Navegando Posts publicados em outubro, 2014

Conflito Israel-Palestina e Outras Reflexões sobre Música

O Conflito Israel-Palestina e Outros Textos sobre Música

Esse conflito não é político, mas humano,
o choque radical de dois povos
que reivindicam seus direitos sobre a mesma faixa territorial,
que ambos consideram como sua pátria.
É necessário compreender a especificação histórica desses povos,
que deverão acabar por aceitar que seus destinos
são irremediavelmente misturados.
Daniel Barenboim

O conflito Israel-Palestina, que teve há poucas semanas atrás recrudescimento indescritível, tem sido um dos temas preferenciais do grande músico Daniel Barenboim, que exaustivamente tenta o utópico, o entendimento entre os dois povos conflitantes. Tanto nas conversas com Edward Said (“Parallèles et Paradoxes –  Explorations Musicales et Politiques. Entretiens”, Paris, Le Serpent à Plumes, 2003), como em “La Musique Éveille le Temps” (Paris, Fayard, 2008), o músico insiste nessa aproximação que poderia levar à Paz. No livro atual, “La Musique Est un Tout”, capítulos são dedicados ao grave problema. Judeu, obteve o passaporte palestino, mercê, em parte, da orquestra West-Eastern Divan Orchestra, a reunir músicos de várias procedências.

No discurso de Barenboim inexiste sofisma. Acredita firmemente, assim como parcela considerável de não envolvidos com os povos da região conflitante, que apenas o entendimento poderá salvar uma situação que se acentua, recrudesce e, quando luz parece dar significado à compreensão, propositadamente o conflito se expande. Se o músico não sabe quem provocou o conflito, pergunta contudo quem dará os passos que levarão ao fim desse longo derramamento de sangue. O que parece relevante é a atitude consciente de Daniel Barenboim, que entende as duas partes: “Todos os Palestinos devem reconhecer que a violência não é remédio contra os sofrimentos sob regimes de ocupação ou de exílio. Se bem que os Palestinos tenham o direito de reagir com rancor à reivindicação dos Israelenses naquilo que eles consideram como sua pátria, devem contudo admitir a existência de Israel”. Propõe o desmantelamento das colônias, mas defende fronteiras seguras anteriores a 1967, com pequenas alterações. Posiciona-se firmemente ao escrever que Israel “deve aceitar que a parte oriental de Jerusalém seja a capital da Palestina, e reconhecer que ninguém tem moralmente o direito de negar a um outro povo o direito de regressar à sua terra. Esse direito tem de ser negociado entre as partes”.

Estava a ler o capítulo “La leçon humaine de Gaza” durante os dias fatídicos que marcaram o envio de foguetes de curto alcance pelo grupo Hamas na faixa de Gaza e a represália israelense. Vários são os fatores que resultam na supremacia do Hamas sobre o El Fatah na Autoridade Palestina. Tem o primeiro um objetivo primordial, que seria o aniquilamento de Israel. Isso é fato. Seus recursos logísticos e armamentísticos correspondem à ínfima parte do poderio militar de Israel. Entretanto, Gaza não é apenas a belicosidade do Hamas.

Daniel Barenboim tem postura clara a respeito do conflito. O ensaio em apreço, publicado inicialmente na edição italiana de 2012 (“La musica è un tutto”, Milano, Giangiacomo Feltrinelli), apresenta a posição do músico, meses antes do acirramento das hostilidades em meados deste ano. Importa verificar o que pensa Barenboim a respeito do povo de Gaza, da vida cotidiana, de suas difíceis conquistas nas áreas da saúde, educação e cultura. A radiografia estende-se ao lado humano do povo de Gaza. Barenboim atinge o cerne da questão e não vê outra saída a não ser o diálogo que poderia levar à paz. Observa: “Independentemente de suas implicações políticas, de sua injustiça e da miopia que o caracteriza, a mais terrível consequência do bloqueio de Gaza empreendido por Israel, atribuindo uma culpabilidade coletiva a todo o povo, é o prejuízo que essa atitude provoca na qualidade de vida da população que lá habita. Minha experiência recente me leva a afirmar que, malgrado as condições tantas vezes insuportáveis às quais são submetidos, numerosos cidadãos de Gaza continuam cheios de esperança e de iniciativas e estão prontos para construir  um futuro melhor na paz. Não diferem de muitos israelenses. A questão, entretanto, é como encontrar meios de colocar em contato pessoas que, em fins de conta, têm aspirações análogas”. Acredita Barenboim que as aspirações palestinas “só podem ser satisfeitas pela criação de um Estado palestino autônomo e soberano”. Com a coragem que lhe é peculiar, o músico levaria sua orquestra a Gaza para concerto histórico, pois “o aspecto mais problemático de toda visita a Gaza tem sido o de passar a fronteira, mas uma das primeiras diretrizes do governo egípcio pós-revolucionário foi a de abrir a passagem de Rafah (fechada desde 2007), o que nos permitiu entrar em Gaza a partir do Egito”. Barenboim narra as dificuldades que teve. Após reunir outros corajosos músicos, integrantes da Staatskapelle de Berlin, das Filarmônicas de Berlin e de Viena, da Orquestra de Paris e do Teatro Scala de Milão, conseguiu atravessar as fronteiras, não sem restrições atemorizantes do Hamas. Lembre-se que Osama Bin-Laden morrera no dia 2 de Maio de 2011 e o concerto realizou-se no dia 3, sob os auspícios das Nações Unidas, da UNRWA e da Unesco, com a cooperação do governo egípcio. Frise-se que Barenboim elenca instituições que faziam Gaza respirar. Menciona a população de 1.200.000 habitantes e a existência de 12 universidades. Considera que “essa jovem geração de Palestinos seguiu estudos superiores, é bem informada, cheia de ambições e será chamada um dia a desempenhar papel relevante no desenvolvimento futuro da região”. Barenboim conclui que “a violência apenas obstaculiza toda legitimidade da causa palestina”.

Durante a recente crise provocada pela insanidade de membros do Hamas, lançando foguetes de curto alcance que provocaram umas poucas mortes, houve a retaliação desproporcional de Israel, ceifando centenas de vidas, entre estas as de idosos e crianças, destruindo instituições que funcionavam como hospitais, escolas, prédios e tudo que estivesse ao alcance de uma das mais poderosas máquinas de guerra do planeta. Sim, lhes é dado o direito de se defender e caríssimo sistema de interceptação dos foguetes lançados pelo Hamas evitou maiores baixas em Israel.  A represália, a cada saraivada de foguetes, é que foi rigorosamente desproporcional. E a paz? Quando virá? Não deveriam dirigentes do Hamas ou a cúpula que governa Israel serem submetidos às Cortes Internacionais? São crimes de Guerra, que teriam de ser julgados e seus mentores responsabilizados. O pensamento visionário de Daniel Barenboim jamais, creio, assistirá nem julgamento nem paz naquela região.

Em “La Musique Est un Tout” há uma série de entrevistas concedidas a Enrico Girardi. Creio que a primeira sobre a West-Eastern Divan Orquestra, é a mais interessante. Apesar de retomar temas referentes ao conflito, reitera Barenboim que os dois povos estão convencidos “de ter direito histórico, filosófico, antropológico e religioso. Em uma palavra, humano, de viver sobre o mesmo território. Nenhuma estratégia militar trará solução. Só há três possibilidades objetivas: viver num único país cuja população teria duas nacionalidades e que contaria sete (Israel) mais sete (o todo da Palestina) milhões de habitantes, solução inaceitável por Israel e pelos judeus, desde o Shoah (holocausto); ou a criação de dois países independentes que, após certo tempo, se unissem eventualmente em uma federação, solução difícil de ser aceita pelos palestinos, que sempre acreditaram que a região lhes pertence; ou o massacre de ambos os lados. Quartum non datur: não há outra possibilidade. Eu não trabalho pela paz, mas contra a ignorância e contra soluções falsas e ilusórias”. Nesse capítulo perguntas foram formuladas sobre o desenvolvimento de Barenboim e sobre interpretação.

Se a primeira entrevista é rica em pormenores a abranger parte das preocupações do músico, as seguintes envolvendo três óperas emblemáticas, Carmen de Bizet, As Walkírias de Wagner ou Don Giovanni de Mozart, antolham-se-me como as de menor interesse. Creio que o músico, com agenda plena de concertos como pianista e regente, além de acumular cargos diretivos relevantes, tenha caído em “armadilha”. Que subsídios de grande interesse não poderia ter legado se fosse perguntado sobre o gênero ópera dos primórdios à atualidade, a evidenciar estilos, evolução histórica… Enrico Guirardi levanta alguns questionamentos, diga-se, respondidos com competência pelo maestro Barenboim, de larga experiência no gênero operístico. Algumas perguntas chegam a ser pueris, ligadas à agenda a ser apresentada em público, e justamente baseadas em apenas três modelos com fartíssima bibliografia.

Finalmente, em “Épilogue”,  Barenboim presta homenagem ao extraordinário barítono Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), ratificando convívio mantido e as qualidades do grande cantor. Em “Épilogue verdien”, tece elogios à imensa contribuição de Giuseppe Verdi à ópera universal. Justamente nesse curto epílogo Barenboim expõe algumas de suas preocupações quanto à interpretação: a flexibilização dos andamentos indicados pelo compositor, para mais ou para menos rápido, conservando-se contudo, in conditio sine qua non, a proporcionalidade dos  tempi e, na mesma orientação, a observância da dinâmica, fatores essenciais à responsabilidade interpretativa frente à obra.

Um grande livro, apesar das 172 páginas.

This post resumes the appreciation of Daniel Barenboim’s book “La musique est un tout”, now addressing topics of his interview with journalist Enrico Girardi and in special the author’s views on the Israeli-Palestinian conflict and his conviction that both sides can take a step toward each other and live in peace side by side.

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No link abaixo o leitor terá acesso à “Suonata Seconda” das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau, sempre sob os cuidados de meu amigo maratonista Elson Otake. Belíssima obra que ilustramos com imagens referenciais.

Clique para ouvir a “Seconda Suonata” bíblica de Johann Kuhnau. Piano J.E.M.

 


 

 

 

 

 

Quando a Música Tem o Valor Totalizante

A música é parte essencial da dimensão física do espírito humano.
Daniel Baremboin

Há algum tempo resenhei “A Música a Despertar o Tempo”, do pianista, regente e pensador Daniel Barenboim, um dos mais notáveis músicos das últimas décadas (vide blog 17/09/2011). Em “La Musique est un Tout” (France, Fayard, 2014) Barenboim expõe conceitos que o tornaram o músico que é. Reúne o livro, publicado anteriormente na Itália em 2012, textos em forma de ensaios sobre música, a dar importância relevante a entrevistas concedidas ao musicólogo e crítico musical Enrico Girardi. Recorre igualmente, como o fez nas últimas publicações, à problemática Israel-Palestina. Portanto, dividi em dois posts o conteúdo do livro, o primeiro a abordar  o substancial ensaio inicial, “Éthique et Esthétique”.

Desde 2007 tenho colocado posição a respeito da necessidade do intérprete ter uma visão ampla do mundo que o cerca. Cultura abrangente é fundamental. Muitos artistas, consagrados nos palcos, prescindiram dessa prerrogativa essencial e talentos extraordinários, munidos de intuição clara, conseguiram ficar à margem de uma visão essencialmente cultural. Importava mais a recepção pública do que o aprofundamento humanístico. Se não indispensável para legião de profissionais que cultua a música popular, creio contudo significativa a edificação do músico sob o manto homogêneo da cultura. Enriquece o diálogo, tornando-se o intérprete arauto de procedimentos que poderão advir.

Seria em “Ética e Estética”, o capítulo mais importante do livro, a meu ver, que o pianista-regente apresenta sua concepção dessas palavras tão controvertidas. Preocupa-se em evidenciar aquilo que considera “o fosso crescente que separa o pensamento artístico do pensamento prático”. Apresenta como fulcral o respeito irrestrito à partitura, “obrigação moral”, como afirma. Barenboim assinala que “o primeiro dever de todo intérprete é o de recriar a obra com sinceridade e devoção, e não exprimir a sua própria personalidade”. Sim, respeita-a, mas dentro de limites que não interfiram na condução musical, pois tanto a negação de si mesmo como a arrogância não são louváveis.

Ao se referir ao repertório, entende maior a dificuldade em se familiarizar com obras contemporâneas do que com as de compositores do passado. Saliento que, se obras de períodos anteriores estiverem na penumbra quase absoluta, o trabalho para a edificação de uma interpretação também adquire o ineditismo e, portanto, grau maior de dificuldade, a se equiparar com as da contemporaneidade. Nos dois casos, a escuta não está familiarizada. Ao se referir às obras do passado, mas conhecidas e mantidas “na ponta dos dedos”, haveria, contudo, a necessidade de se conservar o frescor da primeira aproximação.

Considera Barenboim a problemática da manipulação e condena a busca de efeitos particulares, que levam à ausência da ética interpretativa e da autenticidade. O posicionamento que faz a respeito de obra de seu repertório interpretada no decurso de 60 anos seria exemplo de coerência e autenticidade. O YouTube nos apresenta, saliente-se, inúmeros intérpretes respeitados em execuções diferenciadas ao longo das décadas. Alterações existiriam? Quando há respeito à partitura, o que se ouve é mais uma interpretação autêntica. Em posts anteriores observei que o “tempo” para o compositor é finito pois, obra finda, é ela “atirada à roda”, na pena de Guerra Junqueiro. O tempo do intérprete dura enquanto perdurar sua atuação ao longo da carreira, e as mudanças interpretativas, sem desqualificar a partitura, evidenciam esse “tempo” infindável na busca da inatingível perfeição. E esse tempo da existência para o intérprete consciente “é o resultado do debruçar intenso sobre a obra, repetições e experimentações e do conhecimento de si mesmo como músico”, afirma Baremboin. Seria essa incontável parcela da vida dedicada à repetição atenta que levaria o intérprete alerta a poder executar diante do público a obra assimilada, incorporada, sem interrupção, mas referencial em seus intentos de divulgação. O zelo do pianista-regente-pensador mostra-se, portanto, integral. Justificar determinada mudança interpretativa é outra maneira dessa consciência cuidadosa, pois “a falta de ética é evidente quando um intérprete decide solução por puro capricho, simplesmente por lhe agradar e sem nenhum respeito pelo tempo objetivo, a hierarquia harmônica ou a frase musical”.

A respeito do repertório da denominada música antiga, Baremboin tem pensamento bem próximo àquele reiteradamente colocado por mim em textos desde o início dos anos 2000 (Gent, De Rode Pomp, 2001; Coimbra, IUC, 2004; Paris, Témoignage nº4 – Sorbonne, 2012) e ratificado pelo ilustre François Lesure, que considerava ultrapassado o debate cravo-piano, interessando-lhe sim a qualidade do intérprete. Menciono esses fatos que corroboram a guarida que meus cinco CDs lançados na Bélgica, privilegiando Jean-Philippe Rameau, Johann Kuhnau e Carlos Seixas, tiveram na Europa. Contudo, Barenboim vai mais ao fundo e, no texto em apreço, “Éthique et Esthétique”, considera que há entre os adeptos da música antiga aqueles mais dotados, frise-se, que fazem vir à luz seus estudos aprofundados, mas que “inversamente, há aqueles menos dotados de talento, que se submetem aos dogmas do movimento, como se esses pudessem substituir o pensamento individual, transformando sua prática musical em entreguismo que pretende muitas vezes oferecer respostas a perguntas que ninguém jamais colocou”. Curiosamente, François Lesure também utilizou-se em 2001 dos termos dogma e entreguismo. Barenboim ironiza o movimento, considerado progressista e moderno, “sistema de pensamento cujo objetivo é o de recriar circunstâncias que existiram há duzentos anos”. Menciona ainda o progresso técnico de tantos instrumentos e a recepção auditiva, pois as salas de concerto atuais são bem mais amplas. Em meus textos citados acima observei que o primordial entrave possa ter sido o silêncio de um século do cravo durante o transcorrer do século XIX. A tradição da escuta perdeu-se para sempre e os apegados aos “dogmas” citados por Baremboim e Lesure tiveram de buscar, na fonte impressa ou nos instrumentos “empoeirados” durante longo período, respostas a perguntas por vezes insondáveis.

Ao observar a condução das vozes em uma partitura, o autor evidencia todo o respeito à importância de cada uma, comparando-as ao “diálogo falado, quando interlocutores mais importantes têm durante mais tempo a palavra”.

Sobre gravações, pondera que “a qualidade da escuta é função do indivíduo”. Com certa dose de ceticismo, considera a escuta sem discernimento, ouvida em qualquer lugar, como barulho de fundo, apenas. A escuta atenta revestir-se-ia do sagrado: “a verdadeira escuta exige concentração, curiosidade e devotamento total àquilo que se está a ouvir”.

Barenboim considera a emoção, palavra tão anatematizada por estruturalistas. “A emoção não é inerente a uma peça musical. Será a percepção humana da repetição e das mudanças, entre outras, que confere emoção à música”. Ficaria confiado ao público “modificar seu estado de espírito e acolher o senso da música no momento de sua realização física”.

As últimas páginas de “Éthique et Esthétique” privilegiam a ascensão tecnológica. Contudo, mostra-se o autor pronto ao desafio: “O século XX distinguiu-se pela tendência à desconstrução, à fragmentação e à especialização e meus votos para o século XXI fixam como objetivo o papel não fácil da reconstrução, da reunificação e da expansão do saber”. Utópico? Talvez. Contudo, vê valores no progresso tecnológico e nas comunicações. Considera que a música (certamente a de concerto) viva ainda em torre de marfim, a abrigar intérpretes e público.

No próximo post comentarei os capítulos seguintes. Os dedicados ao conflito Israel-Palestina são pungentes. As entrevistas a Enrico Girardi, afeitas, infelizmente, a um quadro repertorial repetitivo, não permitem tantas expansões por parte do respeitado intérprete e pensador. Em dois outros instigantes artigos a abordar a área musical o músico comenta aspectos fulcrais da interpretação.

This post addresses the book “La Musique Est un Tout”, a series of essays in which the musician, intellectual and writer Daniel Baremboin explains in a very lucid way his ideas on music and on the Israeli-Palestinian conflict. For now I’ll confine myself to the section of the book devoted to music. The next post will deal with the Israeli-Palestinian issue and other music-related topics.


 

 

 

 

 

Idalete Giga e a intimidade poética

A música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro

Todo o meu ser
é embalado
pela Mãe-Natureza
que canta baixinho
sempre mais baixinho
até me adormecer
Idalete Giga

Idalete Giga está sempre a me surpreender. Conheci-a em Lisboa no início dos anos 1980, quando assistente da saudosa e notável gregorianista Júlia d’Almendra (1903-1992). Não poucas vezes estive na Igreja de Santo Antônio em Lisboa e tanto como coralista, sob a direção da mestra, como a substituí-la, pude aferir o profundo senso de plasticidade musical durante o encantamento de inefáveis cantos gregorianos. A amiga esteve sempre presente aos meus recitais em Portugal, desde aqueles longínquos anos. Estreitou-se a amizade, estendida através dos anos à minha mulher Regina, filhas e netas. A semana em que passou em nossa casa durante tórrido verão em Fevereiro último ratificou a admiração pelo talento multidirecionado da musicista-poetisa (vide Idalete Giga – Visita que Marcou, 22/02/2014). Sua sátira para três jograis, Zoprotikaviform e o Reino da Quantidade, teve recepção calorosa em meu clã.

Acompanhar Idalete em sua fala sempre inflamada tanto no amor absoluto à música, como na crítica ardorosa à corrupção que infesta Brasil e Portugal, corroendo-os nas entranhas, surpreende o interlocutor. Idalete é sempre incisiva em suas posições, mercê de uma irretocável condução na existência. Íntegra. Paradoxalmente, a amiga, quando conduzida pelo devaneio à arte da poesia, transfigura-se, e essa metamorfose se dá de maneira surpreendente. É possível entender que essa alentejana da gema encontre sua tebaida na planura do Alentejo, na aldeia de Ciborro, lá se refugiando do entulho de toda espécie que as grandes cidades despejam sobre o cidadão diariamente. Céu translúcido, planura e horizonte infindo, silêncio, “asa protetora que me envolve”, segundo a poetisa em seu poema “Hino ao Silêncio”. Esses elementos integram um vasto acúmulo de sensações que foram somadas em camadas homogêneas, a formar o todo da harmonia. O amor ilimitado pela natureza tem sido substância essencial para a musicista-poetisa, exemplificado pela regente coral impecável em sua condução do Coro Capela Gregoriana Laus Deo e através da veia poética emergindo como magma vulcânico. No “Hino à Natureza” a poetisa não professaria seu amálgama absoluto? “Hoje/quero/apertar na alma/a Natureza toda/num abraço Infinito”.

Idalete não se utiliza do ferramental da pontuação. A ausência de vírgulas e pontos seria uma temeridade não fosse a autora especialista ilustre do canto gregoriano. Tem-se a fluência própria e a disposição dos poemas navega nas plácidas ondulações sonoras e vocalizadas. Transfere para seus poemas a magia flutuante e a “pontuação” se integra à respiração. Idalete tem a sabedoria da condução da frase que em todos os poemas segue seu curso melódico e sereno. Se utilizada, a rima tornar-se-ia amarra. As palavras apreendem o maravilhamento do canto. “Cantar é moralizar o som”, no conceito de Guerra Junqueiro.

A leitura de “Canto da Palavra” (Lisboa, Chiado, 2014) transporta aquele que percorre os singelos poemas de Idalete ao universo onírico e imaculado. Inexiste subterfúgio, tampouco a intenção de agradar, contudo a seduzir e muito o leitor.

Poder-se-ia afirmar que as longas sendas trilhadas por Idalete levaram-na ao que de mais sensível existe nas terras do Alentejo e a fizeram perpassar em versos experiências captadas pelos sentidos. A alma da poetisa vibra em consonância com as gradações depreendidas da terra, do mar, da luz, do espaço. A leitura, a obedecer a disposição dos conceitos, emana sonoridades, ritmo e respiração. Das profundezas do Alentejo apreende o significado do isolamento em “Alentejo Profundo”:

O Alentejo
é a pura solidão
total
vestida de silêncio

O Alentejo
é um mar
de sobreiros a sangrar
magoado
de profunda nostalgia

O Alentejo
é um choro de menino
abandonado
é um grito ancestral
estrangulado
perdido
no Infinito.

Em torno do mistério alentejano nunca desvelado por inteiro desfilam sentimentos da autora, em êxtase na sintonia contemplativa. Idalete em seu mundo metafórico torna lírico o rude, o inóspito quiçá,  dando-lhes a interação com o belo. O observar a entender a metamorfose da terra. Impossível não compartilhar todo o processo de transformação ofertado pela poetisa. O Alentejo irmana-se à Terra Prometida, ao Shangrilá dos sonhadores.

Pintora das palavras, Idalete filtra a luminosidade alentejana. Nada escapa ao olhar ávido do lirismo das cores: “Ao longe/muito ao longe/quase a perder de vista/uma faixa de luz rósea/a esmaecer/cingia o horizonte” em “Crepúsculo”, ou “A brancura das flores de esteva/ iluminando/o roxo rosmarinho/o amarelo vivo/das giestas/languidamente curvadas/à beira do caminho” do poema “Aquarela da minha infância”. Há sempre a pulsar uma alvura espontânea, característica dos autênticos. No silêncio, tão presente em tantos poemas como sereno leitmotiv, Idalete encontra luminosidade e “Hino ao Silêncio” testemunha a afeição pelo inaudível “És a Luz/transparente/onde me encontro/a asa protetora/que me envolve”.

Idalete tem plena empatia pela onomatopeia. Senti esse seu afeto sincero e natural nas muitas viagens que, ao longo dos anos, fiz com a amiga de Lisboa a Évora para recitais de piano, que apresento anualmente no Convento Nossa Senhora dos Remédios, promovidos pelo Eborae Musica, sob a dedicada direção da Profª Helena Zuber. Sons e ruídos não lhe escapam. Sensibilizava-me o seu maravilhamento ao ver cegonhas aninhadas nas torres de transmissão. Inundava-a entusiasmo  juvenil. Sob outro contexto, o canto dos pássaros têm efeito de sedução e Idalete deixa-se encantar. Emulação integral com os cantos de seu Coro Gregoriano Laus Deo, que flutuam nas naves das igrejas onde se apresenta. No poema “Aves Canoras”, a poetisa desvela-se por inteiro:

Pequeninos
deuses alados
vestidos
de graciosidade
e de leveza

Dádiva Divina
do Criador à Amada Mãe-Natureza

Sábios
Mestres cantores

Excelsos improvisadores
de ritmos incontáveis
e sons encantatórios

Músicos do céu

Símbolos vivos
do Espírito liberto
do peso da Terra

Idalete se refugia em seu mundo interior e essa viagem ao insondável torna-a sensível e, ao revelar frutos desse recolhimento, faz-nos entender parte de seus segredos. Em “Canto Breve” revela: “Por isso me escondo/no silêncio/na solidão acompanhada/e na nudez/da minha irreverência/e rebeldia”. As incursões no desconhecido ancestral e sobrenatural fazem parte do todo voltado ao silêncio e ao olhar interior, que descobre passados atemporais. “Morri de Saudades” é pungente exemplo:

Correm-me nas veias
sangue nómada

Fui cigana e cigano
noutras vidas

Morri de saudade
de solidão
amarga e doce
em eternas chegadas
e partidas

Em sua sabedoria, Idalete tem o dom do recato. Não se expande, não busca a sedutora e tantas vezes traiçoeira divulgação. Reconhece seu espaço e admira os bons, aqueles que deixaram exemplos em suas áreas através do saber e das qualidades intrínsecas. Presta homenagens em poemas despojados a Olivier Messiaen, Jorge Peixinho e à poetisa maior alentejana, Florbela Espanca, que foi fruto de um substancioso ensaio no livro “Mulheres do Alentejo na República” (vide post 28/01/2012). Essa pequena grande mulher da planura alentejana vive para a entrega plena ao Belo, à Música, à Poesia, à Amizade, ao próximo. Discretamente finaliza no poema “Nada sei”: “A alma e o coração/segregam-me baixinho/Ama e sonha/Ama e cria/Ama e confia”. Idalete Giga permanecerá.

On the book “O Canto da Palavra”, written by the Portuguese musicologist, choral conductor, poetess and also my personal friend Idalete Giga. In free verses, the poems are principally associated with nature, landscapes and sounds of her native Alentejo, carrying readers to a dreamlike and immaculate universe, at the same time unveiling the author’s inner feelings and reflecting on universal themes.