Leonor Alvim e a Arte Tri-dimensionada

Amor é sentir o universo
Pequeno para tanta estrela
Leonor Alvim

Conheci Leonor Alvim (1935-2012) no final da década de 1970. Chegara ao Brasil, vinda de Portugal, para fixar-se em São Paulo com toda a família após a “Revolução dos Cravos”, de 25 de Abril de 1974. Nesse período, nosso país receberia inúmeras outras famílias portuguesas. Privei da amizade de todo o clã dos Alvins, principalmente de meu saudoso amigo Rui Pereira Alvim, intelectual e poeta, marido de Leonor. Os filhos do casal tornaram-se amigos diários de nossas duas filhas. E concretizava-se uma amizade que perduraria…

Lutando com intrepidez, Leonor operou tripardidamente. Foi professora de piano no Conservatório Musical Brooklin Paulista e no Conservatório de Pouso Alegre em Minas Gerais, dedicar-se-ia com maestria a arte invulgar, grandes painéis tecidos, e escrevia seus poemas veladamente, sem contudo divulgá-los. Agitada, impulsiva a defender suas ideias, era sempre um prazer estético acentuado a discussão com a saudosa Leonor sobre o ato artístico. Diria que foram anos de intensa confraternização, expandida pelo relacionamento fraterno entre nossos filhos. Sob outro contexto, minha mulher Regina e Leonor chegaram a se apresentar várias vezes em recitais de piano a quatro mãos.

Depois dos anos tumultuados pós Revolução, regressaria a Portugal em 1989, a continuar sua atividade como professora na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa e a realizar seus já famosos painéis tecidos, expondo-os em alguns espaços referenciais, como a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Estive umas poucas vezes com Leonor em Lisboa, que por vezes assistiu meus recitais de piano na capital portuguesa. Em uma das noites, após meu recital no Conservatório Nacional de Lisboa, jantamos com o saudoso compositor e amigo Jorge Peixinho em restaurante caro ao notável músico, “Toni dos Bifes”, ao pé do Saldanha. Noitada não esquecida. Dos seus cinco filhos, três permaneceram no Brasil, um deles, Rui, músico, outros dois, Tomás e Luiz, dedicando-se à editoração de livros de arte, sendo que as duas filhas singraram mares. Leonor Alvim Brazão, ativa publicitária e artista plástica nos Estados Unidos, primogênita dos Alvins, foi uma das organizadoras do comovente evento “Obrigado, Sígrido”.

Qual não foi nossa alegria ao recebermos das mãos de Leonor o livro de poemas e ilustrações de panos-collage “Palavras Soltas” (São Paulo, BEI, 2010). Encantaram-me os poemas, pois seus painéis tecidos já me eram familiares e os admirava imenso.

Confesso que jamais Leonor me apresentou um só de seus poemas e apenas conhecia os dons poéticos de Rui, com quem esteve casada por mais de duas décadas. Literatura portuguesa era a temática das conversas diárias mantidas com Rui (Os Alvins eram nossos vizinhos), pois com Leonor música e painéis preponderavam em nossos diálogos.

A poesia de Leonor Alvim tem a sua impressão digital. Aquela mulher artista que caminhava sempre agitada assim procedendo durante toda a existência, na busca frenética de horizontes não vislumbrados, mas que sabia entender a sua prole à sua maneira, refugiar-se-ia no solilóquio, recanto íntimo insondável para os outros. Anos de convívio e a criação poética de Leonor manteve-se não revelada para este amigo confidente, mormente naquele período de intensas discussões em torno da arte.

Os poemas de Leonor se processam em situações confluentes. A metáfora lhe é familiar e sabe dela servir-se com maestria. O amálgama panos-collage e poema se dá a todo instante. Em “Panos”, revela origens:

Panos

“A minha Mãe ensinou viver sem a cópia da obrigação

Onde os tecidos viraram a pele que me cobre, a sensação
Feita posse da luz que os ilumina, uma longa estrada
Brincando no espaço que se recria
Caleidoscópio de outra dimensão

A minha Mãe ensinou-me a ser livre
A ser um livro de capas da minha pele
Que ambas costuramos a vida inteira”

No poema “Noite”, Leonor ratifica a trajetória “Sou noite na madrugada e a minha pele é a Terra!”. Essa “pele”, elaborada no útero, não sofre metaforfose, pois revelaria a integração plena e harmoniosa com todo o trabalho vindouro, a feitura dos painéis tecidos. Em cada tira, na junção dos tecidos, é essa pele que, por osmose, penetra a obra de arte multicolorida – sua alma assim não era? -, intrigando o observador, mercê do propósito da artista de revelar segredos, mas a guardar mistérios, esses insondáveis. Impossível não sentir impacto frente aos seus painéis tecidos, que servem a tantas interpretações. O filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch já escrevia que o segredo pode ser descoberto, jamais o mistério.

Não obstante imagens figurativas e abstratas fundirem-se tantas vezes num delírio onírico, seria a leitura do poema que traria subsídios ao observador para  apreender ao menos uma centelha das verdadeiras intenções da artista.

Em “Amanhecer” Leonor capta a explosão da natureza, dissipados os resquícios da penumbra, aspiração em direção à luz numa visão heliotrópica. Bastam uns versos para a apreensão do todo:

Amanhecer

“Em tons ciclâmen e rosa tinge a noite seu manto de sombras
Lilases e magenta espalham-se sobre os prados
Que se espreguiçam sobre a Terra
Brilhos sob os véus que se esboroam
Nos sons do amanhecer

Raios de luz acordam a Natureza
Deslizam no espaço que se dilata, freme
A claridade avança e mistura os timbres da aurora
Às sombras da Noite… que se dilui!

Mítica luz que se espalha pelo espaço
Azul turquesa, preciosa gema, cristal facetado
Desta divindade que brilha ao nascer do Sol”

A noção do regresso, seja ele geográfico ou afetivo, move-a em direção ao geotrópico, característica visceral em tantos painéis:

Torno à velha casa donde parti

Torno à velha casa donde parti
À minha volta apenas o mar e a terra que me rodeia
O ar espesso de ausências sorvo – banquete amargo de saudades
Ser adiado, vida contida que no entanto jorra
Destes campos e colinas que me cercam
Fui embora… só este corpo resta, esvaziada a sede
Que me devora
Livre e solta, partirei agora. Outros espaços aguardam
Sem som, sem cor
Só a água clara que brota de meus olhos em prantos já antigos
Torno à velha casa donde parti outrora tão só e triste como agora

Como não pensar no soneto “Visita à Casa Paterna”, de Luiz Guimarães Junior (1844-1898), nascido no Rio de Janeiro e falecido em Lisboa?  “Como a ave que volta ao ninho antigo, / Depois de um longo e tenebroso inverno, / Eu quis também rever o lar paterno, / O meu primeiro e virginal abrigo: // Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, / O fantasma talvez do amor materno, / Tomou-me as mãos,-olhou-me grave e terno, /E, passo a passo, caminhou comigo.// Era esta a sala (oh! se me lembro! e quanto!) / Em que, da luz noturna à claridade, / Minhas irmãs e minha Mãe… O pranto // Jorrou-me em ondas… Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.” O regresso não passaria impune nos dois poemas.

Em texto curto e exemplar, “A Patria dentro da Pátria”, a imensa poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004),  nascida no Porto como Leonor Alvim, já escrevia: “Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece. Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias”. Seria essa “O Porto” que faz Leonor tão bem expressar na série de painéis tecidos a representar o Douro: “Não vejo mais o espaço, sou cada uma, áspera, lúbrica / Violenta ou doce feito mel / Gerada neste berço de família de pedras em cadeia / Esculpidas pela Natureza”.

Privilegiados os que conheceram Leonor Alvim, que perdurará através de seus painéis carregados de emoção, de lirismo e da força interior. Seus poemas seguirão como a segunda via, necessária, imperiosa até, nessa integração plena cor e palavra, vida e o amor.

From Leonor Alvim Brazão – who organized the event “Obrigado, Sígrido”- I have received the poetry book “Palavras Soltas” (Loose Words), written by her mother, the late Leonor Alvim, a dear friend who lived in São Paulo for some years, fleeing from the Carnation Revolution (1974) in Portugal. Leonor was a multifaceted artist: talented pianist and teacher, visual artist (her fabric collages are spread through private and public collections in various countries) and also a poet. This last talent was unknown to me, though we’ve been friends for more than twenty years. This post is a brief appreciation of her book, in which the amalgamation between her paneaux collages and her thought-provoking poetic language is a constant, as evidenced by the book’s magnificent illustrations. Leonor passed away in 2012, but she will remain with us through her collages charged with emotion, lyricism and inner strength. Her poems are a second path, necessary, even imperative, for merging into a single art color-word, love-life.