, making the extremely rare talented contemporary composers and the audiences find each other, the difficulty of the average listener to develop an ear for the new.