Manuscrito versus Obra Impressa

Nunca e em passagem alguma o texto musical notado é idêntico à obra;
antes é sempre necessário captar, na fidelidade ao texto,
aquilo que ele oculta dentro de si.
Sem tal dialética, a fidelidade transforma-se em traição.
Theodor Adorno

Ao escrever artigo em tributo à grande gregorianista Júlia d’Almendra abordei a qualidade da escrita da ilustre homenageada (vide:  “A transparência através das cartas”, Site, item Artigos), debruçando-me não apenas no conteúdo das missivas, mas na transformação da caligrafia durante nossa profícua troca de missivas entre 1981 a 1990. A cada duas ou três semanas cartas eram recebidas de ambas as partes e nossa correspondência epistolar encontra-se preservada no Centro Ward Júlia de Almendra, em Lisboa.

Importante considerar que essa tradição basicamente estiolou-se com o avanço progressivo dos PCs, inicialmente, e com o estonteante avanço tecnológico, a tornar cada vez mais impessoal  e volátil a troca de mensagens. Quantos são aqueles que têm a paciência ou a disciplina de preservar a mensagem eletrônica, se considerada for a massa humana extraordinária que está a cada segundo trocando informações, e-mails e outras mensagens? Seria algo para lamentação de saudosistas? Creio ser a realidade inexorável e a ela temos de nos adaptar. O certo é que a tecnologia trouxe a comunicação em velocidade espantosa e benefícios muitos, mas deixou pelo caminho processos importantes para o desvelamento da obra de arte musical e literária.

Há no manuscrito a presença integral da alma do autor. Relatei, no artigo sobre Júlia d’Almendra, que apreendia seu estado de espírito através do cabeçalho do envelope. Nessa circunstância previa o conteúdo, se descontraído, esperançoso ou envolto em sombrias névoas. Assim também comentei o fac-simile dos Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, que serviu para o estudo fundamental da obra. Fi-lo também com a integral para piano de Claude Debussy e com obras de Henrique Oswald. Comentei, em posts bem anteriores, todo o processo de investigação concernente ao dramático Canto de Amor e de Morte, do grande compositor Fernando Lopes Graça, em seu original para piano. Toda a angústia de um homem atormentado lá está, e as rasuras que inutilizam compassos ou as notas corrigidas sobre as já traçadas evidenciam a ânsia do músico em vê-lo terminado.

Mário Vieira de Carvalho, ilustre professor, pensador e sociólogo musical português, observa em texto exemplar (“A Partitura como Espírito Sedimentado: em Torno da Teoria da Interpretação Musical de Adorno” – 2003) ao comentar posição de Theodor Adorno sobre a prevalência do manuscrito: “Adorno interessa-se sobretudo pelo que a caligrafia musical pode revelar quanto à dimensão gestual-figurativa da música, quanto ao seu elemento mímico, que, em larga medida, se perde com a transposição para os sinais dir-se-ia reificados e normalizados da edição impressa. Qualquer músico fica profundamente impressionado quando se lhe depara, pela primeira vez, por exemplo, um dos autógrafos de Beethoven”.

O manuscrito faz parte de um passado. Fundamental para o conhecimento intrínseco de uma obra, seja ela musical ou literária. Há subjetividades que só ele contém. Percebe-se o processo canhestro de um menos favorecido pelas musas. Tudo está expresso e as rasuras, tão comuns em tantos autores da maior expressão, apenas ratificam a certeza da hesitação, da reinvenção do processo criativo, dos riscos que inutilizam frase literária ou compassos musicais, mas que são o húmus que substancia o que vem após. O manuscrito é, e os que permanecem tornam-se a luz que leva ao conhecimento do ato criativo de um autor.

A tecnologia levou-nos a só ter diante dos olhos a obra impressa. Basicamente  todos recorrem aos novos processos, que são hoje ferramentas para a criação. O que constrange em certo ponto é o fato de nos depararmos com impressões pasteurizadas, saídas de programas similares do compositor ou escritor de grande mérito ou do medíocre exemplar. Não há mais retorno. É fato. O leitor ou o intérprete não conhecerá a hesitação que levou à certeza da definição. Até mesmo a gravação sofreria os impactos do perfeccionismo. Os primórdios dos registros fonográficos foram marcados pela não edição e determinadas falhas de execução aparecem, mas que evidenciavam o todo do intérprete. Certa vez um músico romeno me disse sobre a gravação editada, o que a coloca em outro patamar frente à composição ou a obra literária: “editada ou não, a alma do músico lá está, se por acaso ele a tiver”.

Estou a me lembrar que, na elaboração de três coletâneas que organizei na Universidade de São Paulo nos anos 1980, homenageando compositores referenciais brasileiros – Henrique Oswald (1985), Villa-Lobos (por ocasião de seu centenário em 1987) e Camargo Guarnieri (1989) – recebi 24 preciosas colaborações. Nos cadernos dedicados a Henrique Oswald e Villa-Lobos cinco compositores internacionais relevantes, como Jorge Peixinho (1940-1995), Ramón Barce (1928-2008), Aurelio de la Vega (1925- ), Wilhelm Zobl (1950-1991) e Stephen Hartke (1952- ), enviaram fotocópias de manuscritos, extraordinários contributos. Outros tempos. Contudo, chamavam-me a atenção, quando da preparação dos dois primeiros cadernos que apresentei em várias cidades do Brasil e do Exterior (meu ex-aluno Helder Araújo se encarregou de apresentar as seis homenagens a Camargo Guarnieri), a diferença da escrita, a personalidade (conceito subjetivo, no caso) dos autores, e especificamente na obra de Jorge Peixinho, esta a evidenciar uma força telúrico-impulsiva que propiciava ao intérprete uma atenção redobrada, a envolver outras percepções.

Diferentemente, nos últimos quinze anos as dezenas de Estudos para piano (tantos extraordinários), que estão a compor uma panorâmica da criação específica contemporânea para piano iniciada em 1985 (circa  noventa, quase todos por mim apresentados no país e no Exterior), já vêm, a maioria, em programas computadorizados. Salientaria os 15 Estudos do belga Raoul de Smet (1936- ), cuidadosamente compostos em mais de um lustro a partir de nossos entendimentos a respeito do técnico-pianístico, do francês François Servenière (1961- ), que criou a partir das magníficas telas do saudoso Luca Vitali, oito Études Cosmiques e do português Eurico Carrapatoso (1962- ), que compôs a singular Missa sem Palavras (cinco Estudos Litúrgicos).   Se Gilberto Mendes (1922- ) honrou-me com sete Estudos compostos ao longo de 20 anos e escritos com pena nítida e precisa, outros sete foram-me dedicados pelo também belga flamengo, o pós-modernista Boudewijn Buckinx (1945- ), identificado prontamente por seus manuscritos peculiares. Almeida Prado (1943-2010) escreveria quatro  e Gheorghi Arnaoudov (1957- ) da Bulgária um precioso Estudo Et Iterum Venturus. Mendes, Buckinx, Almeida Prado e Arnaoudov têm caligrafias bem diferenciadas, que fazem desvelar interioridades! Diria que a de Almeida Prado apreende na escrita personalíssima uma outra percepção da arte caligráfica. Aliás, legou-nos expressivas aquarelas. Torna-se evidente que a obra impressa facilita e muito a função da edificação da obra pelo intérprete. Na realidade deveria ser sempre o destino final de uma composição. Não obstante o fato, tendo, desde os anos 1970, convivido particularmente com manuscritos excelsos do passado, apraz-me o “trabalho” adicional que me permite ler além do que o compositor fixou no papel pautado.

  
    

O intérprete hodierno praticamente só se depara com a obra impressa. Caberá a ele saber distinguir a qualidade composicional, a sua ausência ou o simples embuste, que infelizmente existe nesse universo onde pulula legião de “compositores”. Não é difícil para quem labuta na área fazer a distinção. Quantos não se escondem no exaustivo “tratado”, em que buscam justificar uma criação específica? Quando o talento transborda, até que há mérito inconteste, mas…

Da ideia que leva à criação, do “manuscrito mental” à edição via programas específicos. Os incontáveis processos que surgem a todo instante não devem jamais obstaculizar a intenção qualitativa. Esta deve ser o norte, a bússola, a busca imaginária de um Preste João a “ajudar” o “compositor”. O simulacro está à espreita. Jamais ele esteve tão presente. Imiscui-se à evolução tecnológica extraordinária. Só o conhecimento poderá evitá-lo.

This post discusses the importance of the autograph manuscript to unveil a composer’s “soul” (his mood and intentions when composing) versus the use of modern technology with the work printed through a computer program, something that in my view prevents the interpreter from capturing the composer’s inner feelings behind the printed score.