A Liberdade Individual como Fundamento
La solitude,
compagne qui ne s’enfuira jamais.
Sylvain Tesson
Ao transpor o Atlântico levo sempre meus livros. Nessa circunstância, preferencio leitura prazerosa, de aventura, curtas narrativas ou romances. Se somar livros onde a concentração torna-se imperativa à atividade musical intensa que se me antolha, deixarei uma parte de mim em desequilíbrio. A cada um entender suas necessidades.
Em várias viagens a leitura dos livros de um de meus autores preferidos, Sylvain Tesson, andarilho, vagabond (não na conceituação que cá atribuímos), wanderer, mas pensador arguto, que sabe auscultar aqueles que lhe cruzam o caminho e que faz da reflexão a sua segunda respiração. A obsessiva apreensão da liberdade do homem, sob quaisquer circunstâncias, é-lhe clausula petrea. Suas armas, andar, olhar e escrever. O planeta percorrido a pé, por vezes de bicicleta e, em casos especiais, a cavalgar velhos animais.
No livro “Sous l’Étoile de la Liberté” (Paris, Arthaud Poche, 2012), Sylvain Tesson, sob outro contexto, (re) narra a epopeia que resultou “L’axe du loup”, onde descreve sua caminhada da Sibéria à Índia sobre os passos dos fugitivos do gulag (o item “Livros – Resenhas e Comentários” do menu do blog contém a lista das obras de Sylvain Tesson comentadas em posts). O gesto em direção à liberdade é ampliado e “Sous l’Étoile de la Liberté” apresenta-se extraordinariamente bem documentado fotograficamente por Thomas Goisque, que em quatro oportunidades – Sibéria, Mongólia, Lhassa e Darjeeling – junta-se a Tesson nessa longa caminhada basicamente solitária de 6.000km. O autor revela que a vontade a impulsioná-lo à travessia de “L’axe du loup” teria reflexos posteriores em uma interpretação mais vasta sobre o anseio do homem de poder viver em liberdade. O recontar a história fá-lo refletir não apenas nos gulags da extinta União Soviética, mas também nos laogais da China, campos de “reeducação” onde milhões de cidadãos foram recolhidos. O trabalho forçado destinava-se à construção de obras, extração de minérios e tantas outras atividades onde ao raro descanso somava-se à alimentação escassa. Tantos sucumbiram. Glorifica a fuga nessas circunstâncias, pois campos de “reeducação” (eufemismo) ou de concentração correspondem ao que de mais vil pode ser “oferecido” ao ser humano. “A fuga assemelha-se ao corredor da morte, mas que definitivamente pode levar à vida”, comenta Tesson.
Escapar de um gulag representava a entrada em um mundo inóspito, pois a Sibéria exibe mil perigos: frio, fome, ursos, tempestades, torrentes, pântanos e a morte sempre à espreita. A travessia pela Mongólia, nessa conceituação diversa daquela de “L’axe du loup”, iria levá-lo às considerações relevantes sobre a maneira nômade de viver, mas também ao sacrifício que levou tantos mongóis ao trabalho escravo em campos de “reeducação” ou à morte. União Soviética e China não são poupadas. Sylvain Tesson, ao atravessar os vastos espaços, refez as tragédias. Enumera milhões de vítimas. Ao passar pelo Tibete não poupa chineses pelo massacre, pouco comentado no Ocidente, de milhões de tibetanos. Lhassa, a antiga capital da mística budista, hoje se transformou numa cidade militar e a monumental estrada ferroviária que está a ser construída, ligando Pequim à outrora capital da meditação, tem quantidade não calculada de trabalhadores, onde se misturam funcionários, recrutados e sabe-se mais quem e em quais condições. Ainda hoje tantos tibetanos buscam a fuga pelas estreitas gargantas himalaias rumo à India. Muitos perecem.
Sylvain Tesson não poupa críticas a Lenin, Stalin e Hitler, a seu ver os três mais cruéis títeres da recente história do mundo. Outros menores, mas não menos cruentos, não são nomeados, mas explícito fica que a privação da liberdade individual é desiderato de ditadores que se perenizam no poder e, portanto, fulcro central das preocupações do autor. Dissidentes exterminados em massa ou levados aos campos de “reeducação”, a proibição de atravessar fronteiras, a privar o homem de escolher seu caminho, são aspectos que não passam ao largo na pena de Tesson. Insiste, e metáforas são constantes em seu discurso. Observa que “o fugitivo não deixa traços atrás de si, assim como o martim-pescador não molha suas penas ao mergulhar”. A repressão desperta a vontade dos mais intrépidos nessa busca incessante pelo arejamento.
A crítica que Tesson faz ao longo período da ex União Soviética e ao regime chinês é de rara acuidade e gulags e laogais ainda existem! Bem perto de nós, não assistimos no “gulag tropical cubano”, segundo Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura em 2010, ao famigerado “El Paredón”, a exterminar milhares de dissidentes, provocando a evasão dos que buscaram no mar a liberdade? Muitos conseguiram, outros foram recapturados e tantos mais desapareceram nas águas caribenhas. Infelizmente, ideólogos espalhados pelos continentes, mormente na nossa América Latina, ainda “cultuam” regimes totalitários, apesar de seus ditadores não tolerarem o gesto mínimo da oposição.
Estou a me lembrar de Junho de 1989, meses antes da queda do Muro de Berlim, quando, na antiga República Democrática Alemã (RDA) para três recitais de piano em Potsdam e Berlim Oriental, certo fim de tarde, a tomar chá no apartamento de uma amiga, esta nostalgicamente mostrou-me da janela aviões partirem do aeroporto de Berlim Ocidental. Perguntei-lhe qual o seu grande sonho. A resposta imediata da amiga foi o de atravessar a fronteira transpondo o muro de Berlim, e partir. Faltava-lhe a coragem, pois amigos seus perderam a vida tentando a fuga. Hoje vive no Canadá com seu filho. É essa inalienável liberdade individual que Tesson defende com raro empenho ao afirmar que é “à celebração da figura do fugitivo político que eu consagrei minha longa caminhada…”.
“L’Étoile de la Liberté” revela, sob outra égide, reflexões precisas sobre aspectos do viajante solitário. Henry de Montherlant já observara que esse andarilho é um diabo, Paul Valéry escrevera que o homem só estava em má companhia. Tesson, antes de partidas, supõe que a solidão possa ser sua maior inimiga. Comenta: “Eu não a conhecia, mas na verdade trata-se de uma companhia maravilhosa. Deveríamos denominá-la Felicidade. A solidão é a mais bela dádiva que se pode oferecer à alma. Ela mantém o equilíbrio entre nós mesmos e o mundo exterior, ela renova a ligação entre o ser e o cosmos. A solidão é um meio de transporte, uma infatigável parelha. Ela provoca sofrimento. Senti-me surpreso, por vezes, a falar em voz alta para espantá-la. Maldisse-a nas estepes, onde não há uma só árvore para se encostar ou se enforcar. Quando, após curta ou longa siesta, depois de ter sonhado com parentes e amigos, acordava e, só, no absolutamente nada, cercado pelo vazio, a solidão apertava meu coração. O resto do tempo, ela estufava minha alma como o vento que preenche a vela” (tradução jem).
Reconhece Sylvain Tesson que o livro de Slavomir Rawicz, “À Marche Forcée”, inspirou-o a refazer a caminhada empreendida pelo fugitivo polonês de um gulag na Sibéria a Calcutá, na Índia. O relato de Rawicz, tão contestado por especialistas, não impediu a vontade de Tesson de empreender o trajeto. Importa ao autor a essência da liberdade, que levou e leva milhares de homens e mulheres a correrem tantos riscos numa “marcha forçada” para escapar dos grilhões. Afirma: “E é precisamente pelo fato de serem muitos a embrenhar-se pelas sendas, aceitando ir além do perigo, sempre a pensar na liberdade como fim, que a questão de saber se Rawicz mentiu perde todo o interesse”. Importa a Tesson o fato transparente, a soberana possibilidade de o homem ser livre e escolher seu destino. O fugitivo político é, antes de tudo, um ser humano em busca da sagrada liberdade e essa conquista é tão mais reverenciada pelo autor por representar um sublime ato de coragem. Infelizmente, estamos diante de triste realidade, e tanto o fugitivo político, como a massa de tantos outros que pelo planeta diariamente buscam refúgio além-fronteiras, são a grande chaga exposta da humanidade. Títeres, ditadores, absolutistas e legião de acólitos, sempre a seguir as ordens da crueldade e da subjugação dos povos, estarão sempre, hélas, a infestar os continentes. Nada a fazer, desde os primórdios da civilização.
On the book “L’Axe du Loup”, in which the French writer, geographer and adventurer Sylvain Tesson recounts his eight-month journey from Yakutsk (Siberia) to Calcultta (India), tracing – on foot, horseback or by bike – the treacherous paths followed by political prisoners who dared to escape from the Soviet labor camps in search of freedom. Also a philosopher, the experience is a chance for Tesson to reflect on nature, modern society and totalitarianism.