Compositores e Filósofos, Criadores de Ideias Novas? Ou só uns Poucos
Há cinquenta anos, eu tinha contato com intérpretes,
arranjadores, inventores de melodias, orquestradores,
musicólogos, críticos, acompanhadores, improvisadores…,
mas hoje eu só encontro “compositores”!
Diria que todos foram subitamente tocados pelas graças das musas.
Serge Nigg (1924-2008)
(“Témoignages” nº 3. Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, 2010)
Marcos, amigo geômetra, leu o último blog em que inseri epígrafe do compositor francês Georges Migot (1891-1976), na qual observava que “a interpretação mais perigosa é certamente a ideia literária ou filosófica penetrando os meios de expressão que lhe são exteriores, na intenção absolutamente insuportável de comentá-los, como se esses meios ou processos não bastassem tão somente”. Fazia-se acompanhar por um jovem professor que se apresentou como filósofo. Imediatamente veio-me à mente o posicionamento do compositor francês Serge Nigg, que dizia que ultimamente só encontrava compositores. Durante um curto em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, trocamos opiniões a respeito. O jovem professor de filosofia interessou-se pela epígrafe mencionada por Marcos. Perguntou-me com certa dose de um ex-catedra: “Acredita também que literatos ou filósofos não possam opinar sobre a Arte?”. Respondi-lhe que devem, mas com as reservas necessárias, pois a essencialidade da música requer conhecimento da partitura como um todo, nosso ferramental absoluto. Acrescentei que, sem penetrar nas noções básicas da geometria, nada posso discutir com Marcos em temas afeitos à sua área.
Se houve Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Albert Schweitzer (1875-1965), Theodor Adorno (1903-1969), Vladimir Jankélévitch (1903-1985), entre os poucos filósofos que conheciam perfeitamente a trama musical, tantos outros escreveram opinando sobre música e, geralmente, sob o impacto da audição com resultados razoáveis, parciais ou negligenciáveis. Disse-lhe que me causa certo mal estar ouvir filósofos discorrerem sobre nossa área, como se essa arte sublime fosse “apenas”… uma área da cultura. Aliás, fazem-no também em relação a outras artes e à literatura. Um deles, ultimamente comparou, nesse nebuloso território da cultura voltada à leitura de autoajuda, Paulo Coelho a Saint-Exupéry, mencionando “Le Petit Prince”. Certamente desconhece “Citadelle”, monumental obra que aborda “todos os problemas do destino humano e o condicionamento do homem”, segundo Simone de Saint-Exupéry.
Nossa conversa penetraria doravante esse delicado tema. Desconfiado, o jovem professor do segundo grau de importante escola privada não concordou com algumas colocações propostas e indagou-me se tinha algum preconceito contra filósofos ou compositores. Prontamente disse-lhe que não e nomeei determinados livros que me acompanham durante as longas décadas, assim como de minha admiração confessa por tantos compositores qualitativos de nossos dias, tendo gravado e interpretado inúmeras obras desses autores contemporâneos do Brasil e do Exterior, frise-se bem, qualitativos. Lembrei-me de Serge Nigg que observa “essa vontade de aparecer custe o que custar como criador e não como simples intérprete”, frase certamente forte e responsável pela quantidade de compositores que pululam e que enveredam por caminhos onde lhes faltarão o ferramental necessário, a técnica e o talento. Situação similar acontece na área dos philos sophia. Como senti uma certa irritabilidade do jovem professor de filosofia, mudei de assunto e conversamos sobre o nosso triste futebol, sem tática, sem garra, sem nada e fazendo-nos saudosos de tradição irremediavelmente perdida, e também sobre a política que emana do Planalto, sem rumo sensato, imbuída de fatal binômio ideologia-conchavo e que já se faz sentir nos resultados econômico-sociais e nas tendências totalitárias divulgadas diariamente. Não da parte do amigo Marcos, mas senti que meu jovem interlocutor não gostou de meu posicionamento também nessa área. Despedimo-nos, não sem antes dizer aos dois que pensar livremente deveria fazer parte, in conditio sine qua non, de nossas atividades e de outras igualmente.
Curiosamente fui apresentado nesses últimos anos a alguns egressos da universidade que concluíram ou abandonaram os cursos de filosofia. Uns partiram para o magistério e outros singram novos rumos. Fica-me uma impressão não distante do que escreve Serge Nigg. Sentem-se filósofos e disso se orgulham. Assim como dediquei um post aos “criativos” publicitários, que majoritariamente inserem em cartões de visita ou revelam verbalmente o termo “criativo”, apropriando-se de uma palavra destinada a poucos (vide blog, 25/04/2009), o termo filósofo parece-me com uma carga enorme. Se a etimologia da palavra remonta à Grécia Antiga, amigos da sabedoria, transformar o termo numa profissão como qualquer outra torna-o banal, sem mais, mormente acompanhando-se o transcurso da história, que reservou aos eleitos criativos do pensar as “graças das musas” enunciadas na epígrafe. Seria possível entender que presentemente um menor número de humanistas finda os cursos de filosofia. Poderia ser uma explicação para a proliferação de outros jovens que se autodenominam filósofos. Causa-me estranheza a atitude dessa nova geração de “filósofos”. Tratado como “filósofo” pela mídia, o jovem autoritário, um dos coordenadores do movimento dos sem-teto, não está a promover a desordem social através de invasões de terrenos e logradouros, depredações, passeatas a impedir o ir e vir do cidadão e mais proselitismo barato em entrevistas? Os governos federal, estadual e municipal só assistem a esses alucinantes distúrbios. Até quando?
Acredito que, no caso da filosofia, seria tão mais correta a designação professor de filosofia, pois aqueles que continuam acabam por entrar no magistério. Filósofo, a meu ver, teria de estar acompanhado de currículo verdadeiramente criativo a transpor fronteiras geográficas, tendo o postulante, no caso, teoria formadora de escola, entenda-se, aceita, divulgada e estudada pelos especialistas internacionais e não meramente provinciana e adulada na Academia, tantas vezes gueto de vaidades e de ideologia precisa. Se o leitor perguntar aos recém-formados em música-composição, filosofia e marketing poderá receber respostas claras sobre suas atuações, “sou compositor, sou filósofo, sou criativo”. E como dizia o ilustre Roberto Campos, “tudo vai mal onde tudo vai bem”.
Se o jovem professor mencionado no início do post ler este texto, acrescentaria que na composição há alguns criadores que quebraram as altas ondas que vão ter à praia, singraram mares e são nomes referenciais no hemisfério norte e no Extremo Oriente. Villa-Lobos, Henrique Oswald, Camargo Guarnieri, Gilberto Mendes… Outros igualmente estão sendo divulgados e reconhecidos em termos mundiais pela qualidade de suas obras. Todavia, trata-se de espaço reservado a poucos. Pepitas de ouro no cascalho.
A chance meeting with a guy holding a degree in Philosophy reminded me of Serge Nigg’s words that open this post. As for myself, I’m also tired of students of philosophy or music composition who feel entitled to call themselves philosophers and composers, as if school benches were a talent factory, not just a place to hone the talent that very, very few have.