Miguel Sousa Tavares e o Prazer da Narrativa
“O livro é quase um serviço público:
tem que dar aos outros qualquer coisa em termos de informação,
de distração, de romancear.
Fazer o leitor ficar pensando nos personagens, no romance, na história.
Tem que deixá-lo imaginar.
E não basta escrever bem,
tão bem que o leitor a certa altura pare de ler
porque não está a seguir uma história, mas um texto literário”.
Miguel Sousa Tavares
A narrativa de aventura pode ter multidirecionamentos e interpretações a partir da índole, do acervo cultural e do objetivo proposto de um autor. Tantos foram os livros percorridos a respeito de montanhismo, mormente no Himalaia, que se transformaram em posts. O leitor tem suas preferências e destina sua atenção à temática que mais o agrada nesse rico compartimento das aventuras.
De minha amiga e doutoranda portuguesa em musicologia – Universidade de Évora -, Profª Ana Cristina Bernardo, que recentemente voltou ao Brasil para me apresentar programa dedicado à música de câmara contemporânea portuguesa com piano, objeto de suas pesquisas de doutorado, do qual estou como coorientador, recebi um segundo mimo, o livro do jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares (“Sul-Viagens”. Cruz Quebrada, Oficina do Livro, 11ª edição, 2008). Na primeira vinda ofereceu-me precioso livro do grande alpinista português João Garcia (vide “A mais Alta Solidão – O Primeiro Português no Cume do Evereste”, 28/07/2012).
Forçosamente sou tentado a fazer pequeno comentário sobre a narrativa de aventura, pois antolham-se-me duas apreensões, entre tantas, da empreitada a ser realizada. Vários posts foram dedicados às narrativas das aventuras solitárias empreendidas pelo francês Sylvain Tesson. Outros mais virão. Os solilóquios, transformados em textos, vão sempre além da descrição e não raras vezes partem para a idealização ou a interpretação objetiva. O universo simbólico, ao longo do percurso, não faz esquecer a comparação com outras tantas viagens. Tesson mostra-se um mestre da elucubração. Andarilho, vagabond, solitário por convicção, impossibilita o subterfúgio ou a circunstância social.
Miguel Sousa Tavares tem trajetória que impõe respeito. Um dos importantes homens da mídia em Portugal, com atuação brilhante em tantos meios da comunicação, autor de vários livros, entre os quais um grande best-seller, “Equador”, que teve inúmeras traduções, Souza Tavares é filho de uma das maiores poetisas da língua portuguesa, Sophia de Mello Breyner Andresen. Dela, jamais se esqueceria de frase norteadora, “Miguel, viajar é olhar”.
As narrativas de viagens de Sousa Tavares ao Sul incluem regiões de vários continentes. Amazônia e Nordeste brasileiro, Tunísia, Moçambique, Marrocos (“Emboscada em Marráquexe”), a imensidão do Sahara na Argélia, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Goa, Guadalupe, Egito, mas também Veneza, Alhambra e o Alentejo.
À guisa de prefácio, o autor pondera “Eu sou um contador de histórias. Pagam-me para isso, pagam-me para percorrer o mundo e contar o que vi. Umas vezes vi tragédias, miséria, coisas que magoava descrever. Outras vezes vi sonhos, esperanças, histórias felizes. Este é um livro que reúne apenas a parte boa daquilo que me coube em sorte ver e contar”.
Se o prazer pela viagem existe tanto em Sylvain Tesson como em Sousa Tavares, este deslocou-se para sucessivos trabalhos fotográficos e de filmagens sob a égide da Rádio Televisão Portuguesa (RTP); portanto com grupo de profissionais da rede portuguesa. As descrições de Miguel Sousa Tavares têm essa “parte boa” do que viu. Pertinentes, pertencem à categoria do fino observar. Não negligencia, tantas vezes, o pormenor que dignifica o ser humano, a natureza ou o objeto. Há igualmente o permear o cotidiano, mormente o gastronômico, e para o leitor fica a impressão do bon gourmet tanto nos pratos que saboreia como no vinho, mencionado em momentos oportunos.
Exemplificando três narrativas em especial, poder-se-ia afirmar que transcendem na essência: “Nordeste: essa praia não tem fim?”, “Uma noite na África” e “A pista para Tamanrasset”. Da viagem ao Nordeste a percepção do litoral de praias infindas entre Natal e Fortaleza. Percorre a distância de buggy, “só com a companhia dos urubus durante o dia e das estrelas à noite. Mil quilómetros de deslumbramento…” Desperta-lhe a atenção o descaso quanto à preservação ao passar pela povoação de Aracati, que “conserva ainda uma rua de casas bem portuguesas e em bom estado de conservação. É curioso comparar esta rua portuguesa de Setecentos com a rua principal, que lhe é paralela e que é o paradigma de uma rua moderna de uma cidadezinha de interior brasileira. É a diferença entre a harmonia e o caos, entre uma arquitetura simples e bonita e um estilo vale-tudo, pejado de publicidade e de barbaridades arquitetónicas”. Mutatis mutandi, do micro ao macro, não é isso o que ocorre com São Paulo, que destruiu quase que completamente os resquícios de “arquitetura simples e bonita” e partiu para um “vale-tudo” vertical e disforme no centro expandido (necessidade do lucro) e na total descaracterização arquitetônica da periferia (necessidade premente de sobrevivência)?
Em “Uma Noite em África”, o autor a certa altura descreve com profunda agudeza a tragédia cotidiana do reino animal. Encantava-se com a savana em fim de tarde quando companheiro de viagem chama-lhe a atenção para uma cena que estava a se passar. Dois leopardos à espreita para o fatal ataque a um despreocupado antílope. A intenção de Sousa Tavares em não interromper o ato cotidiano pela vida leva-o à reflexão “… se soltasse um som ou fizesse um gesto, poderia salvar-lhe a vida, mas instintivamente eu sabia que nenhum de nós o faria: aquele era um acto da natureza, uma tragédia de todos os dias na savana e, apesar disso, a lei da vida. Nenhuma outra regra por nós ditada nos conferia o direito de com ela interferir”. No íntimo estava a torcer pela não consecução do ato fatal, que na realidade não ocorreu devido a um ruído do rádio de ondas curtas em um dos jeeps, que fez com que o antílope desaparecesse da cena.
A narrativa “A Pista para Tamanrasset” é plena de situações dramáticas. Em caravana, 15 jeeps e 4 motos atravessam parte do deserto do Sahara. O texto tem início no sétimo dia em El-Golea, uma cidade oásis da Argélia, com destino à cidade de Tamanrasset, no mesmo país do norte da África, passando por Djanet. Chegar a Tamanrasset “foi uma visão indescritível, uma sensação irrepetível – a certeza de que tínhamos atravessado todo o deserto, desde Gardhaia. Sempre em pista, sempre guiados pela bússola”. Duas situações são dignas de registro, uma comparativa: “Na Amazônia, eu tinha achado que aquela paisagem era o primeiro dia da criação do mundo, com toda aquela explosão de sinais de vida: plantas, água, animais, ruídos. Aqui, no Tassili, a paisagem é a do dia anterior à criação do mundo – o dia zero: areia, rochas, céu e silêncio. Nada mais”. Em outra, dramaticamente presenciada durante intermináveis horas, descreve uma tempestade de areia em pleno deserto: “A tempestade mexe com os nervos das pessoas, pela sensação de vulnerabilidade que causa. Primeiro que tudo, é impressionante vê-la avançar sobre nós ao longe, deixando o céu negro à medida que se vai aproximando. Depois, a violência e o ruído do vento são indescritíveis. Mesmo com os vidros fechados, parecemos fantasmas brancos dos pés à cabeça, tossindo e cuspindo areia sem parar, os olhos injectados e o nariz tão cheio de areia que quase não se consegue respirar”.
“Sul-Viagens” é livro sedutor. Manuel Sousa Tavares não tem receio de expor seus prazeres cotidianos. Está sempre a rememorar a boa mesa, com menus especiais acompanhados de bons vinhos e do cigarro, mormente quando, nas mais variadas situações durante as viagens pelo Sul, tem de se contentar com latas de conservas ou pratos que as circunstâncias determinam simplesmente palatáveis. Distingue-se de Sylvain Tesson, que minimamente se preocupa com o que comer. Contudo o andarilho francês aceita de bom grado um trago forte. Há por parte de Sousa Tavares um saber descrever essas “situações gastronômicas” em contexto por vezes pleno de humor, pois em muitos dias teve de preparar suas refeições.
As fotos que ilustram “Sul-Viagens” são magníficas e tiradas pelo autor, que apreende as mais sensíveis imagens dos lugares visitados. Talvez intencionalmente, o autor não define os lugares onde as fotos foram tiradas. Creio que seria de interesse a menção das localidades e situações. Percebe-se, contudo, que a cada espetáculo inusitado, seja da natureza, da arquitetura, do ser humano, dos companheiros de viagem ou do pormenor que o fascina, Sousa Tavares vive o alumbramento. Livro a ser visitado.
A gift from a Portuguese friend, the book “Sul – Viagens” was a pleasant reading. The author, the newsman and writer Miguel Sousa, records his experiences touring the Southern Hemisphere. Among the places visited, the Brazilian Amazon, Tunisia, Egypt, Cape Verde, Mozambique, Goa and the Sahara. His focus are the good experiences: stories that dignify men, new dishes he has tried, good wines tasted, a dramatic but unforgetable sandstorm in the Sahara, all illustrated with magnificent pictures taken by the author himself. A book worth reading for lovers of travel literature.