Recital na “Maison Natale” do Compositor


Meu convívio familiar com a babá
iniciou-me desde a tenra infância a todos os contos russos.
Era ainda um miúdo
e esses contos impediam-me tantas vezes de dormir à noite.
Modest Moussorgsky (notas autobiográficas)

Ninguém falou àquilo que de melhor existe em nós
com um acento mais terno e mais profundo.
Claude Debussy (sobre o ciclo de melodias “Quarto de Crianças”, de Moussorgsky)

Entre 1911 e 1913 Claude Debussy (1862-1918) escreveria três obras para encenação, criações distintas: “Khamma”, “Jeux” e “La Boîte à Joujoux”, esta última um ballet pour enfants. Profícuo período antes do longo calvário que sofreria com a detectação de um câncer que o levaria à morte.

Ao longo dos posts, reiteradas vezes afirmei que um intérprete tende a ter uma apreensão maior do corpus de um compositor se trabalhar a integral ou parcela substancial de sua obra. A visão do todo torna mais tangível o entendimento das muitas transformações da linguagem de um autor através de sua trajetória. O idiomático, esse arquivo mental de um criador, apesar de alterações que podem caracterizar-se como sensíveis, mantém, contudo, traços reconhecíveis nos extremos da produção criativa. A transformação, por exemplo, da linguagem escritural do compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1918) é de tal dimensão que torna difícil compreender obras cronologicamente extremas terem sido escritas pelo mesmo músico. Em artigos publicados no Exterior nas décadas de 1970-1980, considerei que elementos desse código estão contidos nesses limites, como a quase absoluta ausência da passagem do polegar nas obras para piano e a progressiva presença de motivos neurótico-obsessivos ao longo da criação.

“La Boîte à Joujoux” é um caso singular na produção de Debussy. Dir-se-ia que nela se faz presente um aparente multum in minimo de tantas propostas de composições anteriores, que teriam  condensação plena nos Douze Études de 1915. A obra é sensível, a respirar a transcendência do universo infantil. Inspirada nas aquarelas e texto do pintor, decorador, criador de brinquedos de madeira e de histórias infantís André Hellé (1871-1945), “La Boîte…” é uma das realizações mais amalgamadas que se conhece nesse compartimento música, texto, ilustrações. Nada é supérfluo, tratando-se de obra lúdica. A apreensão de Debussy das criações de Hellé e a captação dos sentimentos mais íntimos da mente de uma criança, no caso sua única filha, Claude-Emma ou Chouchou (1905-1919), faz-se por inteiro. “Retiro as confidências das velhas bonecas de Chouchou”, escreveria Debussy ao seu editor Durand aos 25 de Julho de 1913.

Resultados de aprofundamento que expus em artigos publicados nos anos 1980-1990 foram aceitos pela comunidade musical em França. O que considera “La Boîte… ” como criação original para piano e não redução de partitura orquestral. O termo réduction está presente em muitos textos sobre a obra escritos ao longo do século XX. Para os dois outros ballets acima citados, “Khamma” et “Jeux”, Debussy realizaria a redução para piano, e os termos “Partition pour le Piano réduite par l’Auteur” estã0 fixados nas respectivas páginas de rosto da edição da A.Durand et Fils do período, sendo que as duas reduções são absolutamente impossíveis de ser tocadas, pois por vezes há quatro pentagramas. No caso de “La Boîte à Joujoux”, não apenas inexiste a palavra, como é rigorosamente pianística. Fosse apenas réduction, a Maison Durand teria realizado edição tão primorosa com todas as aquarelas de André Hellé? Réduction é preferencialmente entendida como realização menor, uma espécie até de “memento”. Desde que considerada original para piano e não redução, “La Boîte… ” torna-se a mais longa obra monolítica para o instrumento escrita por Debussy, pois sequencial nos seus quatro quadros. Sob outra égide, temos que considerar que a partitura para piano, original doravante, é de cunho absoluto de Debussy, pois parte considerável da orquestração, escrita durante período de declínio físico do autor, entre 1914-1917, foi completada pelo amigo e regente André Caplet (1878-1925) após a morte do compositor. Se há todo um vasto dossier a respeito da montagem de “La Boîte à Joujoux”, que teria a primeira audição do ballet no Théatre lyrique du Vaudeville, aos 10 de Dezembro de 1919 sob a direção de D.E. Inghelbrecht, frise-se que seria a partitura para piano solo, a que integraria com o passar dos anos gravações e apresentações em público da obra completa para piano de Debussy.

Uma outra conclusão refere-se ao desdobramento do affaire Moussorgfsky-Debussy. Durante um século debateu-se muito – a literatura sobre a obra de Debussy é riquíssima nesse item – sobre a influência nítida de “Boris Goudnov”, a extraordinária ópera de Modest Moussorgsky (1839-1881), encontrável na ópera “Pélleas et Mélisande”, do compositor francês. Confessadamente, Debussy escreve a respeito dessa admiração que se estende ao ciclo de canções “Quarto de Crianças”, de Moussorgsky, que teria nítida influência sobre “Childrens’s Corner” para piano, coleção que o pai amoroso dedica à Chouchou.

Um dos mais fiéis amigos de Debussy, Robert Godet (1866-1950), escreveu: “Já a conviver com doença fatal, uma das últimas alegrias veio dos ‘Quadros’ “. Procurei evidenciar em artigo publicado nos Cahiers Debussy, “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy” (1985), que Debussy teria sido igualmente influenciado pela magistral obra quando antolhou-se-lhe a possibilidade de escrever um ballet pour enfants, que seria “La Boîte à Joujoux”.

Fator externo evidente, que faz entender o apreço de Debussy pela obra de Moussorgsky, já se configura na inspiração, pois ambas partiram de imagens contidas em aquarelas. No caso de Moussorgsky, as expostas na exposição dedicada a Viktor Hartmann (1834-1873), seu amigo falecido recentemente. Quanto a Debussy, as ideias brotaram a seguir às aquarelas e história contínua de André Hellé. Os “Quadros…” e “La Boîte..” são enderaçados ao universo lúdico, pois, apesar da grandiosidade da primeira, metade das aquarelas escolhidas por Moussorgsky para a edificação dos “Quadros…” destina-se ao imaginário da criança. Em carta de 23 de Julho de 1913 ao seu editor, Jacques Durand, Debussy faz referência aos brinquedos da filha ao abordar “La Boîte…”: “arranco confidências das velhas bonecas de Chouchou”. Quanto a determinadas aproximações escriturais e de mood, em vários segmentos do ballet pour enfants podem ser sentidas influências moussorgskianas. São inúmeras as identidades. No aprofundamento realizado constatei que o tema principal de “A Grande Porta de Kiev”, monumentalmente tratado, não deixa de ser outro que Frère Jacques, tão conhecido mundialmente, com a redundância de Moussorgsky evocar também sinos. Portanto, a frase sonnez les matines da canção popular francesa ganha maior sentido na apreensão moussorgskiana. Conscientemente ou não, o autor russo aplicou o tema que teria passado incólume por mais de um século! E de pensar que a ideia me veio, na edificação da integral para piano do compositor, ao constatar, através das cartas de Moussorgsky ao amigo Stassov, que a Niania (babá) de sua infância não apenas contava-lhe histórias que, por vezes, “impediam-me de dormir”, como cantava-lhe canções do populário. Considere-se a forte influência francesa na Rússia entre os séculos XVIII e XIX, que propiciava à aristocracia russa a presença de governantas vindas de França, primeiras preceptoras de seus filhos. Por sua vez, Debussy utilizará também, conscientemente no caso, temas de canções populares francesas como Il pleut, il pleut, bergère e Fanfan la tulipe, assim como aludirá a temas de Charles Gounod (1818-1893) e Felix Mendelssohn (1809-1847).

A grandeza dos “Quadros de uma Exposição” não esconde a fina destinação lúdica. Epilepsia e alcoolismo deprimiam o compositor e voltar-se para as reminiscências da infância poderia traduzir o regresso ao universo infantil perdido, redimido pela música. Saliente-se que Moussorgsky foi bom pianista e que, entre muitas pequenas peças para piano, tantas evocam lembranças tantas, a infância e Niania, a babá.

Paradoxalmente, as duas criações apresentam resultados diversos. Poder-se-ia afirmar que “La Boîte…” é intimista, tem dinâmica a permanecer basicamente nas baixas intensidades e a escritura é mais “horizontal”. Frise-se que se está diante de obra programática, pois há uma história e os quatro quadros de “La Boîte…” contam as peripécias de três personagens centrais: a boneca, o soldado e Polichinelo. Outros tantos personagens surgem e até batalha entre polichinelos e soldados enriquece a criação. Essa visão de um ballet pour enfants, com drama sequencial e temas precisos (leitmotivs) para os personagens, dá coerência e unidade à obra. Quanto aos “Quadros… “, o leimotiv está afirmado em todas as “Promenades” (Passeios) que ligam a maioria dos quadros. Na obra de Moussorgsky tem-se preferencialmente a presença “vertical”, constituída de massa de acordes e também de sonoridades que chegam ao limite extremo das intensidades. Não por acaso a obra, de grande difusão mundial, sofreria transcrições para orquestra, sendo a mais conhecida a realizada por Maurice Ravel. Entre outros, Dmitri Shostakovich e Francisco Mignone também transcreveram os “Quadros de uma Exposição”. Deste, significativa é a opinião datada de 1947 (A Parte do Anjo – autocrítica de um cinquentenário): “Originalidade está na lógica da criação e se Debussy é feito de uma terça parte de franceses (até de Massenet!), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola!”

Foi, pois, com imensa alegria que recebi o convite do Musée Debussy, sediado na casa em que o compositor nasceu em Saint-Germain-en-Laye, para festejar o centenário de “La Boîte à Joujoux”. Digo que é uma emoção grande, pois parte considerável de meus aprofundamentos deu-se em torno do grande mestre da música. Mais intenso será o acontecimento, pois a envolver igualmente os “Quadros de uma Exposição”, mercê de dados por mim levantados relacionando Debussy a Moussorgsky no direcionamento das duas extraordinárias criações para piano.

Soma-se a todo o exposto uma grata relação em torno de “La Boîte à Joujoux”. Alexandre Martin-Varroy, cantor lírico, comediante e “metteur en scène” profissional, realizou magnífico memorial para o CRD de Pantin, na França. Escolheu como tema “La Boîte à Joujoux” e, para maiores aprofundamentos, buscou o Centre de Documentation Claude Debussy em Paris. Quis conhecer dois artigos meus sobre o ballet pour enfants mencionados na extraordinária biografia crítica de François Lesure (Claude Debussy. Paris, Klincksieck, 1994; reedição, Fayard, 2003). Entrou em contacto e durante meses trocamos e-mails dirimindo dúvidas. O memorial, acompanhado de apresentação da obra em sua prova por pianista francesa e três atores-dançarinos, teve recepção que não poderia ser melhor. Pois bem, Alexandre Martin-Varroy deverá fazer uma exposição do ballet pour enfants, explicando a plasticidade de “La Boîte à Joujoux” e suas possíveis múltiplas caracterizações. Lembremos que em 1913 Debussy pensou na apresentação de “La Boîte…” com marionetes, certamente com as aquarelas de André Hellé em mente. Também foi imaginada para atores, dançarinos e orquestra, apenas narrador e piano e, presentemente, a integrar todas as performances em que a obra completa para piano é apresentada.

O post que deveria ser publicado na madrugada do dia 11 sofrerá um possível atraso de no máximo dois dias, pois o recital do sábado será tema do texto em questão.

On my recital in France next 11 at the house where Claude Debussy was born in Saint-Germain-en-Laye (Musée Claude Debussy). I will play Debussy’s La Boîte à Joujoux and one of Modest Moussorgsky’s masterpieces, Pictures at an Exhibition, a work that, conciously or not, would have influenced the French composer. On the occasion of the recital, the French actor Alexandre Martin-Varroy will explain the plasticity of La Boîte… and its several ways of artistic expression.