Navegando Posts publicados em setembro, 2013

Em Torno de Henrique Oswald

O que quero de todos os portugueses é o seguinte:
sejam curiosos; e que a organização em sociedade
possa ser de tal maneira
que eles possam satisfazer essa curiosidade completamente.
Agostinho da Silva (Entrevista)

Aterrissar no aeroporto da Portela, em Lisboa, já faz parte de meu respirar musical em terras portuguesas, berço de meu saudoso pai. A chegada, dias antes do concerto marcado para sábado, 28 de Setembro, marca a segunda récita inteiramente dedicada ao compositor romântico brasileiro Henrique Oswald, num longo espaço de 31 anos, pois o recital que ofereci no Grêmio Literário de Lisboa data de 28 de Fevereiro de 1982.

Quando Edward Luiz Ayres d’Abreu, diretor da revista quadrimestral portuguesa Glosas — que, pela qualidade e abrangência do universo lusófono, não encontra minimamente paralelo no Brasil — pensou na apresentação de obras de câmara de Oswald para o lançamento de Glosas (nº9), que homenageia em seu núcleo principal o notável compositor brasileiro, várias opções se nos apresentaram. Optamos pela apresentação bem diferenciada, a privilegiar vários períodos criativos do compositor e, igualmente, a restringir o número de instrumentistas, a fim de récitas em outras cidades após o dia 28. A integral para violoncelo e piano foi a escolhida por evidenciar transformações que se processaram na escrita oswaldiana ao longo da profícua existência. A qualidade excelsa das obras e a generosidade das linhas melódicas que encantam o ouvinte, apesar de desconhecidas para o público português, são parte da garantia de recepção à altura. O Poemetto Lirico Ofelia para mezzo-soprano e piano, assim como três peças emblemáticas para piano solo – Il Neige!, Estudo (1897) e a comunicativa Valse-Caprice op. 11 nº 1 – completam o programa.

Ensaiar com o jovem e talentoso violoncelista Nuno Cardoso (vide suas gravações no YouTube) e também com a jovem e promissora mezzo-soprano Rita Morão Tavares tem sido motivo de entendimento e de grande alegrria.O Poemetto Lirico Ofelia, sob poesias de Solone Monti, é de raríssima feitura. Estar familiarizado desde 1978 com a obra de Henrique Oswald, que resultou em cinco LPs e três CDs (estes gravados na Bélgica), apenas reencanta o velho pianista.

A entrevista na RTP para o programa Antena 2 (ao vivo, dia 25, às 9 horas) teve Glosas como centro e Henrique Oswald como agradável surpresa para o ouvinte português. O competente Paulo Guerra conduziu o programa com rara descontração. Tive a oportunidade de discorrer sobre o autor, ilustrar o programa com algumas obras dos três CDs que gravei na Bélgica e enfatizar o diálogo rigorosamente à altura que Oswald manteve com o que de mais precioso se fazia na Europa em termos dessa continuação romântica que permanecia frequentada por tantos autores de grande mérito. Ouvintes de outras cidades portuguesas me ligaram, elogiando a criação oswaldiana. Todas as mensagens telefônicas ou por e-mail enfatizaram a filiação francesa oswaldiana com o que de melhor foi produzido em França no período.

Ter participado de painel sobre “Música Portuguesa: Promoção e Divulgação” durante a 3ª edição do Festival de Jovens Músicos (dia 27, Centro Cultural de Belém) reforçou a necessidade imperiosa de a composição portuguesa percorrer terras e mares além-fronteiras. À mesa de debates, moderado pela competente jornalista Manuela Paraíso, estiveram o compositor António Pinho Vargas, Teresa Cascudo e Tozé Brito (Administrador da Sociedade Portuguesa de Autores).

No próximo post focalizarei o concerto de 28 de Setembro, a master class que será realizada no dia 30 na Academia de Amadores de Música, templo musical do grande compositor Fernando Lopes-Graça e local que me é tão caro, e a apresentação do dia 1º de Outubro em Évora (Eborae Musica), na Igreja do Convento Nª Senhora dos Remédios, espaço no qual tenho me apresentado anualmente em recitais promovidos pelo Eborae Musica, dirigido pela sempre atenta Profª Helena Zuber e pelo Centro Ward de Lisboa, sob direção da dedicada gregorianista Idalete Giga.

On my trip to Lisbon to the launch of issue nº 9 of the classical music magazine “Glosas” on 28 September, followed by a concert entirely devoted to Henrique Oswald’s work (together with the mezzo-soprano Rita Morão Tavares and the cellist Nuno Cardoso).

 

 

Justo Tributo a Henrique Oswald

Como tudo é possível,
ousemos fazer rumo ao impossível.
Agostinho da Silva

Em reiterados posts tenho louvado a qualidade de “Glosas”, revista portuguesa sobre música (MPMP – Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa). Criada pelo jovem e talentoso musicólogo Edward Luiz Ayres d’Abreu, chega ao número 9 com ampliações de seus propósitos iniciais e, pela primeira vez, tem como núcleo temático um músico brasileiro, o ilustre compositor Henrique Oswald (1852-1931).

Um caminho bem estruturado e conduzido com cuidado e competência levou Edward Luiz Ayres d’Abreu a ampliar o olhar do território português às fronteiras mais longínquas, onde traços fundamentais da língua e da cultura portuguesas como um todo pudessem ser encontrados. “Glosa” criou núcleos para sedimentar essa outra conquista lusíada a partir de Lisboa. Acredito que estamos diante de publicação voltada à divulgação musical que não encontra similar à altura nos países de língua portuguesa. “Glosas” tem como público alvo músicos, investigadores em música, compositores, intérpretes, teóricos e melômanos. A qualidade dos colaboradores comprova a credibilidade dos artigos assinados. Sob outro aspecto, tudo o que está a se relacionar com repertórios afins, integrando o propósito fundamental de divulgar o universo musical dos países em que a língua é marco de união, pouco a pouco vai encontrando espaços em “Glosas”.

O ambicioso projeto dimensiona a universalidade através do Conselho Científico Lusófono, constituído por três núcleos: africano e asiático, brasileiro e português. Do Brasil fazem parte, por ordem alfabética, José Eduardo Martins, Paulo Castagna, Ricardo Tacuchian e Susana Igayara. Após consultas, “Glosas” inclinou-se a homenagear no presente número nosso mais importante compositor romântico, Henrique Oswald (1852-1931). Não apenas reservou-lhe a capa, com bela foto do músico tirada no início do século XX, como destinou-lhe segmento capital da revista, num justo tributo ao compositor. Temas diversos são abordados, destacando vida e obra do autor de Il Neige! Pela ordem: “Henrique Oswald e o sopro romântico” (José Eduardo Martins), “Henrique Oswald e a música vocal” (Susana Igayara), “Por que foi esquecido Henrique Oswald?” (Ricardo Tacuchian), “O inusitado da fé na vida de um músico: o caso de Alfredo Oswald” (José Francisco Bannwart) e “Música” (texto de Cristina Carvalho, desenho de Manuel San-Payo). Iconografia pertinente ilustra o núcleo dedicado ao músico brasileiro. No segmento “Rubricas”, em “Ecos d’além-mar”, página permanente que mantenho em “Glosas” e que muito me honra, escrevi sobre a relação de amizade entre Henrique Oswald e o notável pianista, compositor e professor português Viana da Mota (1868-1948). 

Outros temas de profundo interesse estão presentes em “Glosas” nº 9. Nos Cadernos de Musicologia temos “Polifonia na Sé de Angra: O Liber Missarum de Duarte Lobo” (Luís Henriques).

No item Entrevistas salientem-se “No quintal de Almeida Prado: o compositor retratado por sua família” (Helen Gallo); “Dois dedos de prosa com o maestro Cláudio Cohen” (Edward Luiz Ayres d’Abreu). Em Efemérides, destaque para “Nos 200 anos de Manoel Dias de Oliveira – ou as memórias de Verônica” (Flávia Camargo Toni) e “A Symphonia Camoneana de Ruy Coelho: um centenário despercebido” (Edward Luiz Ayres d’Abreu).

No compartimento “Rubricas”, “Glosas” apresenta diversificação: “Compositor a descobrir / José Avelino Canongia (1784-1842)” (Luís Carvalho), “Glosando: a convite de glosas, uma peça inédita / Postal a Verdi” (Alexandre Delgado), “Apontamentos em torno de música e transdisciplinaridade” (Patrícia Sucena de Almeida), “Notas de Passagem” (Fernando Lapa), “Laboratório de iconografia musical” (Luzia Rocha), “Ecos d’além-mar” (José Eduardo Martins), “Coisas em que tropeço” (Sílvia Sequeira).

Tem-se ainda “L’Ippolito de Francisco António de Almeida” (Miguel Jalôto), resenhas de livros e CDs. Como destaque final ou inicial, saliente-se a crônica sempre arguta e a agenda cuidadosa escrita e elaborada por Manuela Paraíso.

O lançamento de Glosas dar-se-á no próximo dia 28 de Setembro, às 17 horas, no Palácio da Foz em Lisboa. Num concerto inteiramente dedicado a Henrique Oswald, apresentaremos a integral para violoncelo e piano, o Poemetto Lirico Ofelia para mezzo-soprano e piano e três peças para piano solo: Il Neige!, Estudo (1897) e a Valse-Caprice op. 11 nº 1. Alguns dias antes estarei em Lisboa para ensaiar com os competentes Nuno Cardoso e Rita Morão Tavares. Como curiosidade, lembro ao leitor que, aos 28 de Fevereiro de 1982, apresentei-me no Grêmio Literário de Lisboa, interpretando unicamente composições de Henrique Oswald para piano solo. No salão nobre da tradicional instituição, fundada em 1846,  estavam presentes o ex-presidente Jânio Quadros e esposa, o Embaixador Dário Castro Alves e sua esposa, a escritora Dinah Silveira de Queiroz, ilustres músicos portugueses, assim como membros do corpo diplomático da Europa e da África. Era a primeira vez que um concerto em homenagem a Henrique Oswald realizava-se em Portugal. O crítico Humberto D’Ávila, do “Diário de Notícias”, saudou, surpreso, o ineditismo e a qualidade das obras. O que virá, 31 anos após, será a evidência do grande camerista que foi o compositor brasileiro. Voltaremos ao tema.

This post is about issue nº 9 of Glosas, the authoritative voice of classical music that is the only one to cover all the countries united by the Portuguese language. The upcoming issue is very special, since a large segment – including the cover – is dedicated to the Brazilian composer Henrique Oswald (1852-1931). The official launch of Glosas nº 9 will be next September 28 at Palácio da Foz, in Lisbon. On the occasion, a concert entirely with works by Henrique Oswald will be presented with Nuno Cardoso (cello), Rita Morão Tavares (mezzo-soprano) and myself (piano).

 

Quantas Revelações se Fazem Presentes

Aquele que foi não pode doravante não ter sido,
pois esse fato misterioso e profundamente obscuro
de ter vivido é seu viático para a eternidade.
Vladimir Jankélévith

Marisa, viúva de nosso saudoso amigo Luca Vitali, tem mantido conosco a relação de amizade que nos fez tão próximos ao longo dos anos. Veio dela uma pergunta intrigante a respeito da fotografia e das tantas interpretações que dela podemos inferir. Trata-se de tema muito estudado, com resultados por vezes surpreendentes, pois uma foto pode apresentar verdades que um texto dificilmente desvela. Fotografia e texto literário têm muito a “dizer”, não apenas do objeto, da natureza, da figura humana e até do imaginário. A fotografia é uma Arte e a leitura da imagem um dos exercícios de maior interesse. Sob contexto outro, a polícia investigativa tem no pormenor do pormenor de uma foto, tantas vezes, os indícios que levarão à solução de um crime.

Selecionei fotografias de músicos que bem revelam preferências, índole e até conformação física para tentativa de explicação da obra produzida. Trata-se de uma infinitesimal amostragem. Os compositores Claude Debussy (1862-1918), Henrique Oswald (1852-1931) e Alexander Scriabine (1872-1915) apresentam ingredientes reveladores, suscetíveis de leituras através das imagens.

A atração que a arte do Extremo Oriente teve sobre Debussy é comprovada. Sabe-se da impressão decisiva que as troupes, que apresentaram músicas e danças de Java e dos anamitas durante a Exposição Universal de Paris em 1889, provocaram no compositor. Ter conhecido a fina arte da gravura japonesa foi outro fator decisivo. Sua música se impregna de escalas e sonoridades vindas do longínquo. Comprova-o a leitura da fotografia com Stravinsky, tirada em sua casa na Avenue du Bois de Bologne em Paris (1910). Duas gravuras que representavam o afeto do compositor francês por esse gênero: de Katsushika Hokusai (1760-1849), a célebre La Vague, que teria inspirado o tríptico sinfônico La Mer; e na mesma foto que ilustra este post, logo abaixo, possivelmente uma gravura de Kitagawa Utamaro (1753-1806). Essa fixação estaria explícita na carta de Debussy a seu amigo e editor, Jacques Durand, após finalizar aquela excelsa criação para piano, os doze Estudos: “Ouf!… A mais minuciosa das estampas japonesas é um brinquedo de criança ao lado do grafismo de certas páginas, mas estou feliz, é um bom trabalho” (30/09/1915). Ao acessar o YouTube o leitor poderá ouvir alguns Études de Debussy que gravei na Bélgica para o selo De RodePomp. Quantas não são as obras em que o compositor francês expressa a incontida admiração pela arte gráfica e sonora vinda do Extremo Oriente!

Tantas outras fotos de Debussy, ao serem perscrutadas, revelam parte essencial de seu universo sonoro. Amigos pintores (não impressionistas, frise-se), poetas e intelectuais  prevaleciam sobre amizades de músicos. Fotografia reveladora apresenta Debussy em casa do poeta Pierre Louÿs (1870-1925), autor da imagem (1897) do compositor com Zohra ben Brahim, algeriana, irmã de Meryem-bent-Ali. O poeta escreveria “Eu recomecei inteiramente Bilitis a partir do dia em que a vi”. Três das Les Chansons de Bilitis (1894), uma das mais importantes obras de Pierre Louÿs, foram musicadas por Debussy. Sem nomear explicitamente, as Six Épigraphes Antiques para piano a 2 ou 4 mãos (1914) tiveram inspiração direta das Les Chansons de Bilitis.   

Henrique Oswald foi certamente nosso mais importante compositor romântico. Dediquei-lhe alguns posts. Os aprofundamentos que me levaram à primeira tese de doutorado sobre o músico (1988), seguida felizmente por inúmeras outras, defendidas nas Academias do Brasil e do Exterior por estudiosos, o que é bom louvar, evidencia o homem que viveu durante toda a existência a batalhar pela sobrevivência, sempre a exercer a atividade musical no Brasil, na Itália e, finalmente, no país natal novamente. Todavia, diários de sua mãe e de sua esposa, assim como as poucas cartas por ele deixadas, não deixam de indicar a presença do olhar aristocrático, detectada na alta qualidade de suas composições; no respeito a ele dispensado por figuras proeminentes do Poder desde o Império; nas atitudes do cotidiano que o levavam a receber como anfitrião, em sua casa,  grandes personalidades do mundo musical pátrio e do Exterior. Se na vida real Oswald era exemplo de denodo incansável na dedicação à música, como compositor e professor –  prova evidente seria a agenda de aulas preenchida de manhã ao anoitecer no estertor da existência -, a atitude aristocrática não o abandonaria. Inúmeros desenhos, que realizou em dois cadernos conservados pelos descendentes, atestam a presença de reis, nobres, espadachins. Oswald praticou esgrima e deixou-se fotografar com florete. Essas características, pertencentes à denominada aristocracia, estão presentes em muitas das fotos existentes. De pequena estatura, ao ser fotografado Oswald demonstra a altivez, dimensionada por seu rosto de finos traços e a barba branca impecavelmente cuidada. O leitor encontrará no YouTube várias obras de Henrique Oswald que gravei na Bélgica.

Uma das linguagens pianísticas mais tipificadas é a de Alexander Scriabine. Muitas de suas obras, como algumas Sonatas, Estudos e Poemas, estão entre o que de mais complexo foi escrito para piano. Após a leitura de sua opera omnia para o instrumento escrevi monografia publicada pelo MASP (1977), a apontar a quase não utilização da passagem do polegar em suas composições para piano. Ratificaria meu posicionamento em artigo para os “Cahiers Debussy” (1983), já àquela altura com posições respeitadas de especialistas, entre as quais a do Dr. Heitor Ulson, professor de cirurgia da mão da UNICAMP.

Scriabine foi bom pianista e, a partir da juventude da idade madura, só se apresentava em público tocando suas obras. Em seus programas incluía algumas de suas composições mais complexas sobre o aspecto técnico-pianístico, o que corroborou a mitificação do compositor-intérprete. Um fato, contudo, chamaria atenção. Apesar de sua desenvoltura, que pode ser comprovada em gravações antiquíssimas da década de 1910, entre as quais a do célebre Estudo Patético (op. 8 nº 12), Scriabine tinha físico frágil, mediana estatura, mãos pequenas e dedos finos, como comprovam várias fotos. Jamais tocou um de seus mais emblemáticos estudos, o op. 65 nº 1 para o intervalo de nona. Se considerarmos os programas por ele interpretados em público, fácil notar que, sob outra égide, Scriabine deveria conseguir excelente abertura das mãos (Clique para ouvir, no Youtube, o Estudo Op.42 no.1, com J.E.M. ao piano. ), a tirar delas o maior proveito. A ausência da passagem do polegar, que poderia fazer entender consequências do Mal de De Quervain (1868-1940), segundo o Dr. Heitor Ulsson, implicou a instauração de virtuosismo atípico, fora dos padrões convencionais. Contudo, em termos da “escuta”, essa característica pode passar desapercebida, mercê de uma extraordinária criatividade do compositor russo.

O incontável número de fotos, verdadeiro universo, está sempre aberto ao desvelamento. O simples olhar pouco acrescenta, a não ser um mero “verniz”, que camuflaria intenções profundas. Num sentido bem mais amplo, pintores ao longo da história não deixaram misteriosos traços em tantas obras? Estudiosos estão sempre a revelar descobertas de elementos novos em uma obra de arte. Para tanto, só há uma possibilidade. Deter-se sobre o que se antolha diante de nós.

This post discusses photographic portraits and their power to capture not only physical likeness, but also something of the subject’s character, feelings, lifestyle or, in other words, to reveal much of a person’s essence for the camera. As examples, I give my “reading” of portraits of composers Claude Debussy, Henrique Oswald and Alexander Scriabine.