Alguns Subsídios para o Observador Sonoro
O homem exposto de maneira contínua à luz muito forte torna-se cego.
Nossa existência é cada vez mais dominada pelo barulho ao nosso redor.
Graças ao ruído excessivo estaremos surdos em pouco tempo.
Uma outra anomalia,
que complica inutilmente a leitura de uma partitura
é aquilo que eu denominaria “escrita negra”.
Encontramos exemplos entre os maiores mestres.
Mas “o que está feito está feito”, como dizia Lady Macbeth.
Arthur Honegger
Nas trocas de e-mails com François Servenière a respeito dos Tableaux d’une Exposition, de Modeste Moussorgsky, não faltaram alusões à versão orquestral realizada por Maurice Ravel e sua projeção junto ao grande público, assim como à pintura e à literatura como sensíveis subsídios ao entendimento essencial da música. Para o compositor Servenière ficaria sempre a sedução pela feitura extraordinária da orquestra, jamais, contudo, diminuindo o valor do original para piano. Para o pianista dá-se o inverso, mesmo que a apreciar muito a versão orquestral de Maurice Ravel.
Escreve Servenière a respeito de um de meus e-mails, pormenorizando aspectos analíticos a envolver a obra : “Amo profundamente toda essa matéria musicológica, como o amador de pintura ama saber qual pigmento ou qual método a utilizar para a feitura de uma tela, além do resultado imediato sensível. Sobre Moussorgsky, compreendo e compartilho o ponto de vista do pianista de que se deve buscar a fonte original de uma obra para ser o mais fiel à mensagem do compositor. Não há outras vias para ser fiel à grande música, nos casos do compositor, do intérprete, do musicólogo e do crítico. Ao longo dos anos, constatei também esse fato musicológico relacionado à redução de obra orquestral para piano: a orquestra é sedutora, agrada os sentidos, seria talvez um pouco ‘panfletária’ em termos da escritura, se nos fixarmos somente nas cores, na pujança e nos timbres que encantam. É sempre necessário ter, quando escutamos uma música orquestral, o espírito da harmonia para analisar. Muitas vezes, mesmo que o contraponto seja rico, o público assíduo se deixa mui facilmente influenciar pela bela e grande sala de concertos de poderosa acústica ou do estúdio de gravação. Nesses casos, a harmonia poderá parecer pobre para um analista que busca a riqueza vertical e horizontal pura. Confesso que fiquei fascinado pela embriaguês de certas aglomerações maciças frente a músicas, como We are the champions, do grupo inglês Queen, canção que eu adorei, cantei e vociferei em 1998, quando a França ganhou a Copa do Mundo de Futebol. Desiludidos quando tentamos tocar essa peça ao piano, pois é triste, simples e pobre. É evidente que o timbre excepcional de Freddy Mercury garantiu o sucesso da canção, bem mais do que o trabalho de harmonia baseado em quatro acordes, enquando a orquestra se contenta em emitir sons da guitarra super potentes e super vitaminados. Trata-se de um hino à vitória maravilhoso, mas também uma música que não resiste a 30 segundos de análise”. É esse um exemplo, como centenas de outros que proliferam desses grupos que cruzam os oceanos a urrar “canções” baseadas menos no som, mas sim nos recursos eletroacústicos que elevam à estratosfera os decibéis e que nos conduzem à reflexão de um day after que, aliás, aí está.
Abordei no post anterior a resposta de jovem compositor inglês que me ofereceu um Estudo para piano de dificuldade verdadeiramente intransponível, mesmo para o pianista mais “atlético” e que jamais compusera uma Fuga, por tratar-se de forma ultrapassada. No mesmo espírito, Servenière expõe: “Não sustento discurso de esteta ou elitista face a certos sucessos e determinadas formas de escritura. Gosto imenso de fazer também músicas fáceis e populares, pois se trata para nós de um exercício que requer talento de composição não tão propagado. Conheço numerosos compositores (a quase totalidade dos compositores sérios que saem de nossas augustas academias e conservatórios) que são incapazes de compor uma bela e simples canção, que para mim é um problema tão grave quanto aquele da incapacidade de se escrever uma nota de música e se dizer compositor. Isso para dizer que, assim como um pintor faz um desenho simples e simbólico a lápis (uma canção, no nosso caso), talento que possuíam os pintores da Renascença, todos os grandes pintores em geral, mas também artistas como Jean Cocteau ou Luca Vitali, um verdadeiro e grande compositor deve ser capaz de fazer uma melodia simples e popular e igualmente escrever uma obra magistral para orquestra. Moussorgsky, Debussy e Ravel fizeram parte dessa categoria de compositores. Tantos são os autores de nossos tempos incapazes desse mister, escrever uma melodia simples. Esqueceram-se de se comunicar com o povo. Esse contato transfere aos Tableaux d’une Exposition o charme, a qualidade intrínseca e a universalidade. A obra é de grande sabedoria composicional, mas simples na intencionalidade e abordagem. Sentimo-la de imediato, seja o original para piano ou a versão orquestral, mesmo após seus comentários sobre intrínseca transcendência do original. Diferentemente fizeram Ravel e Debussy, que dominaram de tal forma a trama orquestral que qualquer interferência soa como traição. Sempre temos menos respeito quando nos inteiramos que este ou aquele compositor, célebre e prolixo, faz apelo a orquestradores para dar magnificência aos seus escritos. Imediatamente nos perguntamos: qual é a parte de seu talento, qual a do orquestrador ou orquestradores? Vislumbro a imagem desses profissionais que exercem o métier em Hollywood. Compreendo perfeitamente o seu purismo diante do fac-simile do manuscrito autógrafo de Moussorgsky, onde todas as revisitas orquestrais posteriores estão delineadas, tão rica é a obra em suas evocações. Era o que tinha a dizer a respeito desse assunto tão apaixonante”.
Nesse sentido evocativo inseri no CD dos Quadros de uma Exposição a Cena de Coroação, da ópera Boris Godounov, de Moussorgsky (IIº quadro, cena II). Na redução para piano realizada pelo autor há um curto segmento introdutório sem canto. Traduz em 1872 o que estaria, sob outro contexto, exposto na Grande Porta de Kiev dos Quadros… de 1874. Os sinos que anunciam a chegada do czar Boris Godounov são extraordinários. Ao gravar, lembrei-me das badaladas dos sinos da Catedral Alexandre Nevsky, em Sófia, pois estava hospedado no Hotel Bulgaria, bem próximo à basílica, quando da gravação ao piano da integral para tecla de Jean-Philippe Rameau. Procurei dimensionar gigantescos sinos ao extremo e ao final, para prolongar a sonoridade do magnífico Steinway-Sons (Grand Concert) que estava à minha disposição na Capela de Saint-Hilarius, em Mullem, na Bélgica Flamenga, realizei trêmulos quase em surdina e flexibilização do pedal, o que fez reverberar durante mais segundos as sonoridades no mágico Templo. Tive a ajuda dos magníficos baixos, oceânicos, como costumo dizer, do piano especialmente escolhido para a gravação. Nova lembrança, essa tardia e comparativa, ao ouvir os extraordinários sinos da Catedral de Notre-Dame em Paris, na comemoração dos 850 anos desse lendário monumento em Fevereiro último. A observação sonora como subsídio às ideias que as musas nos enviam.
Clique para ouvir a Cena de Coroação de Boris Godounov de Moussorgsky
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