A Mesmice Repertorial a Eclipsar o Genial Compositor

Desde que se queira provar o efeito de um canto,
necessário torna-se a sustentação de toda a harmonia que ele depende;
é nessa harmonia mesma que reside a causa do efeito,
nunca na melodia, que não é senão produto da harmonia.
Jean-Philippe Rameau
(“Observations sur Notre Instinct pour la Musique”)

Ao longo de sete anos e meio tenho situado tantas vezes a problemática dos repertórios repetitivos, que anualmente persistem em nossas programações de concerto. A inclusão de obras pouco executadas do passado é esparsa e uma espécie de concessão de intérpretes e daqueles que se incumbem das programações, não se descartando o empresário, para o qual, basicamente, o repertório consagrado torna-se parte substancial de sobrevivência. As temporadas de ópera do Teatro Municipal de São Paulo têm merecido forte guarida da mídia paulistana e são exemplos claros da constante repetição. Todos os anos a concentração maior volta-se aos mesmos títulos de compositores consagrados. Quantas vezes já não produziram em São Paulo Carmen, de Bizet, La Bohème, Tosca e Madame Butterfly, de Puccini, La Traviata, Il Trovatore e Aida, de Verdi, Cavalleria Rusticana, de Mascagni, ou I Pagliacci, de Leoncavallo? Louve-se a temporada do Theatro São Pedro neste ano. Através de critério mais arejado tem revelado ao longo de 2014 óperas inéditas em São Paulo, do barroco à contemporaneidade. Duas óperas entre cinco privilegiam autores brasileiros, Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Ronaldo Miranda (1948-  ).

No último livro de Daniel Barenboim, “La musique est en tout”, há segmentos  em que o notável pianista, regente e pensador responde a perguntas formuladas. Aliás, a meu ver a única seção de menor interesse. São espaços consideráveis dedicados às óperas Walkíria, de Wagner, Carmen, de Bizet e Don Giovanni, de Mozart. As perguntas, verdadeiro “lugar comum”, retomam temas exaustivamente tratados através dos decênios em detrimento de tantos outros que poderiam focalizar óperas fabulosas, do barroco ao presente, tesouros minimamente apresentados e muitos deles guardados em arquivos. Logo a seguir há um texto original de Barenboim sobre Verdi, possivelmente o de maior valia nesse compartimento do livro dedicado à ópera, pois a abranger a concepção verdiana e aspectos voltados à dinâmica e às indicações metronômicas. Em breve haverá a resenha.

A mesmice repete-se também no repertório sinfônico, incluindo concertos para instrumento e orquestra, cujo resultado chega a ser constrangedor. Assistimos  todos os anos a intérpretes visitando nossas terras e repetindo obras durante… décadas. Sem rubor algum.

Outro aspecto está relacionado a efemérides. Em ano festivo, são apresentadas obras numa escala superior à habitual, mas logo após tudo volta ao normal. Contudo, nesses festejos ao menos pode-se aferir uma parcela maior da produção de um compositor.

Quanto a Jean-Philippe Rameau, neste ano em que se comemoram os 250 anos de sua morte, esforços foram realizados em França, tímidos, diria, mas estimulantes. Apenas para mencionar Outubro, será apresentada em várias datas a ópera Castor et Pollux no Théatre des Champs Elysées, em Paris, sendo que o Festival Baroque de Pontoise prestará, entre Setembro e Outubro, homenagem ao mestre nascido em Dijon.

Rameau. Les Niais de Sologne. Piano J.E.M.
Rameau. L’Egyptienne. Piano J.E.M.

Comentários de leitores saudaram a homenagem prestada a Rameau neste espaço. O compositor e pensador francês François Servenière expõe conceitos para reflexão que se estendem, numa comparação da linguagem musical, à contemporaneidade. Frise-se que nesse compartimento há incontáveis tendências, sendo que os inesgotáveis processos contraponto e harmonia, à la manière de combinações do jogo de xadrez, longe estão do esgotamento. Contudo, após o serialismo e com o advento posterior da música a empregar meios eletro-acústicos, territórios mostrar-se-iam distintos. Polêmico, voltado aos nossos dias, mas a empregar processos do contraponto e da harmonia, Servenière reflete em seu texto, como em outros anteriores, a autenticidade de um músico que não se esquece da tradição assimilada. Eis sua mensagem:

“Acabei de ler seu artigo sobre Jean-Philippe Rameau e fico emocionado ao perceber o seu amor por sua obra e por outros compositores franceses, pelo espírito francês dessa música que você definiu como clara e concisa, menos carregada que aquela de seu vizinho alemão mais sério, e menos alegre, infelizmente, do que o estilo italiano.

Rameau é um compositor verdadeiramente sério, mesmo se considerarmos sua música como aquela do coração. É necessário tempo para se deixar tocar pela alegria da ética musical, pelo rigor levado ao seu mais alto degrau.  Malgrado tudo, Rameau, como J.S.Bach, tem o efeito de unguento universal, pois é verdadeiramente música que não se deteriora, sendo, pois, inalterável através das épocas, sem sofrer efeito de moda. Já discutimos várias vezes que não sabemos qual o futuro da música contemporânea. Contudo, parece-nos flagrante que ela esqueceu de falar aos corações. Por quê? Há evidentemente ideologia modernista e totalitária subjacente. Sim, havia a necessidade de reformar uma linguagem amparada por uma época, o século XIX, mas o que se seguiu não foi devidamente dominado pelos novos modernos, que se deixaram cair na própria armadilha dialética e de poder, novo paradigma no qual não encontraram a porta de saída e preferiram a fuga adiante, até o absurdo. Rameau torna-se pois, como Bach, Mozart, Debussy, Ravel e Stravinsky, o nó original ao qual necessariamente tem-se de voltar para que o senso de uma história esquecida e o senso de uma música feita de sensações e sentimentos sejam primazia. A vida musical não pode continuar a crescer sobre galhos mortos. Há a imperiosa necessidade de voltar-se às referências, aos antigos cruzamentos, após perder-se em sendas que não levam a nenhum lugar e a fim de que seja encontrado o bom caminho, aquele que nos levará ao futuro seguro. Era esse também o senso de meus Études Cosmiques e de minha obra em seu conjunto, apesar de meus estudos superiores de música terem sido realizados numa conjuntura para a qual só a música serial é tolerada. ‘O compositor que não compuser empregando o serialismo não tem qualquer interesse hoje’,  segundo Pierre Boulez. Temos de reencontrar um caminho perdido.

Você pode observar a que ponto estou a defender princípios em sintonia com a música de Rameau, pois meu propósito não é diferente do seu. Continuo a pensar e compondo eu pratico. A música é a mistura da harmonia e do contraponto, com um acréscimo fundamental desenvolvido mormente no século XX, o ritmo. Não sinto contraponto na obra de Boulez, e determinados contemporâneos rejeitam a técnica, entendendo-a como figura do passado… Que erro! Neles, o contraponto passa ao largo, pois produzem obras aglomeradas de artifícios e de artefatos. Componho utilizando-me da harmonia e do contraponto, a partir de minha formação como cantor de coral, logicamente.

Não me espanta o fato de Debussy ter admirado Rameau, toda a sua música ressente-se dessa herança, pois há contraponto, harmonia sem perder o espiritual e  o sensual. A história da música nos diz que ela é construída através do contraponto e tem desenrolar expressivo em todas as maneiras de compor. Algumas músicas descritivas, mesmo no cinema, causam impacto, mas elas não se traduzem como obras duráveis ou de efeito profundo sobre o pensamento. Tem-se somente aspectos decorativos, muitas vezes inteligentes e sábios; contudo, somos subjugados pelo espírito contrapontístico quando a sua essência eclode.

A música do coração nasce de sua prática. Poder-se-ia afirmar que os corações acabam por se afinar quando os corais (as diferentes vozes, como as diferenças entre indivíduos na sociedade) findam por harmonizar suas discordâncias a fim de interpretar a mesma partitura. Este seria o principal defeito de certas tendências da música contemporânea: tem-se um prazer onanista. Não divisível, não partícipe! O que faz com que toda música coral e contrapontística seja também ramista.” (tradução: J.E.M.)

Rameau. La Folie da Ópera Bufa Platée. François Leroux, barítono; Mireille Delunsch, soprano; Les Musiciens du Louvre sob a direção de Marc Minkowsky. Fonte YouTube.

Nossas sociedades de concerto estariam abertas ou cederiam espaço frente à pressão que vem do hemisfério norte no sentido da repetição ad nauseam de repertório sacralizado? O público, ao ouvir sempre o que já se fez ouvir tantas vezes, habitua sua escuta unicamente ao conhecido. Disfarçam temporadas inserindo na programação alguma obra inusitada que não voltará mais ao repertório, pois o sacralizado tem que dar continuidade a esse rio sem os meandros que lhe conferem encanto. Prevalece o retilíneo, imutável. Perde o público a genialidade de tantos autores. As extraordinárias óperas de Rameau aguardam uma possível “condescendência”. Haveria interesse descompromissado? Seria almejar muito.

In this week’s post I resume the reflection about the works of Jean-Philippe Rameau, this time including message received from the French composer François Servenière with his own views on the subject.