Um Exemplo que Leva à Esperança

Todos teremos notado que um homem realmente feliz
dissipa a penumbra e o desânimo em redor de si.
Do mesmo modo,
quando houvermos aprendido a corporificar
os novos moldes e a nova atitude,
então, para onde quer que vamos,
nossa influência e ventura far-se-á sentir
e animará os outros que lutam por encontrar a felicidade.
J.Krishnamurti
(“Mensagem d’Anno Novo”)

Insistimos em acreditar que o Ano Novo será sempre melhor. O mundo das ilusões assim determina e, mesmo que no âmago tenhamos dúvidas, compartilhar a ideia de que o ano vindouro resulte bom faz parte de nossa cultura. Ao menos reconforta.

Se tivemos um 2014 pleno de conturbações internas, de dimensões jamais vistas nas últimas décadas, um natural ceticismo invade as mentes dos esclarecidos. O cerne é o homem que, pervertido, aético, amoral, desvirtuou todos os princípios da conduta correta e feriu o país em sua essência. Esse homem tem identidade, rosto exposto na mídia e se esconde nas entranhas da Petrobrás e de tantas outras estatais – estas ainda não investigadas -, assim como, externamente, sobrevoando-as à maneira da ave de rapina, à espera do momento oportuno que sempre chega, hélas. Singularizo, pois as características são as mesmas do corrupto e do corruptor. Esse homem fere a dignidade do outro homem, o cidadão majoritário, probo, trabalhador, cônscio de suas responsabilidades com a família e a sociedade. As finalidades estão sendo amplamente divulgadas, o enriquecimento ilícito do homem espúrio – a lista parece não ter fim -  e o fortalecimento de um partido que tem como anátema a alternância do poder, esta, única possibilidade da oxigenação dos costumes. A chaga está aberta, não cicatrizável a médio ou longo prazo, divulgada aos quatro ventos, e sabe-se lá quantos recursos permitidos pela legislação brasileira não serão interpostos para que escândalos sejam julgados já abrandadas as mentes do cidadão comum, mercê da proclamada “memória curta”!!!

O preâmbulo só aqui está exposto por haver o absoluto virtuoso, cidadão pinçado nessa legião majoritária que se pauta pela natural honradez, mas que se forja no desprendimento de si mesmo, a pensar no outro como primazia. Ele existe em todas as áreas e labuta para que sementes sejam lançadas e germinem. E a semente se tornará carvalho a atravessar os séculos, como metaforicamente nos ensina Saint-Exupéry em “Citadelle”.

No post de 13 de Dezembro esbocei o perfil de uma dessas raridades absolutas, Sígrido Levental. Retorno ao tema, pois ainda tenho fios de esperança quanto à propagação do exemplo singular. Utopia? Pode ser, mas a possível única saída.

Novamente nos chegam de Portugal e da França mensagens dos músicos ilustres Idalete Giga e François Servenière, respectivamente, que captaram a figura de Sígrido exposta no blog citado, tecendo considerações que, sob outra égide, enriquecem o que escrevi, universalizando ações que busquei transmitir ao leitor.

Idalete Giga expõe:

“Embora com atraso, li todos os seus posts de Novembro e Dezembro. Tocou-me especialmente o último, A Dignidade como Respiração (dedicado a Sigrido Levental ), com um prelúdio de Saint-Exupéry que nos faz reflectir sobre o sofrimento e ilustrado com o retrato do homenageado – desenho de sua filha Maria Fernanda.

Eu desconhecia que o seu livro O Som Pianístico de Claude Debussy fosse editado por intermédio deste seu amigo. Achei muito engraçada a história da ‘lua’ suprimida pelo gráfico que pensou ser ‘sujeira’!

O Concerto de homenagem dedicado a Levental no passado dia 12 de Dezembro foi um gesto muito bonito. As verdadeiras homenagens são as que se prestam em vida das pessoas e não após a morte. Oxalá ele esteja melhor”.

Primeiramente, como pai orgulhoso, não posso deixar de mencionar o que François Servenière escreve sobre o desenho de Sígrido Levental realizado por minha filha: “Admirei a ciência do retrato de Maria Fernanda. Que talento incrível! Que lápis manuseado com extrema maestria. Temos a impressão de ver a pessoa focalizada em branco e preto numa máquina fotográfica! Ela me lembra esses desenhistas incríveis que ficam na praça de Tertre, em Paris, e que são capazes de elaborar um desenho em 15 minutos top chrono. É necessário ter um senso de observação inacreditável para se chegar à verdade dos traços do rosto tão perfeitamente”. O saudoso e extraordinário pintor e amigo Luca Vitali, admirador confesso dessas características de Maria Fernanda, explicou-me que as maiores dificuldades para um retratista residem na feitura das mãos e do olhar. Captar o gesto e a alma!

Sem conhecer Sígrido Levental, Servenière apreendeu conteúdos essenciais que busquei traduzir no post de 13 de Dezembro sobre o dileto amigo e incansável batalhador em prol da música e de um mundo mais generoso. Retirei segmentos de sua sempre extensa mensagem plena de sabedoria.

“A história de seu amigo Sígrido Levental é verdadeiramente incrível, desde sua infância. Vem  demonstrar que o sofrimento e o handicap permitem a abertura do espírito e da compaixão para com os outros, contrariamente àqueles que buscam a ‘perfeição humana’, mas que, na realidade, instalam-se no egoísmo”.

“Particularmente, fiquei tocado pelo segmento que aborda o talento e a paciência de Sígrido na elaboração de seu livro sobre Debussy, numa época das máquinas de escrever IBM com esferas. Você tem razão, na atualidade os jpg e os pdf não fazem ver às novas gerações o quão difícil era montar um livro com notações, arquivos ou menções autográficas, a partir, tantas vezes, de documentos fac-similados. Sígrido trabalhava só, com tantas outras preocupações cotidianas. Sabemos que, nos últimos séculos, dez pessoas se debruçavam para editar uma partitura musical e, sobretudo, o material de orquestra, trabalho que hoje, facilmente, realizo com meu programa Finale. Os novéis ignoram que era necessário gravar a música sobre chapas de cobre e, após, realizar múltiplas provas entre o manuscrito original escrito a mão e a partitura definitiva editada. Esse processo está reduzido ao mínimo nos dias de hoje”. Lembro ao leitor que fui editor responsável, durante cerca de 17 anos, da “Revista Música” da USP. Nos primeiros e heroicos tempos, no início dos anos 1990, tinha a liberdade para entrar na gráfica universitária para adaptar as revisões que eram feitas letra por letra numa plaquinha de metal e que formavam, então, a palavra correta. Revisão essa realizada sob forte barulho das máquinas impressoras ao redor. Edição feita (uma ou duas revistas anuais), promovia um “churrasco” de confraternização com a brava gente da gráfica.

Continua Servenière: “Tenho refletido muito a respeito da rapidez da escritura que nos permite manter longas missivas, textos e partituras todas as semanas e transmitidos rapidamente. Ausculto igualmente a emersão de não importa qual opinião, mesmo a mais medíocre, que quase que instantaneamente chega ao destinatário graças à tecnologia. Não obstante, mais e mais as opiniões tornam-se textos escritos resumidamente economizando a telefonia. E o pensamento segue esse caminho a resultar numa abreviação. O mal está no fato de que essa contração deságua tantas vezes na superficialidade. Retornamos ao B-A-B-A do pensamento”. Servenière atinge o cerne da questão e acredito, em acréscimo, que essa “redução” estilhaça a boa redação, impossibilita o discurso linguístico fluente com começo, meio e fim, inviabiliza o aprimoramento e leva o remetente a uma espécie de relaxamento, pois essa mensagem curta e desprovida de compromisso vernacular elimina, simplesmente pela ausência do que criticar, um debruçamento sobre causas e efeitos desse desmonte notório. François Servenière prossegue: “A internet reforça as ditaduras e seus promotores, reforça o desprezo dos incultos pelo saber, impermeabiliza as classes sociais, impedindo-as de se elevarem individualmente. Estabeleceu a veiculação de opiniões infinitamente pobres, dando-lhes a importância das proferidas pelos grandes pensadores. A internet nivelou valores, nivelou a apreciação de cada um avaliar conteúdos. Como tudo é divulgado, o valor é atribuído a partir do critério da audiência. Deu a mesma importância tanto para Madame Michu (primeiramente personagem masculino de “Une ténebreuse affaire” de Honoré de Balzac. Com o passar do tempo, passou a representar a mulher do povo valorosa, trabalhadora… Nota JEM) como para Aristóteles. O nivelamento por baixo, mercê dessa ‘nova avaliação’, possibilita que numerosas ruas de péssima frequência sejam batizadas com nomes como o de Maurice Ravel. Morador entrevistado disse com naturalidade ‘Certamente ele foi um rapper ‘!!!

Após a longa digressão, retorno ao seu amigo Sígrido Levental. Fiquei impressionado pelo talento do artesão editor e admiro profundamente os métodos e o perfeccionismo do músico-administrador. Tivemos a chance de viver e presenciar dois períodos tecnológicos. Você viveu 60 anos sem internet, portanto, mais de 50 anos sem computadores. Eu, um pouco menos. Entretando, conheci esse período em que, para editar partituras, era necessário fazer tudo a mão, com lápis ArtPen. A lentidão do processo era lei. Essa lentidão fazia-se presente e permitia, sob outro aspecto, a instauração do tempo de refletir sobre o que estava a fluir de nossas mentes. Hoje, com o computador, escrevo e transmito ao destinatário todo o material com rapidez. Contudo, e esse posicionamento é fundamental, regresso sempre ao processo antigo da análise da escritura, seja ela composicional ou literária. Nós dois tivemos o privilégio de ser formados na análise à antiga, utilizando porém instrumental moderno, como certamente, em determinada fase, assim trabalhou Sígrido.

Entendamos que os gestos da mão estão diretamente ligados aos do espírito, ‘essa mão estendida para o apoio, para a música, para o amor’, como escreve você no post dedicado ao Sígrido Levental. O computador deve ser apenas uma ferramenta fabulosa. Jamais substituirá a mão e o amor, a empatia, os tantos materiais utilizados para a construção dos instrumentos musicais. Se assim não fosse, teríamos um mundo cínico, pragmático, calculista, eficaz mas destituído de toda possibilidade de vazão do sentimento. Teríamos o desejo de abraçar ou cerrar nos braços um clone robótico perfeito, mas gélido, desprovido do sofrimento, dos sentidos e da sensibilidade? Que fosse insensível às nuances da mão? A mão generosa e incrivelmente complexa em suas possibilidades de expressão não nos trai.

Obrigado pela evocação fabulosa de seu amigo e de seu espírito, de sua filosofia, de seus talentos como intérprete e pedagogo. Todas as experiências que você expôs em seu blog apenas enriquecem e me alimentam. São vivências plenas e ratificam que o caminho que seguimos é certamente um dos mais difíceis, mas o melhor diante do mundo que nos cerca, a tender acentuadamente para a eliminação dos problemas de fundo para se ater apenas à superfície das coisas. Esse espírito da mão criadora e pulsante perdurará, apesar de toda tecnologia crescente, como se perenizou desde o fórum ateniense. Não nos parece tão difícil ser fiel mesmo se tantos se encontram deslocados e vivendo na aparência. Estariam os carvalhos defasados no tempo?” (tradução: J.E.M.).

As mensagens traduzem na essência esperanças. Sígrido serve como exemplo. Há uns poucos Sígridos espalhados ao nosso redor. Observá-los e apreender seus exemplos já são fundamentos para o autoaperfeiçoamento. E o suceder dos anos não se mostra como a possibilidade de melhor entendermos o mundo e seus personagens?

Um esperançoso 2015 para todos os leitores de meu blog semanal.

In today’s post I transcribe passages of e-mail messages received from Portugal (Idalete Giga) and France (François Servenière) with their views on the post about Sígrido Levental and the example he sets for all of us.
I wish you all a joyful holiday season and a happy, healthy and safe New Year.