Primeira Sonata “O Combate entre David e Golias”
Penso que se ocupar unicamente de hábitos históricos
e querer reproduzir a sonoridade de práticas musicais mais antigas
é restritivo e não é sinal de progresso.
Daniel Baremboin
Motivo de um dos primeiros posts publicados (vide Johann Kuhnau – “Sonatas Bíblicas”. 28/03/2007), a obra de Johann Kuhnau me fascina desde a década de 1970. Apesar de não frequentada pelos pianistas, a coletânea integra a vasta produção para teclado composta principalmente na primeira metade do século XVIII e que se adapta melhor ao piano moderno mercê da escrita. Mais e mais assiste-se à revisitação de pianistas ao repertório desse período, basicamente interrompida durante poucas décadas do século XX pelo pensamento de adeptos da música antiga voltados à autenticidade dos instrumentos, mormente ao cravo, “redescoberto” nas fronteiras dos séculos XIX-XX, após um século de silêncio. Como bem afirmou o notável musicólogo francês François Lesure em 2000 “O tempo do Barroco integrista passou. A utilização de instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos… não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. Daniel Barenboim segue esse raciocínio “A visão puramente acadêmica do passado é perigosa, pois ela está ligada à ideologia e ao fundamentalismo, mesmo na música”. O fluxo pianístico desse repertório, registrado em gravações memoráveis por tantos pianistas excelsos da primeira metade do século XX até os anos 1960, aproximadamente, retomou vivamente seu curso e tanto em salas de concerto como em registros fonográficos J.S.Bach, Jean-Philippe Rameau, D.Scarlatti, Carlos Seixas e outros mais têm entusiasmado intérpretes ao piano e o público de concertos. Tendência alvissareira.
Foi o acaso que me levou a conhecer a monumental coleção das “Sonatas Bíblicas”, de Johann Kuhnau. Estava a transitar em rua da Vila Nova Conceição, em uma manhã de Agosto de 1972, quando encontro o saudoso amigo José Luís Paes Nunes, personagem que unia o espírito de agitador cultural com arguto senso educacional, pois esteve ligado à Juventude Musical, associação que permanentemente via suas realizações publicadas na coluna de José Luís mantida em “O Estado de São Paulo”. Comparecera em 1971 à integral para teclado de Jean-Philippe Rameau por mim interpretada ao piano e realizada em dois recitais no Auditório Itália. Propunha-me outra integral, a das “Sonatas Bíblicas” de Johan Kuhnau, para Novembro, pois asseverou que eu deveria estar “experiente” nesse repertório. Despertou-me a curiosidade. Conhecia Kuhnau através de livros sobre J.S.Bach, seu sucessor no órgão da Igreja de St. Thomas, em Leipzig, após a morte daquele em 1722. Retinha também as referências contundentes em obras do grande musicólogo Adolfo Salazar (1890-1958) sobre o autor, bem antes do “abrupto” convite de Paes Nunes. A seguir, o dileto amigo levou-me à sua casa e ofereceu-me a partitura das “Sonatas Bíblicas”, a fim de que a interpretasse três meses após, nas comemorações dos 250 anos da morte do compositor. Aceitei o desafio, e ao começar a leitura da obra, simplesmente fiquei deslumbrado com a qualidade daquela coletânea, dedicando-me com afinco naqueles pouco mais de três meses pela frente. Não por outro motivo J.S.Bach teria copiado o manuscrito de Kuhnau. Entendera a monumentalidade e o propósito dessa primeira obra programática escrita para teclado. Inspira-se Bach nessa criação do gênero programa ao compor o “Capriccio sopra la lontananza del fratello diletissimo”. Lembraria que a apresentação em São Paulo em 1972 se fez acompanhar de slides selecionados pelo então jovem Rodolfo Coelho de Souza, com narração do saudoso Ademar Francisco Lopes. A crítica mostrar-se-ia dividida quanto à apresentação da obra e do áudio visual. Caldeira Filho, de “O Estado de São Paulo”, escreveria aos 26 de Novembro de 1972: “A obra foi redescoberta e reapresentada. Logo, esteve escondida e muda. Por quê? Por não possuir condições de sobrevivência, entre estas a validade, não relativa mas intrínseca e absoluta”(sic). Ficaria claro que, bem anteriormente àquela apresentação e até o presente, toda redescoberta pode estar cercada de resistências. Verificam-se, 42 anos após, inúmeras outras gravações das “Sonatas Bíblicas” realizadas por cravistas, organistas e pianistas, ratificando a importância do conjunto. José da Veiga Oliveira, após elogios à apresentação das “Sonatas Bíblicas”, considera “… o ângulo exclusivamente artístico, o único que verdadeiramente interessa” (Diário Popular, 03/12/1972). Não obstante elogios ou desacordos, os críticos paulistanos não pouparam o audiovisual. Creio que a apresentação nessa configuração atendia às nossas expectativas daqueles tempos. Não mais a repetiria, mas há sempre impulsos durante a juventude da idade madura…
Nascido na Alemanha, Johann Kuhnau foi um sábio e erudito de estirpe. Músico, advogado, escritor, matemático, poliglota. Conhecia muitos idiomas: inglês, francês, italiano, espanhol, grego, latim. Seu romance satírico “Der musicalische Quacksalber” (O Músico Charlatão) obteria êxito. Organista da Igreja São Tomás em Leipzig desde 1684, torna-se Kantor da Igreja, cargo que manteria até a morte em 1722. Foi autor de Cantatas e Motetos, assim como de outras criações para teclado.
As seis “Sonatas Bíblicas” representam um conjunto monolítico baseado em histórias do Antigo Testamento e a aplicação de texto a acompanhar o discurso musical torna-as pioneiras no gênero. Frases surgem ao longo de cada Sonata, indicando ao ouvinte a intenção proposta. Como exemplo, ao sugerir na primeira Sonata o lançamento da pedra em direção à fronte de Golias, uma escala ascendente rápida indica a trajetória, seguida de longo e mais lento desenho musical descendente, a sugerir a queda do gigante. No texto publicado no blog em 2007 escrevia que as “Sonatas Bíblicas” constituem verdadeira enciclopédia dos sentimentos humanos. Estão todos lá. Do temor à alegria, do rancor à delicadeza e ao amor. Instrumentos musicais e batalhas campais citados nas frases enriquecem a obra. O piano moderno mostrar-se-ia o instrumento ideal para a realização desse universo timbrístico, pois cada um dos episódios dramáticos no cerne das Sonatas encontra no instrumento os recursos necessários sem a perda da autenticidade da partitura. Frise-se, as “Sonatas Bíblicas” foram escritas para teclado e no frontispício da edição original uma figura feminina está a tocar órgão doméstico. Em outro contexto, gravações existem a privilegiar órgão ou cravo e a interpretação ao piano apenas acompanha um desenvolvimento histórico inalienável. Creio ter sido o primeiro a gravar ao piano a integral e o registro fonográfico se deu na Capela de Sint-Hilarius, erguida na planura flamenga em Mullem, na Bélgica, sob os cuidados do excepcional engenheiro de som Johan Kennivé. O lançamento esteve sob a égide do selo De Rode Pomp, da medieval Gent.
Nesse mesmo ano realizaria uma tournée por terras portuguesas. O ilustre professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso preparou previamente um datashow com todas as frases bíblicas selecionadas por Kuhnau traduzidas para o português. A recepção foi calorosa, a proporcionar ao público a interação música-texto.
Recentemente dei uma palestra em Centro de Estudos em São Paulo apresentando comentários, gravação e o datashow mencionado. O resultado foi entusiasmante. Meu dileto amigo Elson Otake, corredor ranqueado de maratonas e meu guru nos aconselhamentos sobre corridas de rua, propôs a inclusão das “Sonatas Bíblicas” no YouTube com ilustrações pertinentes aos sucessivos episódios bíblicos. Aquiesci com alegria. Elson foi o responsável pela montagem para o YouTube de 70 músicas extraídas de meus CDs gravados no Exterior. Reunimo-nos e resolvemos utilizar as frases propostas por Johann Kuhnau em italiano, pois assim estão configuradas na edição de 1700. Frise-se que a língua peninsular exercia profunda influência na música e até o presente serve para designar andamentos, agógica, dinâmica… A inclusão da tradução em inglês, sendo essa a língua universal em vigor, ajudará ouvintes e leitores das mais diversas regiões do planeta.
Apresentamos ao leitor a primeira sonata, “O Combate entre David e Golias”, que pode ser acessada através do link abaixo. As outras cinco sonatas serão incluídas no YouTube progressivamente, sempre acompanhadas de ilustrações que fazem alusão ao episódio bíblico preciso. Elson e eu procuramos manter a maior fidelidade às muitas situações propostas pelo sábio compositor Johann Kuhnau. Divulgar as “Sonatas Bíblicas” torna-se ato imperativo, mormente nesse período histórico em que a tecnologia progride aceleradamente.
At the suggestion of my friend and marathon runner Elson Otake I decided to post on YouTube Johann Kuhnau’s Biblical Sonatas, which I recorded in Müllem, Belgium, in 2007. Readers of my blog can already listen to the first sonata, with illustrations alluding to each biblical episode. The other five will be published progressively in the coming months.