Mensagens Benvindas

Nenhuma arte é superior a outra
desde que sopre o espírito do criador,
seja ele quem for.
François Servenière

Por um lado, o artista furta o seu tema ao tempo,
tornando-o acessível a todos os momentos,
por outro lado,
salva-o ainda da corrente do tempo
na medida em que faz convergir num só instante
o que foi beleza em instantes sucessivos.
Agostinho da Silva

Se o blog anterior teve mensagem do compositor e pensador François Servenière, no atual ele nos visita novamente a fazer prioritariamente comparações pertinentes sobre música e arte erudita e popular. Igualmente é com prazer que insiro mensagem da educadora musical e gregorianista portuguesa Idalete Giga que, sob outro enfoque, evoca-nos aspectos relativos ao entendimento sensitivo da arte popular.

Escreve Idalete Giga: “O penúltimo post em diálogo com sua neta Valentina foi uma lição de História de Arte! Eu também aprendi muito. Adorei as várias reproduções, sobretudo as Paulistinhas. É um tema apaixonante. De tal maneira que, a seu pedido, escrevi um conto mágico sobre o Vale do Paraíba, tendo Pituba e o Edu, seu neto (imaginário), como protagonistas! Lembra-se desse conto? Talvez a sua neta Valentina gostasse de lê-lo… (O singelo conto “O Jardim das Fadas” foi publicado no blog sob o título “Pensar e Sentir o Natal”, de 20/12/2008). Como afirma o arquitecto Benedito Lima de Toledo, ‘nem sempre a via erudita foi o mais rico canal das manifestações artísticas’. Admiro muito toda a arte popular, que é sempre genuína e de uma simplicidade comovente. É nela que está escondida a alma de um povo, a sua pureza, a sua identidade. É nela que músicos, pintores, escultores, poetas, dramaturgos se inspiraram ao longo da História e muitos continuam a inspirar-se ainda hoje. Como dizia Monteverdi, o povo é a elite da Terra”.

O pensar arguto de François Servenière: “O post com as perguntas de sua neta Valentina me pareceu de interesse. Na realidade, não conhecendo muito os estilos dessas pequenas imagens sacras populares, apesar de ter conhecimento de algumas similares (sob o aspecto da técnica) no sul da França e no norte da Espanha, sinto-me impedido de opinar nessa instigante temática.

Não obstante, surpreendeu-me a pergunta de Valentina sobre a diferença de estilos, de época e do valor artístico inerente. A pergunta atinge o cerne da arte, pelo fato de que nenhuma arte é superior a outra desde que sopre o espírito do criador, seja ele quem for. Há canções populares com muito mais valor do que certas obras entendidas como ‘intelectuais’, pois nem sempre o espírito do criador sopra sobre estas, mas sim sobre aquelas! Verificamos que os maiores criadores atacam com sucesso todos os gêneros e estilos. Citemos Mozart, Debussy e Ravel, que criaram músicas tão diversificadas no gênero, na forma e na instrumentação; pintores e escultores da Renascença (Da Vinci, Michelangelo…) que eram não somente arquitetos, pintores, homens da ciência, fabricantes de objetos, teóricos, como autores de peças de teatro (Da Vinci), pois o genial espírito criativo soprava sempre sobre suas obras, fosse qual fosse o suporte utilizado (romances, poemas, canções, sinfonias, concertos, peças de teatro, testemunhos, telas, afrescos, esculturas, desenhos…).

A divisão entre gêneros e subgêneros  (famílias e épocas artísticas) permitiu aos séculos modernos colocar devidamente a Divisão Científica do Trabalho, cara a Henry Ford, resultando,  posteriormente, a segmentação profissional entre artes superiores e artes inferiores no que concerne às profissões artísticas. Entendo tratar-se de hierarquia inútil, inexistente anteriormente,  pois um criador bem formado podia e devia ter o domínio pleno da forma e dos gêneros de sua atividade. Hoje, na música da era bouleziana (F.S. refere-se ao compositor Pierre Boulez) pretende-se  não mais misturar panos de prato e toalhas entre os cancioneiros, os autores de músicas para filmes e os músicos de música erudita, quando todos podem e deveriam escrever, mesmo que consideremos talentos desiguais.

Nas academias de pintura e de escultura deve-se aprender de tudo, tomar-se conhecimento de todas as técnicas. Não compreendo o porquê de hoje, nos conservatórios, os aprendizes compositores não mais serem orientados para a escrita de uma canção, pois essa lacuna permanecerá em sua trajetória. Verifica-se que esse aprendiz geralmente não sabe mais cantar, pois não mais sabe escrever música e o fator crucial, a melodia cantada, é hoje negligenciada nos cursos acadêmicos destinados à composição. Um escritor tem o direito de escrever poemas, peças de teatro, romances, artigos de jornais… Na música, é proibido. Um ditador musical, seu séquito, seu sistema de pensamento e de ideologia amplamente difundidos impedem e estigmatizam todo desvio de conduta. Rejeita-se o talento universal, substituindo-o pelo talento constipado e saído dos bunkers. Essa atitude negativa e desrespeitosa para com o espírito criador abriu também uma via nova muito seletiva (e quase sempre fechada a toda arte aberta sem apoio) para os pesquisadores de poder, desprovidos de qualidades criativas, permitindo-lhes que se imponham pela via administrativa e a infiltração política e sectária. O espírito criador perderia, no desvio da arte, seu valor original de convicção, que é feito de juventude, de espiritualidade, de sinceridade, de autenticidade, de inocência… Não mais se convence pela sua arte, convence-se pelo poder e suas relações, pela capacidade perturbadora e pelos discursos políticos ou econômicos.

A pintura contemporânea, como exemplo, resultou em mercadoria  e nenhum critério intervém doravante, como todos sabem. É um meio de troca e um bilhete de entrada para as grandes fortunas lavarem os acúmulos de um sistema financeiro enlouquecido, que cria dinheiro virtual para ser escoado na economia real. Entretanto, esses produtos financeiros ‘artísticos’ apodrecidos tornar-se-ão, por sua vez, uma bolha que explodirá um dia, a levar essas obras àquilo que elas realmente são: nada (a título de colaboração ao pensamento de Servenière, recomendo a leitura de “La Civilización del Espectáculo”, de Mario Vargas Llosa).

Admiro os grandes criadores, que são capazes de tudo escrever e de tudo criar. Desprezo essa qualidade atribuída àqueles que estigmatizam, pelo espírito mesquinho e munidos de viseiras, os gêneros e os estilos populares ou menos elitistas na aparência. O que é o elitismo senão essa senda humana por onde sopra o espírito, seja qual for o suporte utilizado. Reconhecem-se os grandes artistas pelo espírito, não pelo suporte utilizado.

É importante ensinar isso aos jovens, pois o mundo atual sabe criar o falso valor artístico, e a as mídias lá deveriam estar para mudar a mensagem dos poderosos financeiros e políticos”. (Tradução J.E.M.).

Uma revisita à primeira epígrafe evidencia a síntese da realidade expressiva, pois as ilustrações da Virgem Maria com o Menino, em madeira policromada, do artista erudito flamengo quatrocentista e, em terracota, na singela imagem do final do século XIX de nosso santeiro popular Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba, indicam esse espírito criador a sobrevoar a criação. Em ambas as obras não nos detalhamos no material utilizado, concentrando-nos na obra prima. Seria a presença das musas de que nos fala Serge Nigg?

In this post I quote messages received from the portuguese choir conductor and Gregorianist Idalete Giga and the French composer Françoise Servenière. Idalete talks about the way she apprehends popular art, while Servenière compares popular and classical music.