Um dos Maiores Músicos da História
A verdadeira música é a linguagem do coração.
Jean-Philippe Rameau
Enquanto Rameau não ocupar o lugar ao qual
tem direito entre os maiores mestres,
a história da música do século XVIII
e através dos séculos não terá sua total orientação.
Georges Migot
Em post bem anterior (vide “Jean-Philippe Rameau – Origem de Fascinante Envolvimento”, 14/11/2009), abordei a atração despertada desde a juventude pela obra do genial compositor e teórico, certamente o mais completo músico de seu tempo. Como compositor sua obra é vasta e obedece a períodos definidos quanto aos gêneros propostos; como teórico – numa explicação básica para o leitor – traçou o caminho que fixaria definitivamente a harmonia (organização das notas musicais em acordes – processo vertical), após um longo reinado do contraponto (organização das notas em linhas – processo horizontal). Harmonia e Contraponto constituiriam, pois, essencialidades da música polifônica. Persistem.
Jean-Philippe Rameau nasceu em Dijon, aos 25 de Setembro de 1683, e faleceu em Paris aos 12 de Setembro de 1764, há exatamente 250 anos. Seu caminhar pela história jamais teve pelos pósteros a dimensão merecida, possivelmente por ter sido um músico que viveu em plena monarquia, apreendendo a magnificência da obra lírica teatral em França, vindo a falecer 25 anos antes da eclosão da revolução francesa. Valores monárquicos foram ferozmente descartados. Todavia, Rameau foi um dos mestres que maior influência teve sobre a música, mormente a partir de sua obra teórica. Como afirmaria Claude Debussy (1862-1918), grande admirador de Rameau, seria possível que essa dualidade tivesse eclipsado o compositor extraordinário.
Compositor e teórico. Dois caminhos que motivariam Rameau durante sua longa trajetória. A criação composicional obedece a períodos distintos. Cantatas, motetos, peças para cravo e umas poucas para pequeno conjunto de câmara, as Píèces de clavecin en concert, de 1741. Nos últimos 30 anos dedicar-se-ia à música lírica, a traduzir o esplendor da ópera em França. Sua obra teórica se estende de 1722 a 1760. Guy de Chabanon (1730-1792), no “Éloge de M. Rameau” (1764), relataria que auscultaram Rameau e este teria lamentado o tempo dado à composição em detrimento dos aprofundamentos dos princípios de sua Arte. Em síntese para o leitor poderíamos acrescentar que o teórico propôs normas da composição e o compositor aplicou-as.
Sabe-se pouco a respeito das primeiras décadas. Desempenhou a função de organista em várias cidades, mas, paradoxalmente, não legou sequer uma obra para o instrumento. Ao escolher Paris como cidade definitiva, Rameau já se impusera como teórico. Ao conhecer o mecenas Le Riche de la Pouplinière (1693-1762), é recebido em seus salões e conhece artistas, literatos, libretistas, entre eles Voltaire (1694-1778). A plena penetração na criação lírica fá-lo distanciar-se das estruturas de seu predecessor, Jean-Baptiste Lully (1632-1687). A proposta de Lully apreende as características do Ballet de Cour e da tragédia-declamada de autores como Corneille (1606-1694) ou Racine (1639-1699). Rameau modifica essa concepção, pois dimensionará o recitativo e terá novas concepções quanto à estrutura. Dessa criação lírica têm-se diversas destinações: a comédie-lyrique e, preferencialmente, a ópera-ballet e a tragédie-lyrique. Mencionemos entre as inúmeras criações de Rameau para a cena musical: Hyppolite et Aricie, Les Indes Galantes (faria a redução para cravo de alguns segmentos dessa ópera-ballet), Castor et Pollux, Dardanus, Platée, Les Fêtes de Polymnie, Zoroastre, Les Boréades. Esta útima composta aos 80 anos.
Air pour Borée et la Rose de Les Indes Galantes. Transcrição de Rameau para clavecin. Piano J.E.M.
Em suas óperas, não suficientemente frequentadas, hélas, Rameau aplica suas teorias já consagradas. Há um nítido descortino. Sob outra égide, Rameau acolhe libretos com enredos mitológicos, a atender a vontade da corte francesa e de um público ávido do maravilhoso. A fim de obter resultados musicais, por vezes interfere nesses textos. A dança, tão fundamental em suas óperas-ballet, recebia atenção especial. Um de seus mais credenciados biógrafos, Cutberth Girdlestone (1895-1975), observa, a ratificar os conhecimentos de Rameau sobre a dança, mencionando Gardel, mestre de ballet: “Rameau advinhou o que os dançarinos ignoravam, o que nos leva a entendê-lo como nosso primeiro mestre”. Outro aspecto importante é a utilização da maquinaria. Necessária, mormente graças as salas quase às escuras, a utilização de máquinas em cena agradava ao público. Exemplo claro poderia ser visto pela Corte e público ao final do ato dos Incas de Les Indes Galantes, quando há a erupção do vulcão. Frise-se que mestres nessa arte da machinerie eram muito considerados.
O “Mercure de France” (1765) publicaria carta de Rameau a um jovem músico. Reflete seu pensamento sobre a ópera: “É necessário estar a par do espetáculo, ter durante muito tempo estudado a natureza para pintá-la o mais verdadeiramente possível, apreender todas as suas características, ser sensível à dança, aos seus movimentos, sem falar de todos os acessórios; conhecer a voz, os atores… Eu acompanhei o espetáculo desde a idade de 12 anos, não compondo para a ópera senão aos 50, ainda não me acreditando capaz; eu tentei, fui feliz, continuei”.
Dois anos após o nascimento de Rameau nasciam J.S.Bach, D.Scarlatti e G.F.Haendel. Coincidentemente, temos quatro autores de obras significativas para cravo. Rameau, compositor do multum in minimo nesse gênero, tem contudo uma extraordinária importância. Se comparada à monumental criação de François Couperin (1668-1733), que compôs 27 Ordres (algumas dessas bem extensas e constituídas de reunião de peças), a produção de Rameu restringe-se a 5 suítes e mais algumas poucas obras, entre as quais La Dauhine. Somem-se a essa produção as reduções de segmentos da ópera-ballet Les Indes Galantes. Entendo que, se Couperin se presta essencialmente ao cravo, o mesmo não se pode aplicar a Rameau. Seu grande tratado de harmonia foi escrito no período de suas expressivas criações para cravo. A visão da harmonia e a presença das fundamentais como estrutura, a dar fluência ao curso melódico, tornam sua opera omnia para teclado bem mais adequada ao piano, mercê dos amplos recursos e das ressonâncias características que o instrumento propicia. As palavras do grande musicólogo francês François Lesure, ao escrever o prefácio da gravação da integral de Rameau para teclado, que realizei ao piano, testemunham a clareza de raciocínio: “No caso de Rameau, o debate cravo-piano não tem mais sentido, na medida em que não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete. Passou o tempo do Barroco entreguista e a utilização de instrumentos de época deixou de ser dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”. Ter fixado as bases da harmonia, que vigorariam durante séculos e ainda hoje subsistem com vigor em tantas tendências composicionais, felizmente, estabelece a qualidade nessas pouco mais de 50 peças originais para teclado. O piano moderno que surgiria, após longa trajetória e triunfante a partir do século XIX, período que assistiu ao silêncio absoluto do cravo, dará guarida essencial às fundamentais de Les Cyclopes, às modulações inusitadas em Le Rappel des Oiseaux, às ressonâncias de L’Enharmonique, à consistência estrutural em Les Niais de Sologne, às dissonâncias ousadas do Prélude da Suíte de 1706. Rameau, observador da natureza, é descritivo ou imitativo em La Poule, Le Rappel des Oiseaux, La Boîteuse, Le Tambourin; entende os sentimentos em Les Tendres Plaintes, L’Entretien des Muses, Les Soupirs; é virtuosístico em Les Cyclopes, Les Niais de Sologne, Les Tourbillons, Les Trois Mains, L’Égytienne; mestre na organização de variações em Gavotte Variée; descontraído nos rondós La Villageoise, em Fanfarinette et La Follette, La Joyeuse ou La Triomphante. Está-se realmente diante de uma das mais importantes produções para teclado da história.
Le Rappel des Oiseaux. Piano J.E.M.
Rameau teórico. Distingue-se in totum de todos os seus eminentes coetâneos. Suas teorias atravessaram os séculos. Observador, cartesiano, Rameau só teoriza após certezas dedutivas. Em quatro tratados considera seus sistemas a partir de método progressivo. “Le Traité de l’Harmonie Réduite à ses Principes Naturels” é certamente o mais conhecido e data de 1722. Sente-se a influência de René Descartes (1596-1650), mormente de sua obra “Abregée de Musique”, de 1618. A herança pitagórica, exercida e desenvolvida pelo pensamento de Descartes, é captada por Rameau, a servir-lhe de norte para experiências essenciais à música.
Para o compositor, o Tratado seria completado através da “Genération Harmonique”, de 1737, após ter conhecido os trabalhos do geômetra e físico Joseph Sauveur (1653-1716) sobre a acústica. Dois outros tratados, “Nouveau Système de Musique” (1726) e “Demonstration du Principe de l’Harmonie“ (1750), completam esse segmento. Em outros escritos relevantes, Rameau se posiciona como didata e em outros mais polemiza e defende-se contra os ataques de adversários que contrariavam suas posições teóricas e suas obras. Teríamos a célebre Querelle des Bouffons, que se estenderia de 1752 a 1754, a causar sensível abalo na ópera essencialmente francesa.
Entre os atributos de Jean-Philippe Rameau contam-se austeridade, rigor e dedicação exclusiva a duas obsessões, compor e teorizar. Sua vida privada esteve basicamente velada. Entre as poucas referências, sabe-se que se casou aos 42 anos com uma jovem de apenas 19. O modelo musical que lhe foi oferecido era monárquico e a ele se adequou, renovando-o. Criou inimigos. Por volta de 1745, um severo julgamento seu sobre composições de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teria sido decisivo, pois o grande filósofo só é lembrado como compositor graças ao grande pensador que permaneceu na história. O estopim da Querelle des Bouffons se deu quando uma troupe italiana de bouffons apresenta, na Academia Real, a ópera bufa La Serva Padrona, de Pergolesi (1710-1736). Cenas do cotidiano, o povo em cena, a contrastar com a magnificência da ópera francesa. Os enciclopedistas e filósofos aproveitam os momentos para atacar o literário e a música contidos na ópera monárquica. Visam, na realidade, à estrutura do poder. Prenúncio da Revolução francesa. Um dos importantes biógrafos de Rameau, Jean Malignon, escreve: “Diderot visa ao espírito mesmo de Versalhes, Grimmm, ao espírito francês em sentido total e Rousseau visa a um homem”.
Duas estéticas se degladiam, a clássica e a da sensibilidade. Rameau e Rousseau têm leituras distintas da natureza. Para o primeiro, natureza das coisas, para Rousseau, natureza do homem. Entende Rousseau a supremacia da melodia sobre a harmonia, enquanto que Rameau, após exaustivos estudos e experiências, tem visão contrária, o que não implica serem suas obras imbuídas de melodias penetrantes. Contudo, crê na estrutura, nas fundamentais, na geração dos acordes, essências da harmonia.
Durante a Querelle des Boufons, essa “guerra” estética entre adeptos da música italiana e os fiéis à tradição da ópera francesa monárquica, foram publicados cerca de 60 textos, cartas e panfletos, por vezes inflamados.
Jean-Philippe Rameau. Permaneceu como um dos pilares da música ocidental. Legou algumas das mais importantes óperas em França do século XVIII. Seu pensamento teórico é coluna mestra que orientaria toda a trajetória da música nos séculos seguintes. Sua obra lírico-musical tem sido resgatada, lenta mas progressivamente, a deslumbrar gerações atuais. Sua criação para teclado é única na concisão, no rigor e nas fórmulas propostas.
Em 1954 ouvi pela primeira vez a gravação da integral para cravo executada ao piano pela excelsa Marcelle Meyer (vide post “Marcelle Meyer – 1897-1958 – A Redescoberta Merecida”. 06/03/2007). Em 1971 executava pela primeira vez no Brasil essa fabulosa integral, que seria repetida em 1983 – ano do tricentenário de nascimento – no Brasil e em Portugal. Gravei-a em 1997, em Sófia, gravação que seria lançada no ano 2.000 pelo selo De Rode Pomp (duplo CD), na Bélgica e, em 2009, pela Concerto, em São Paulo. Em um texto publicado no “saudoso” “Cultura”, de “O Estado de São Paulo”, comemorava o tricentenário (nº 172, ano IV, 25/09/1983, pp. 5-7). Sessenta anos escoados e que apenas dimensionam a profunda admiração pela música e pelas teorias de Jean-Philippe Rameau, do primeiro impacto ao presente. Estou longe de desvendá-lo. Uma vida é suficiente?
On 12 September 1764 – exactly 250 years ago – died in Paris Jean-Philippe Rameau, the most accomplished musician of his time. This post addresses his works as a composer – harpsichord music, operas, motets, cantatas – and also as a music theorist, whose treatises continue to influence musical thinkers up to the present days.