“Prefácio à  Segunda Edição” de “A Velhice do Padre Eterno”

A crença é como o luar que nas trevas flutua;
A razão é do céu o esplêndido farol:
Para a noite da morte é que Deus nos deu lua…
Para o dia da vida é que Deus fez o sol.
Guerra Junqueiro
(“A Velhice do Padre Eterno” – (quadra de “Aos Simples”)

Conversava com minha dileta amiga Jenny Aisenberg sobre epígrafes inseridas no blog semanal. Chegamos a Guerra Junqueiro (1850-1923) e às diversas citações que faço de seus livros. Ao comentar a respeito de uma de suas obras primas, “A Velhice do Padre Eterno”, falei-lhe do prefácio para a segunda edição, datado de 1887, e publicado postumamente (Porto, Lello,1926). Estudos aprofundados foram feitos sobre esse prefácio, mormente concernentes às argumentações de Junqueiro quanto às críticas que recebeu quando da primeira edição do livro. Teria dito ao seu amigo Luís de Oliveira Guimarães “Os políticos consideram-me um poeta; os poetas, um político; os católicos julgam-me um ímpio; os ateus, um crente”. Ater-me-ei ao texto introdutório às críticas que o autor recebeu, rebatidas com argumentações que clareiam seu pensamento quanto às intenções de “A Velhice do Padre Eterno”. Nesse, que entendo como preâmbulo, Junqueiro fixaria “doutrina” sobre seu pensar a respeito da obra conclusa, julgamento alheio, qualidade, temporalidade de um livro impresso, valor e mediocridade, podendo-se aferir conteúdo precioso nos muitos parágrafos. As Artes agradecem a lucidez desse texto inequívoco, que anatematiza a obra sem mérito iluminada temporariamente pelos holofotes. Aspecto fulcral que tenho há longos anos debatido neste espaço relaciona-se à perenidade de uma criação. O pouquíssimo qualitativo perdurará. Sob outra égide, aprofundamentos que se acentuam têm provocado a emersão de obras de absoluto valor rigorosamente desconhecidas.

Guerra Junqueiro, escritor, poeta, jornalista, alto funcionário público, político e colecionador de obras de arte, foi em vida o mais popular poeta português. “A Velhice do Padre Eterno” é uma de suas mais importantes e difundidas criações.  Teve longa gestação e seria publicada em 1885. Ao ser difundida, houve forte reação do clero português.

Em blog bem anterior já abordáramos o grande literato através da musicalidade que emana de seus poemas (vide “A Música de Junqueiro – A Música para Junqueiro”, 03/07/2010).

Do longo “Prefácio à segunda edição”, datado de 1887, exibirei o segmento que antecede as considerações específicas da “Velhice do Padre Eterno”. Guerra Junqueiro não é apenas um grande mestre da língua portuguesa, como um pensador de alta estirpe. No presente, em que a escrita e a fala têm sido tão ultrajadas em nosso país, por vezes deliberada e intencionalmente pelos senhores da política, que não tiveram a humildade de ao menos conhecer seus rudimentos, o texto que segue é o exemplo do respeito à língua mãe. Sob outra égide, Guerra Junqueiro frequenta com maestria o universo metafórico, jamais no sentido da erudição pela erudição, mas a substanciar argumentações.

“Nunca discuti, nem jamais discutirei com quem quer que seja, o valor literário duma obra minha.

Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima.

Não faço versos por vaidade literária. Faço-os pela mesma razão por que o pinheiro faz resina, a pereira, peras e a macieira, maçãs: é uma simples fatalidade orgânica. Os meus livros imprimo-os para o público, mas escrevo-os para mim.

Contudo, desde o momento em que ponho as minhas ideias à venda em todas as livrarias, equiparo-me a qualquer produtor que manda os seus produtos para o mercado.

Com uma diferença, no entanto: O artífice e o industrial podem encher de reclames bombásticos, de elogios próprios as esquinas das ruas ou a quarta página das gazetas. É esse o seu interesse. O artista, pelo contrário, perante os aplausos  ou perante as inventivas, deve manter-se absolutamente digno e silencioso. É esse o seu dever. Um poeta não é um marceneiro.

Enquanto a crítica, no uso dum legítimo direito, avalia livremente os meus versos, julgando-os ou ótimos ou medíocres ou detestáveis, eu, em vez de ir para os jornais defender a minha obra, provando que ela é uma maravilha e o seu autor um homem de gênio,  acho um bocadinho mais sensato e mais útil esquecer-me do livro feito para me lembrar unicamente do livro a fazer. Cortada a seara e recolhido o trigo, arrotea-se o campo e semeia-se de novo.

Cheio de luz ou cheio de sombra, alegre ou triste, que importa o dia de ontem? É um cadáver. Deixá-lo em paz. Pensemos no dia que há de vir, fitando o azul na direção da aurora. Só os viandantes exaustos é que se sentam de tarde à beira das estradas, medindo em silêncio, melancolicamente, o caminho percorrido.

Nós, os que temos ainda força, não descansemos um minuto. O dia é breve e a jornada é longa. E os que quedam, contemplativos, a olhar para trás, ficam muitas vezes, como a mulher de Loth, empedernidos em estátua.

A nossa obra é o nosso monumento. Não o cerquemos de grades de ferro, com sentinelas armadas para o proteger, nem desperdicemos a existência a dourá-lo constantemente de novo a ouro fino, a brunir-lhe as asperezas com o esmeril dulcíssimo do amor próprio e a sacudir-lhe as teias de aranha irreverentes com um espanador olímpico, feito de grandes caudas de pavão.

Ao contrário. Levantemos a nossa obra com toda a coragem, ao ar livre, na praça pública, sem muros que a vedem e sem granadeiros que a defendam. Batam-na os ventos, crestem-na os sóis, lasquem-na os raios, a ferrugem que a vermine, a lama que a conspurque e os cães que a mordam. E depois de exibida assim durante vinte ou trinta anos a todas as admirações e a todos os insultos – desde as coroas da apoteose até aos coices dos onagros – depois de lhe terem passado por cima o gelo de trinta invernos e o fogo de trinta estios, então, e só então, meus amigos, é que poderemos averiguar com segurança se o nosso monumento para a imortalidade era de bronze ou era de zinco, era de mármore ou era de gesso.

Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável. As grandes obras são como as grandes montanhas. De longe, vêem-se melhor. E as obras secundárias, essas quanto maior for a distância, mais imperceptíveis se irão tornando.

Não falo de mim, porque não sou vaidoso nem orgulhoso. A vaidade é o orgulho dos imbecis e o orgulho é a vaidade dos gênios. Ora eu francamente não pertenço a nenhuma dessas categorias. O triunfo, o aplauso público, a rajada de incenso não têm o dom de me embriagar. Não me estonteia o cérebro a vulgar monotonia das grandezas literárias.

Alexandre Dumas, nos últimos tenebrosos meses de sua vida, teve uma noite um pesadelo mortal, um pesadelo trágico.

Sonhou que no alto de um Himalaia monstruoso estava, soberba e resplandecente, a estátua vitoriosa, a estátua de ouro dum ídolo enorme. A estátua era a dele, e o pedestal, o Himalaia – as suas obras. De repente, num segundo, a grande montanha esboroou-se como uma montanha oca de pedra pome ou de caliça, e a estátua do ídolo, que não era de ouro mas de barro, partiu-se e esfarelou-se também, ficando sepultada debaixo dos escombros efêmeros do seu próprio pedestal.

E o sonho realizou-se. Alexandre Dumas, de quem Michelet dizia que era umas das forças da natureza: Alexandre Dumas, cuja glória atroadora encheu o mundo durante um quarto de século, hoje, tem sido um gigante, pode passar sem se curvar, que passará à vontade, por baixo das pernas de Balzac. Um cresceu, o outro diminuiu.

Ah! Quantos e quantos pseudo sublimes artistas duma hora, ex grandes gênios dum semestre, não têm assistido em vida ao enterro de 4ª classe da sua imortalidade, aos pobres e mesquinhos funerais da sua glória, que velha, calva, desdentada, coroada de louros secos e rosas tristes de boião de farmácia, foi dentro de um lençol de misericórdia para a vala comum, para o cemitério anônimo do esquecimento e do desprezo!

Os séculos são as montanhas do tempo. Cordilheira imensa, cordilheira titânica sem fim e sem princípio! E nos topos alcantilados e inacessíveis de cada um desses Horebes monstruosos ficam apenas, com o correr das idades, meia dúzia de gênios, faróis inextinguíveis, archotes crepitantes, incêndios imorredouros que, resplandecendo de montanha em montanha, de século em século, nos deixam estender os nossos olhos curiosos pela caverna profunda do passado, pelo abismo da noite, o insondável cemitério da vida que se chama a História!

Enquanto a nós, Shakespeares das nossas comarcas, Dantes do nosso concelho, Homeros da nossa freguesia, podemos estar perfeitamente descansados acerca do destino que nos espera. Somos uma via láctea de constelações da qual, volvidos meia dúzia de séculos, restará quando muito meia dúzia de pirilampos.

E é por estas considerações, duma imensa humildade cristã, que eu, apesar de ser incontestavelmente o primeiro poeta da minha terra – Freixo de Espada à Cinta – nunca discuti, nem discutirei com quer que seja, o valor literário de uma obra minha.

No entanto, como nisso não há imodéstia, estou sempre pronto a discutir imparcial e tranquilamente os princípios de filosofia, as ideias gerais, os pontos de vista críticos que serviram de base fundamental para qualquer dos meus livros.

Daí este prefácio”

Guerra Junqueiro, que permaneceu pela qualidade da opera omnia, segue num segundo momento a analisar a recepção crítica desfavorável à primeira edição de “A Velhice do Padre Eterno” e a rebatê-la.  Pormenoriza-a, sem faltarem ceticismo, livre arbítrio, humor sombrio e até desilusão altiva. Apesar do anti-clericalismo, Deus e o Cristo são constantes nesse turbilhão de ideias criativas. A sua formação católica não se faz negar.

In this post I transcribe part of the preface of the book A Velhice do Padre Eterno (The Old Age of the Eternal Father), by the Portuguese poet Guerra Junqueiro (1850-1923), a series of satiric and anticlerical poems criticizing conservatism and the Church. However, what interested me in particular was the first part of the preface, in which Junqueiro discusses with absolute clarity and perception the issue of mediocre and meritorious works, stating that only the latter will stand the test of time.