Navegando Posts publicados em junho, 2013

Quando o Povo Saiu às Ruas

Nenhum político deve esperar que lhe agradeçam
ou sequer lhe reconheçam o que faz; no fim de contas,
era ele quem devia agradecer
pela ocasião que lhe ofereceram os outros homens de pôr em jogo
as suas qualidades e de eliminar, se puder, os seus defeitos.
Agostinho da Silva

Já não estamos anestesiados. Se o leitor consultar meu post de 18 de Maio último (“Anestesiados – Há solução para nossa índole?”), observará que os motivos que propiciaram as manifestações já lá estão embutidos. Quando mencionava essa “letargia”, mal podia prever que logo após haveria o despertar de um povo que acorreu às ruas das principais cidades brasileiras. Manifestações no Exterior fizeram-se sentir igualmente.

A ilustração de meu saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013) sintetizava naquele post a inquietação. Não estaria a presente charge, no mesmo espírito, mostrando parte da realidade atual? Conversávamos, Luca e eu, sobre políticos e descasos. Revela o desenho ingredientes prenunciadores, e o megafone proclamaria desmandos que nos avassalam. O povo aguentou, aguentou, aguentou… mas há o infinitesimal instante da gota d’água.

Nessas últimas semanas conturbadas, plenas de manifestações de rua pacíficas, mas infiltradas por minoria absoluta de desequilibrados, baderneiros, bandidos de carteirinha, drogados, tantos deles menores,  o leitor deve estar a acompanhar todo o desenrolar pela mídia. Realidades não são mostradas por nenhum meio de comunicação, mercê das polpudas publicidades patrocinadas pelo Governo, o que impede a exibição de muitas faixas a condenar sobretudo a ação do partido majoritário. Elas estavam entre as muitas, algumas alusivas ao último ex-presidente. Estas não foram exibidas. Estranho. Só estamos a conhecer parcela da verdade, pois, tal tsunamis, as passeatas invadiram as cidades brasileiras, mesmo que sem líderes confessos. Preferencialmente, a mídia focou a exceção, a quebradeira realizada pela ínfima minoria. Um enorme desserviço. E foram imagens da exceção que inundaram a mídia internacional. A beleza das aglomerações pacíficas, a reunir quase todas as camadas da sociedade, pouco foi mostrada. Saques, quebradeiras, incêndios, barricadas eram escancarados nos noticiários televisivos. Infelizmente, e a mídia bem sabe tirar proveito, são os fatos deprimentes que conseguem altos índices de audiência. Uma de minhas netas esteve em uma das maiores manifestações da Av. Paulista e contou-me sentir-se segura, pois o povo na mais conhecida via pública paulistana estava a revindicar direitos dos cidadãos que foram abandonados pelo poder público. Pacificamente a multidão se deslocava, segundo ela.

Na passeata da quinta-feira (20 de Junho), deu-se a glorificação do apartidarismo. O Presidente Nacional do PT, ao solicitar aos simpatizantes o comparecimento na passeata do dia  citado empunhando bandeiras do partido, sofreu duro revés, acachapante diria, pois a manifestação não admitia esse tipo de oportunismo e estandartes foram rasgados ou retirados. Fiquei atento a uma frase pronunciada por um dos presentes a um jornalista da AFP para o “Le Point” da França, sob o título “Manifestations historiques au Brésil” (21/06), em que afirma que continuaria a votar em Dilma para que as reformas no país possam ser aceleradas. Preocupante. Há um partido desde 2002 a comandar o país.  Esse mesmo jornalista francês ouviu frases enfáticas dirigidas aos simpatizantes do PT no momento em que o povo não permitiu o agitar das bandeiras: “Opportunistes ! Partez à Cuba ! Partez au Venezuela !”  A situação é grave e pode prenunciar caminhos para radicalismos futuros sem precedentes. Tenta-se blindar de todas as maneiras a Nomenklatura, como se estivesse o governo de Brasília na oposição! Oposição essa, diga-se, pífia, pois polifacetada e com discursos críticos não cirúrgicos, mas evasivos. Quem protesta é a sociedade apartidária consciente, a contrariar palavras infelizes do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, ao dizer que sem partidos tem-se a ditadura, ou outras, não menos inquietantes, a culpar a mídia pelo o que está a ocorrer.  É a sociedade que está a clamar por condições, ao menos potáveis, nas áreas da Saúde, Educação e Segurança e contra a paquidérmica burocracia, que tanto suga do contribuinte, assim como a vociferar contra a endêmica corrupção. Esporadicamente, sem prazer algum,  comento rumos tortuosos de nossa política. Nenhuma novidade escrevi, apenas deduzi e ouvi pessoas de determinadas camadas sociais, mormente a popular e a média, pois preferencialmente, nos deslocamentos pela cidade, utilizo-me de ônibus públicos em horários com menor afluxo de passageiros. Basicamente não tenho ligações com as denominadas camadas abastadas ou elites. Tampouco tenho tendência para qualquer partido, não me relacionando, felizmente, com nenhum político. Contudo, reflexões surgem a partir de determinados inchaços da máquina pública que desafiam a lei física da ocupação de espaço: Qual não foi o aumento de comissionados na esfera pública nestes últimos anos? Se conclamados para se apresentarem para o desempenho de suas funções, esses e mais os apadrinhados não poderiam, no mesmo instante, friso, ocupar salas que lhe são destinadas. O número extravasa e muito e é o contribuinte que arca com todas as despesas, pois o governo não gera rendas, só arrecada e distribui parcamente. Como gostaria de ouvir a Presidente dizer que milhares não mais necessitam receber os 70 reais, essa esmola destinada aos desvalidos. Isso sim seria progresso. Contudo, os votos saem da massa desafortunada que recebe esses parcos reais.  

As causas de muitas revoluções são por vezes periféricas. Que nos ensine a Revolução Francesa de 1789, que teve manifestantes invadindo uma Bastilha com pouquíssimos prisioneiros. O jornal francês “Le Monde” de 26 de Junho aponta nossas manifestações tendo como estopim a mínima parcela de um euro e os vinte centavos foram, na realidade, pretexto para um basta generalizado. Apesar de não gostar do tema, como expressei em tantos posts, tudo o que está a ocorrer já estava anunciado através dos desmandos: corrupção generalizada, gastos exacerbados dos que detêm o poder, pródigos cartões corporativos, viagens da cúpula ao Exterior com gastos nababescos, segurança basicamente nula, minoridade assassina, droga a infestar a sociedade, conluio governo-empreiteiras-construtoras, obras faraônicas abandonadas, estradas semidestruídas, ausência quase que total de vias férreas, portos ultrapassados que enriquecem com o acúmulo de containers e com a imensa lentidão do embarque e desembarque dos navios, Mensalão que caminha para as calendas com figuras proeminentes do PT, Mensalinho que nem sequer teve início, a envolver figuras do PSDB, personagens republicanos que se perpetuam apesar de fichas imundas e tantas mais mazelas, guetos impenetráveis nas grandes cidades controlados pelos chefes do tráfico, movimentos como o MST, que obtém polpudas verbas e destrói o campo produtor com invasões insanas e violentas, os três Poderes caindo no descrédito. Somatória de governos em que a corrupção esteve presente, mormente nestes últimos dez anos, com escândalos que estiveram sempre estourando, e a Justiça extremamente morosa a beneficiar com essa situação decisões que certamente levariam colarinhos brancos para trás das grades. Por fim, toda essa discussão em torno da PEC 37 que, devido à pressão da sociedade, certamente fez o Legislativo recuar. Se aprovada, tiraria o direito e o dever do Ministério Público de apurar delitos praticados por figuras poderosas.

Sob outra égide, desde o início sabia-se que abrigar três eventos, como as futebolísticas Copas das Confederações e do Mundo e mais as Olimpíadas, iria acarretar desvios incomensuráveis de verbas que deveriam ser destinadas às tantas áreas carentes do Brasil. O grito de satisfação dos políticos brasileiros no Exterior, ao serem anunciados os eventos em nosso país, traduzia o prenúncio de espúria festança com a associação governo, empreiteiras e construtoras. O que se apreendeu pela mídia é a realidade, os gastos foram fabulosamente superiores ao previsto. Enorme verba pública está sendo destinada para as realizações esportivas que, diga-se, são passageiras e voláteis, mas que, mercê da farta gastança, deixará espalhados pelo país muitos Mamutes Albinos. Mais um ingrediente para essa gota transbordar.

Quem sabe essa manifestação, rigorosamente inédita no Brasil, sensibilize governantes. Precisamos de líderes verdadeiros, que não se comprometam com conluios estranhos para a perpetuação no poder. A aproximação, para fins inconfessáveis, de partidos  antagônicos, de políticos – antes ferrenhos inimigos e ideologicamente distantes – com pactos de “eterna” amizade através de sorrisos e afagos, a prodigalização de verbas para emendas parlamentares, a acomodação de figuras sem quaisquer experiências anteriores em Ministérios e Secretarias fundamentais, fazem parte dessa substancial gota d’água que ora escorre. Como confiar num governo que entrega um Ministério importante a um apaniguado, sem a menor experiência na área? Quantos são os Ministérios em Brasília ou Secretarias de Estado ou de Município pelo país que têm profissionais verdadeiros e apartidários? Isso tudo é amar o país, querer servi-lo para o bem de todos, ou é apenas aguardar apoio que reconduza governante e partido novamente ao Poder? Como esta palavra tem feitiço!    

Governantes têm de ouvir o povo que esteve presente maciçamente nas ruas e praças. Sem essa atitude, poderemos estar a caminho de recrudescimento das ações de multidões insatisfeitas ou entrando numa sinistra senda totalitária. O certo é que não mais estamos anestesiados. Contudo, evitemos a conturbação. Mensagens, o povo soube transmiti-las. A persistência das manifestações poderá não ser benéfica ao país. Há necessidade da decantação, única possibilidade para que ânimos voltem a serenar.

A presidente se pronunciou no dia de São João a favor do Plebiscito e de uma Constituinte. Que a sociedade esteja atenta às intenções! A Constituinte já estaria descartadas, mas… Que o Santo nos guarde!

This post discusses the recent protests that swept the country. The tipping point of the demonstrations was the bus fare increase, but the focus soon changed to other issues: corruption, high taxes in exchange for poor public services, vast sums spent on hosting the Confederatin Cup and the 2014 World Cup. The outcome of the riots is uncertain: maybe manifestations won’t achieve anything, political parties may capitalize on social unrest and return to totalitarianism is always lurking around. Let’s hope for the best.

Manuscrito versus Obra Impressa

Nunca e em passagem alguma o texto musical notado é idêntico à obra;
antes é sempre necessário captar, na fidelidade ao texto,
aquilo que ele oculta dentro de si.
Sem tal dialética, a fidelidade transforma-se em traição.
Theodor Adorno

Ao escrever artigo em tributo à grande gregorianista Júlia d’Almendra abordei a qualidade da escrita da ilustre homenageada (vide:  “A transparência através das cartas”, Site, item Artigos), debruçando-me não apenas no conteúdo das missivas, mas na transformação da caligrafia durante nossa profícua troca de missivas entre 1981 a 1990. A cada duas ou três semanas cartas eram recebidas de ambas as partes e nossa correspondência epistolar encontra-se preservada no Centro Ward Júlia de Almendra, em Lisboa.

Importante considerar que essa tradição basicamente estiolou-se com o avanço progressivo dos PCs, inicialmente, e com o estonteante avanço tecnológico, a tornar cada vez mais impessoal  e volátil a troca de mensagens. Quantos são aqueles que têm a paciência ou a disciplina de preservar a mensagem eletrônica, se considerada for a massa humana extraordinária que está a cada segundo trocando informações, e-mails e outras mensagens? Seria algo para lamentação de saudosistas? Creio ser a realidade inexorável e a ela temos de nos adaptar. O certo é que a tecnologia trouxe a comunicação em velocidade espantosa e benefícios muitos, mas deixou pelo caminho processos importantes para o desvelamento da obra de arte musical e literária.

Há no manuscrito a presença integral da alma do autor. Relatei, no artigo sobre Júlia d’Almendra, que apreendia seu estado de espírito através do cabeçalho do envelope. Nessa circunstância previa o conteúdo, se descontraído, esperançoso ou envolto em sombrias névoas. Assim também comentei o fac-simile dos Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, que serviu para o estudo fundamental da obra. Fi-lo também com a integral para piano de Claude Debussy e com obras de Henrique Oswald. Comentei, em posts bem anteriores, todo o processo de investigação concernente ao dramático Canto de Amor e de Morte, do grande compositor Fernando Lopes Graça, em seu original para piano. Toda a angústia de um homem atormentado lá está, e as rasuras que inutilizam compassos ou as notas corrigidas sobre as já traçadas evidenciam a ânsia do músico em vê-lo terminado.

Mário Vieira de Carvalho, ilustre professor, pensador e sociólogo musical português, observa em texto exemplar (“A Partitura como Espírito Sedimentado: em Torno da Teoria da Interpretação Musical de Adorno” – 2003) ao comentar posição de Theodor Adorno sobre a prevalência do manuscrito: “Adorno interessa-se sobretudo pelo que a caligrafia musical pode revelar quanto à dimensão gestual-figurativa da música, quanto ao seu elemento mímico, que, em larga medida, se perde com a transposição para os sinais dir-se-ia reificados e normalizados da edição impressa. Qualquer músico fica profundamente impressionado quando se lhe depara, pela primeira vez, por exemplo, um dos autógrafos de Beethoven”.

O manuscrito faz parte de um passado. Fundamental para o conhecimento intrínseco de uma obra, seja ela musical ou literária. Há subjetividades que só ele contém. Percebe-se o processo canhestro de um menos favorecido pelas musas. Tudo está expresso e as rasuras, tão comuns em tantos autores da maior expressão, apenas ratificam a certeza da hesitação, da reinvenção do processo criativo, dos riscos que inutilizam frase literária ou compassos musicais, mas que são o húmus que substancia o que vem após. O manuscrito é, e os que permanecem tornam-se a luz que leva ao conhecimento do ato criativo de um autor.

A tecnologia levou-nos a só ter diante dos olhos a obra impressa. Basicamente  todos recorrem aos novos processos, que são hoje ferramentas para a criação. O que constrange em certo ponto é o fato de nos depararmos com impressões pasteurizadas, saídas de programas similares do compositor ou escritor de grande mérito ou do medíocre exemplar. Não há mais retorno. É fato. O leitor ou o intérprete não conhecerá a hesitação que levou à certeza da definição. Até mesmo a gravação sofreria os impactos do perfeccionismo. Os primórdios dos registros fonográficos foram marcados pela não edição e determinadas falhas de execução aparecem, mas que evidenciavam o todo do intérprete. Certa vez um músico romeno me disse sobre a gravação editada, o que a coloca em outro patamar frente à composição ou a obra literária: “editada ou não, a alma do músico lá está, se por acaso ele a tiver”.

Estou a me lembrar que, na elaboração de três coletâneas que organizei na Universidade de São Paulo nos anos 1980, homenageando compositores referenciais brasileiros – Henrique Oswald (1985), Villa-Lobos (por ocasião de seu centenário em 1987) e Camargo Guarnieri (1989) – recebi 24 preciosas colaborações. Nos cadernos dedicados a Henrique Oswald e Villa-Lobos cinco compositores internacionais relevantes, como Jorge Peixinho (1940-1995), Ramón Barce (1928-2008), Aurelio de la Vega (1925- ), Wilhelm Zobl (1950-1991) e Stephen Hartke (1952- ), enviaram fotocópias de manuscritos, extraordinários contributos. Outros tempos. Contudo, chamavam-me a atenção, quando da preparação dos dois primeiros cadernos que apresentei em várias cidades do Brasil e do Exterior (meu ex-aluno Helder Araújo se encarregou de apresentar as seis homenagens a Camargo Guarnieri), a diferença da escrita, a personalidade (conceito subjetivo, no caso) dos autores, e especificamente na obra de Jorge Peixinho, esta a evidenciar uma força telúrico-impulsiva que propiciava ao intérprete uma atenção redobrada, a envolver outras percepções.

Diferentemente, nos últimos quinze anos as dezenas de Estudos para piano (tantos extraordinários), que estão a compor uma panorâmica da criação específica contemporânea para piano iniciada em 1985 (circa  noventa, quase todos por mim apresentados no país e no Exterior), já vêm, a maioria, em programas computadorizados. Salientaria os 15 Estudos do belga Raoul de Smet (1936- ), cuidadosamente compostos em mais de um lustro a partir de nossos entendimentos a respeito do técnico-pianístico, do francês François Servenière (1961- ), que criou a partir das magníficas telas do saudoso Luca Vitali, oito Études Cosmiques e do português Eurico Carrapatoso (1962- ), que compôs a singular Missa sem Palavras (cinco Estudos Litúrgicos).   Se Gilberto Mendes (1922- ) honrou-me com sete Estudos compostos ao longo de 20 anos e escritos com pena nítida e precisa, outros sete foram-me dedicados pelo também belga flamengo, o pós-modernista Boudewijn Buckinx (1945- ), identificado prontamente por seus manuscritos peculiares. Almeida Prado (1943-2010) escreveria quatro  e Gheorghi Arnaoudov (1957- ) da Bulgária um precioso Estudo Et Iterum Venturus. Mendes, Buckinx, Almeida Prado e Arnaoudov têm caligrafias bem diferenciadas, que fazem desvelar interioridades! Diria que a de Almeida Prado apreende na escrita personalíssima uma outra percepção da arte caligráfica. Aliás, legou-nos expressivas aquarelas. Torna-se evidente que a obra impressa facilita e muito a função da edificação da obra pelo intérprete. Na realidade deveria ser sempre o destino final de uma composição. Não obstante o fato, tendo, desde os anos 1970, convivido particularmente com manuscritos excelsos do passado, apraz-me o “trabalho” adicional que me permite ler além do que o compositor fixou no papel pautado.

  
    

O intérprete hodierno praticamente só se depara com a obra impressa. Caberá a ele saber distinguir a qualidade composicional, a sua ausência ou o simples embuste, que infelizmente existe nesse universo onde pulula legião de “compositores”. Não é difícil para quem labuta na área fazer a distinção. Quantos não se escondem no exaustivo “tratado”, em que buscam justificar uma criação específica? Quando o talento transborda, até que há mérito inconteste, mas…

Da ideia que leva à criação, do “manuscrito mental” à edição via programas específicos. Os incontáveis processos que surgem a todo instante não devem jamais obstaculizar a intenção qualitativa. Esta deve ser o norte, a bússola, a busca imaginária de um Preste João a “ajudar” o “compositor”. O simulacro está à espreita. Jamais ele esteve tão presente. Imiscui-se à evolução tecnológica extraordinária. Só o conhecimento poderá evitá-lo.

This post discusses the importance of the autograph manuscript to unveil a composer’s “soul” (his mood and intentions when composing) versus the use of modern technology with the work printed through a computer program, something that in my view prevents the interpreter from capturing the composer’s inner feelings behind the printed score.

 

 

Alguns Subsídios para o Observador Sonoro

O homem exposto de maneira contínua à luz muito forte torna-se cego.
Nossa existência é cada vez mais dominada pelo barulho ao nosso redor.
Graças ao ruído excessivo estaremos surdos em pouco tempo.

Uma outra anomalia,
que complica inutilmente a leitura de uma partitura
é aquilo que eu denominaria “escrita negra”.
Encontramos exemplos entre os maiores mestres.
Mas “o que está feito está feito”, como dizia Lady Macbeth.
Arthur Honegger

Nas trocas de e-mails com François Servenière a respeito dos Tableaux d’une Exposition, de Modeste Moussorgsky, não faltaram alusões à versão orquestral realizada por Maurice Ravel e sua projeção junto ao grande público, assim como à pintura e à literatura como sensíveis subsídios  ao entendimento essencial da música. Para o compositor Servenière ficaria sempre a sedução pela feitura extraordinária da orquestra, jamais, contudo, diminuindo o valor do original para piano. Para o pianista dá-se o inverso, mesmo que a apreciar muito a versão orquestral de Maurice Ravel.

Escreve Servenière a respeito de um de meus e-mails, pormenorizando aspectos analíticos a envolver a obra : “Amo profundamente toda essa matéria musicológica, como o amador de pintura ama saber qual pigmento ou qual método a utilizar para a feitura de uma tela, além do resultado imediato sensível. Sobre Moussorgsky, compreendo e compartilho o ponto de vista do pianista de que se deve buscar a fonte original de uma obra para ser o mais fiel à mensagem do compositor. Não há outras vias para ser fiel à grande música, nos casos do  compositor, do intérprete, do musicólogo e do crítico. Ao longo dos anos, constatei também esse fato musicológico relacionado à redução de obra orquestral para piano: a orquestra é sedutora, agrada os sentidos, seria talvez um pouco ‘panfletária’ em termos da escritura, se nos fixarmos somente nas cores, na pujança e nos timbres que encantam. É sempre necessário ter, quando escutamos uma música orquestral, o espírito da harmonia para analisar. Muitas vezes, mesmo que o contraponto seja rico, o público assíduo se deixa mui facilmente influenciar pela bela e grande sala de concertos de poderosa acústica ou do estúdio de gravação. Nesses casos, a harmonia poderá parecer pobre para um analista que busca a riqueza vertical e horizontal pura. Confesso que fiquei fascinado pela embriaguês de certas aglomerações maciças frente a músicas, como We are the champions, do grupo inglês Queen, canção que eu adorei, cantei e vociferei em 1998, quando a França ganhou a Copa do Mundo de Futebol. Desiludidos quando tentamos tocar essa peça ao piano, pois é triste, simples e pobre. É evidente que o timbre excepcional de Freddy Mercury garantiu o sucesso da canção, bem mais do que o trabalho de harmonia baseado em quatro acordes, enquando a orquestra se contenta em emitir sons da guitarra super potentes e super vitaminados. Trata-se de um hino à vitória maravilhoso, mas também uma música que não resiste a 30 segundos de análise”. É  esse um exemplo, como centenas de outros que proliferam desses grupos que cruzam os oceanos a  urrar “canções” baseadas menos no som, mas sim nos recursos eletroacústicos que elevam à estratosfera os decibéis e que nos conduzem à reflexão de um day after que, aliás, aí está.

Abordei no post anterior a resposta de jovem compositor inglês que me ofereceu um Estudo para piano de dificuldade verdadeiramente intransponível, mesmo para o pianista mais “atlético” e que jamais compusera uma Fuga, por tratar-se de forma ultrapassada. No mesmo espírito, Servenière expõe: “Não sustento discurso de esteta ou elitista  face a certos sucessos e determinadas formas de escritura. Gosto imenso de fazer também músicas fáceis e populares, pois se trata para nós de um exercício que requer talento de composição não tão propagado. Conheço numerosos compositores (a quase totalidade dos compositores sérios que saem de nossas augustas academias e conservatórios) que são incapazes de compor uma bela e simples canção, que para mim é um problema tão grave quanto aquele da incapacidade de se escrever uma nota de música e se dizer compositor. Isso para dizer que, assim como um pintor faz um desenho simples e simbólico a lápis (uma canção, no nosso caso), talento que possuíam os pintores da Renascença, todos os grandes pintores em geral, mas também artistas como Jean Cocteau ou Luca Vitali, um verdadeiro e grande compositor deve ser capaz de fazer uma melodia simples e popular e igualmente escrever uma obra magistral para orquestra. Moussorgsky, Debussy e Ravel fizeram parte dessa categoria de compositores. Tantos são os autores de nossos tempos incapazes desse mister, escrever uma melodia simples. Esqueceram-se de se comunicar com o povo. Esse contato transfere aos Tableaux d’une Exposition o charme, a qualidade intrínseca e a universalidade. A obra é de grande sabedoria composicional, mas simples na intencionalidade e abordagem. Sentimo-la  de imediato, seja o original para piano ou a versão orquestral, mesmo após seus comentários sobre intrínseca transcendência do original. Diferentemente fizeram Ravel e Debussy, que dominaram de tal forma a trama orquestral que qualquer interferência soa como traição. Sempre temos menos respeito quando nos inteiramos que este ou aquele compositor, célebre e prolixo, faz apelo a orquestradores para dar magnificência aos seus escritos. Imediatamente nos perguntamos: qual é a parte de seu talento, qual a do orquestrador ou orquestradores? Vislumbro a imagem desses profissionais que exercem o métier em Hollywood. Compreendo perfeitamente o seu purismo diante do fac-simile do manuscrito autógrafo de Moussorgsky, onde todas as revisitas orquestrais posteriores estão delineadas, tão rica é a obra em suas evocações. Era o que tinha a dizer a respeito desse assunto tão apaixonante”.

Nesse sentido evocativo inseri no CD dos Quadros de uma Exposição Cena de Coroação, da ópera Boris Godounov, de Moussorgsky (IIº quadro, cena II).  Na redução para piano realizada pelo autor há um curto segmento introdutório sem canto. Traduz em 1872 o que estaria, sob outro contexto, exposto na Grande Porta de Kiev dos Quadros… de 1874. Os sinos que anunciam a chegada do czar Boris Godounov são extraordinários. Ao gravar, lembrei-me das badaladas dos sinos da Catedral Alexandre Nevsky, em Sófia, pois estava hospedado no Hotel Bulgaria, bem próximo à basílica, quando da gravação ao piano da integral para tecla de Jean-Philippe Rameau. Procurei dimensionar gigantescos sinos ao extremo e ao final, para prolongar a sonoridade do magnífico Steinway-Sons (Grand Concert) que estava à minha disposição na Capela de Saint-Hilarius, em Mullem, na Bélgica Flamenga, realizei trêmulos quase em surdina e flexibilização do pedal, o que fez reverberar durante mais segundos as sonoridades no mágico Templo. Tive a ajuda dos magníficos baixos, oceânicos, como costumo dizer, do piano especialmente escolhido para a gravação. Nova lembrança, essa tardia e comparativa, ao ouvir os extraordinários sinos da Catedral de Notre-Dame em Paris, na comemoração dos 850 anos desse lendário monumento em Fevereiro último. A observação sonora como subsídio às ideias que as musas nos enviam.

Clique para ouvir a Cena de Coroação de Boris Godounov de Moussorgsky