Considerações após Questionamento
Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.
Todo o progresso tem como meta a entropia.
Agostinho da Silva
Durante treino para corridas de rua em São Paulo e cidades vizinhas cruzei com amigo que também gosta da atividade. Bem mais jovem, Marcelo inverteu sua trajetória e acompanhou-me por alguns quilômetros. Após, retomou seu percurso. Ele pertence ao vasto universo publicitário e, por vezes, faz pulsar sua veia poética e também o afeto pelo violão.
Lera o post sobre Jean-Philippe Rameau, e o tema voltou a ser discutido. Comentou o texto com agudeza. Contudo, dele veio arguta pergunta ao falarmos da diversidade teórico-musical e dos caminhos empreendidos por Rameau relacionados a uma nova concepção da ópera francesa no século XVIII. “Há progresso e evolução na Arte?”, questionou-me. Tratamos do tema na cadência de nossas passadas, mas sem aprofundamento. Apenas respondi-lhe que o tema é complexo, pleno de controvérsias e que existem posições diametralmente opostas. Insistiu: “O que você pensa realmente a respeito?”. Respondi-lhe que, para as Artes, não entenderia adequada a palavra progresso, pois a essência da Arte é atemporal, imutável. Inovações técnicas, utilização de materiais transformados, processos os mais variados para todas as áreas que se abrigam sob seu manto são meios para a criação artística. Acredito que a conceituação do termo progresso implicaria, inclusive, a observância do contexto.
Como o espaço não comporta o debate de tantas correntes propostas por pensadores e historiadores da Arte sobre o tema, preferiria externar simplesmente minhas considerações, após décadas acumuladas a observar e estudar vários segmentos artísticos.
Consideremos progresso e outros termos como evolução (processo em movimento), inovação, invenção, descoberta, técnica e outros mais, palavras essas que pressupõem reflexões a partir de algo revelado ou prestes a sê-lo, em ebulição. Há muitas interpretações de palavras aparentemente distintas, mas que podem ter até aproximações em determinados significados. Chegam por vezes a ser sinônimos. Características de nosso rico vernáculo.
A obra de arte independeria do progresso, pois compreendê-la aceitando-se essa condição implicaria que a próxima nessa linhagem, em princípio, será mais “avançada” do que a anterior. Haveria uma distância abissal a se pensar na comparação entre aquelas obras que permaneceram pela qualidade ou como testemunho da prática segura realizada e as que sucessivamente a história esteve a revelar, numa acumulação constante. Sob outra égide, se a obra de arte excedeu na qualidade milênios atrás, só poderia ter como parâmetro criações qualitativas realizadas através dos séculos. Não caberia, a meu ver, a aplicação do termo progresso.
Vale frisar que o progresso técnico, que levaria à reprodução da obra de arte em grande escala, inimaginável tempos atrás, traria conceitos outros quanto à criação artística. Processos visando à maior divulgação. A invenção da fotografia, o advento do cinema, a gravação, a multiplicação da arte pictórica através de tantos processos de reprodução, a evolução diária da internet, estabeleceram conceitos questionáveis quanto à aura a que uma obra artística está sujeita. Walter Benjamin (1892-1940), em seu famoso ensaio “A obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), fala-nos da perda da aura da obra de arte. O hic et nunc (aqui e agora) torna a obra original, inalienável, a autêntica e única detentora da aura, do sagrado. Martin Heidegger, (1889-1976) em seu não menos célebre ensaio, “A Origem da Obra de Arte”, observa a imanência que existe na obra de arte: “A experiência estética, tão invocada, não pode negligenciar a coisa que existe na obra de arte. Há a pedra no monumento, madeira na escultura sobre a madeira. No quadro, há a cor, nas obras da palavra e do som (poesia e música) há a sonoridade”. Heidegger comenta também que a obra de arte, transportada de seu lugar de origem para um museu, como exemplo, estaria deslocada e o mundo a que pertenceu, desmoronado. Numa visão material-obra conclusa, Saint-Exupéry (1900-1944) dirá em “Citadelle” que a pedra é apenas uma pedra, mas que a reunião delas (assemblage) ganharia sentido ao se converter em Templo (vide post “A Comunhão das Pedras – A Magia de Sint-Hilarius”, 03/05/2007). Sob outra égide, Mario Vargas Llosa (1936- ) já não mais visita Bienais de Arte devido àquilo que considera um deboche ao conceito primordial de arte, não pela reprodução, mas pelo descompromisso com a essência do termo, arrivismo de autores a qualquer custo e banalização conceitual da arte na atualidade (“La Civilización del espectáculo”, 2012). Observações…
Estou a me lembrar de opinião de minha saudosa amiga, a notável gregorianista portuguesa Júlia de Almendra (1903-1992). Indaguei-lhe certa vez, ao manusear antifonário que estava sobre sua mesa, como ela situava os cantos lá contidos. Disse-me que aquele, em particular, era depositário de cantos gregorianos praticados em Portugal e que os considerava verdadeiras joias do gênero. Emocionava-se ao comentar apresentação desses cantos que fizera com coral no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa. Poder-se-ia dizer o mesmo do “O Passionário Polifônico de Guimarães”, cuidadosamente estudado e publicado sob a orientação do Professor José Maria Pedrosa Cardoso (vide post sob o mesmo título de 23/11/2013). Sob o contexto da obra-prima mencionemos os Motetos de Guillaume de Machaut (séc. XIV), fugas do Cravo Bem Temperado e as Paixões de J.S. Bach (1685-1750), assim como algumas óperas de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), exemplos de criações que se perenizaram. Os dois últimos posts evidenciaram a importância do tratado de harmonia de Rameau (1722) e o impacto que suas teorias teriam doravante na composição. Da Idade Média ao presente, incontáveis aqueles que deixaram obras indeléveis. Pergunta poderia ser feita, melhores a cada período? Melhores não, diferentes sim, pois processos técnicos foram sendo acrescidos, propiciando aos compositores bafejados pelas musas sucessivas criações extraordinárias. Daqueles cantos gregorianos mencionados, percorrendo-se o longo caminho sonoro criativo, a determinadas criações mais recentes de Claude Debussy (1862-1918), Villa-Lobos (1887-1959), Dmitri Shostakovitch (1906-1975), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Olivier Messiaen (1908-1992) e outros mais, podem-se selecionar obras esplêndidas.
Seria a incessante busca pelo Belo que não nos permitiria falar em progresso em arte se compararmos a arte pictórica pré-Renascença e aquela dos pintores renascentistas que dominaram a técnica, propiciando a noção da perspectiva que nos levou a apreender profundidades.
Policleto de Argos (460-410 a.C.) ao escrever seu notável tratado “O Cânone”, propõe regras precisas para a escultura na Grécia. Suas teorias relativas às proporções do corpo humano vigorariam através de milênios. Se a arte da escultura grega daquele século V a.C. tornou-se dogma durante 25 séculos, assim como a perspectiva renascentista séculos afora, assistiu-se, mormente a partir do século XX, à descrença na infalibilidade dessas regras fixas. Não que pintores e escultores desconhecessem essas normas, mas pelo fato de que o caminhar da história das sociedades e do pensar levaram a essas posições. Se os gregos Fídias (490 – 430 a.C.), Policleto e Praxísteles (395-330 a.C.) esculpiram obras-primas, é também certo que Michelangelo (1475-1564) e Rodin (1840-1917), entre tantos, também o fizeram, sendo que o escultor francês já encaminharia a arte escultural para a ruptura dos cânones. O mesmo ocorreria com a pintura a partir da segunda metade do século XIX. Todavia, nas obras pré-renascentistas, renascentistas, flamengas, românticas, impressionistas, expressionistas, cubistas e tantas mais tendências encontramos obras excelsas. Progresso? Diria mais novo olhar, novas técnicas, processos outros influenciados por uma infinidade de condicionamentos.
Sob outro prisma, o emprego do termo progresso para tantos avanços materiais pareceria correto. A ciência está plena de exemplos de aperfeiçoamentos, invenções, descobertas que levam à aplicação da palavra. Sem contar o emprego correto em outras áreas. Progresso poderia implicar o abandono de aparelhagem que se estiolou com o passar do tempo. Voltaríamos aos primeiros computadores gigantescos, lentos, tela escura, impossíveis para uso doméstico? Haveria o regresso aos celulares pesados, imprecisos? Seria possível entendermos hoje as comunicações, que tardavam a ser realizadas? Estou a me lembrar de que, no longo período que permaneci em Paris a estudar música, há mais de 50 anos, apenas não mais de cinco vezes consegui falar com meus pais pelo telefone em São Paulo. Programavam a chamada para 24 ou 48 horas e cruzava os dedos para que não surgisse algum problema de ordem técnica ou meteorológica. Trocávamos telegramas para que não houvesse distração, pois aquele breve contato telefônico era sagrado!!! Houve extraordinário progresso, mercê de invenções e descobertas, aperfeiçoamento dos materiais utilizados, abandonando-se o que ficou ultrapassado, peças de museus específicos ou sucata, simplesmente. E é justamente esse abandono que dimensionaria o progresso nessas áreas e em tantas outras, como a indústria automobilística, a aviação… Quanto à música por processos eletrônicos, preferiria aguardar a passagem do tempo, “infalível e insubornável”, segundo Guerra Junqueiro. Nestes últimos 50 anos assisti à glorificação, durante lustros ou décadas, de compositores e à bruma post-mortem ocultá-los inexoravelmente. O denominado work in progress, tão decantado na era da música com suporte tecnológico eletroacústico tem lá sua razão, pois nesse segmento há constante mutabilidade e processos hoje utilizados serão considerados jurássicos, por vezes em menos de uma década. A sucessiva troca de materiais mais recentes para esse fim não tenderia a evitar que a criação se sedimente da maneira que foi concebida? Entenderia que nessa área da música possamos empregar a palavra progresso.
Das obras de arte do Egito antigo às contemporâneas, do canto gregoriano ao presente, de Camões (1524-1580) a Fernando Pessoa (1888-1935) ou Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), sempre pairaria sobre inúmeras criações a aura da excelência, cultuadas pois ad aeternum.
A obra de arte, ao atingir essa qualificação, é testemunho de sua época. Única, fixada no tempo, ela contém a aura da imanência. A obra-prima na Arte é um milagre e a ideia do artista, que leva à criação, um mistério. Milagres não progridem, tampouco o mistério. Estando há tantas décadas na esfera da interpretação, a trajetória pela vida tem sido a do observador que, a cada criação musical, principalmente aquela que jamais ouvira e que me atrai pela inefabilidade, sente o estímulo que conduz à revelação. A razão de pouco frequentar, desde meus 40 anos, o repetitivo repertorial residiria na efêmera existência que me fez conhecer obras-primas do passado ao presente, mas que aponta a partir daquela época ao descortino de tantas criações excelsas, mantidas em silêncio por motivos tão complexos já ventilados ao longo de mais de sete anos neste espaço.
Is there progress in Art ? In this post I give my views on the subject, concluding that we may talk about progress in the advent of new techniques, new instruments, new media. In the Arts there are just changes, new art forms that are not worse or better than previous ones. They are different, but still a continuity from earlier generations. As for the masters of each historical period, time will tell.
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