Navegando Posts publicados em janeiro, 2015

É o que Deveríamos Desejar para 2015

Quando as verdades são evidentes e absolutamente contraditórias,
o que tens a fazer é mudar de linguagem.
Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle cap. CXXII)

O mestre é o homem que não manda;
aconselha e canaliza, apazigua e abranda;
não é a palavra que incendeia,
é a palavra que faz renascer o canto alegre do pastor depois da tempestade;
não o interessa vencer, nem ficar em boa posição;
tornar alguém melhor – eis todo o seu programa.
Agostinho da Silva

A passagem de ano se deu e todas as previsões apontam para um ano de dificuldades. Impossível acreditar que essa certeza ocorra graças ao acaso, nem tampouco aos últimos 12 anos de governo. Se a descrença acentuou-se para aqueles que formam a legião de 50 milhões de eleitores “oposicionistas”, práticas antigas recrudescidas ultimamente levam-nos ao ceticismo. A crise brasileira é endêmica. Desde a minha infância com ela convivi, ora em áreas específicas, ora no todo. Mudaram os governos, tivemos os anos de exceção com os militares, mas determinadas constantes jamais abandonaram uma índole característica de nossos dirigentes, a atração pelo ato que corrompe. Contudo, como realidade clara, ficou a certeza de que nenhum presidente no período de exceção enriqueceu. Não defenderia o regime que vigorou durante aqueles tempos, em que a liberdade teve sério tributo a pagar.

O tsunami que nos assola teve epicentro surdo e demorou muito tempo até que as empresas públicas mostrassem feridas laceradas. O ato corruptivo generalizado ganhou força à medida que, sorrateiramente, espalhava suas raízes devastadoras sem ser denunciado. Os escândalos dos últimos anos prenunciavam que algo aterrador poderia acontecer. É o fenômeno do recuo do mar, o silêncio momentâneo e o tsunami que nada poupa. O denominado petrolão nada mais é do que o avanço total das águas, a tudo destruir. Mas haverá ainda furacões e tornados que virão quando outras estatais, que não a Petrobrás, forem investigadas.

O ato corruptivo em termos brasileiros não tem limites. No artigo “Os quatro Cavaleiros do Apocalipse” (Folha de São Paulo, 16/12/2014), meu irmão, o respeitado jurista Ives Gandra Martins, aponta – sem precisar a geografia – quatro cavaleiros, o político, o burocrata, o corrupto e o incompetente. “O político, na maior parte das vezes, para alcançar ascensão na carreira, dedica-se exclusivamente à ‘desconstrução’ da imagem dos adversários”. E esclarece “Quem busca o poder, na esmagadora maioria dos casos, pouco está pensando em prestar serviços públicos, mas em mandar, usufruir ou beneficiar-se do governo”. A imagem do “cavaleiro” político se confunde em incontáveis oportunidades com a do corrupto, este só existente mercê da figura sinistra do corruptor. Este, um “quinto cavaleiro”, das trevas, geralmente silencioso e ativo, a ter legião de coadjuvantes formada por outro estranho personagem, o lobista, que infesta livremente os corredores do poder e que conhece as sendas que seduzem políticos e burocratas. E todo o mal está feito.

Essa é parte da triste realidade. Outra, a recente divisão ministerial, a atender unicamente às acomodações dos partidos “amigos”, faz antever impasses futuros. Impossível não se indignar com a indicação de tantos deles, ou de remanejamentos de outros, para ministérios que  mostrarão as chagas individuais da ignorância. Exemplifiquemos: quando o grupo “Atletas pelo Brasil”, formado por muitos dos maiores ídolos do esporte brasileiro, fez duras críticas à nomeação do pastor evangélico e deputado George Hilton, de partido aliado ao governo, mas sem nenhuma experiência na área esportiva, justamente na segunda gestão da presidente que será a anfitriã das Olimpíadas de 2016, frise-se, as ponderações eram irrefutáveis. Escreve o grupo dos “Atletas pelo Brasil” em comunicado: “Como diz nossa missão, queremos ‘melhorar o esporte para melhorar o País’. Acreditamos piamente nisto. Somos uma associação de mais de 60 atletas de relevância para o esporte”. Inconformados, assinalam esses esportistas: “Exigimos muito mais respeito e cuidado com tudo que envolve o tema Esporte no Brasil”. Pertencem ao grupo atletas consagrados como Ana Moser, Raí, Ida e William. A presidente consultou figuras relevante da área? Que ela apresente uma, apenas uma credencial, que habilite o cidadão ungido para o fundamental Ministério dos Esportes. Contudo, haverá apoio do partido do ungido nas votações da Câmara. Para a presidente isso importa, infelizmente. O respeitado locutor esportivo do passado, hoje comentarista e jornalista irrepreensível, Flávio Araújo, escreveu em sua coluna www.ribeiraopretoonline.com.br (01/01/2015) a respeito da lamentável nomeação de George Hilton para o Ministério do Esporte: “Nomear para dirigir o do Esporte alguém sem nenhuma ligação com o mesmo é como escarnecer das tramoias na Petrobrás. É premiado para gerir a pasta alguém que não sabe o que é uma bola de futebol, uma rede de vôlei ou um bastão no atletismo. Não dá para digerir. Nomear alguém sem nenhuma vivência na vida esportiva do país, ainda mais sob suspeita e que só não teve seus passos devidamente investigados por essa excrescência que permite aos políticos zombarem vergonhosamente do povo brasileiro com sua impunidade é, quando mais não seja, um passo atrás para o esporte nacional”. No dia 2 de Janeiro, ao receber o cargo de seu antecessor, Aldo Rebelo, o ministro empossado George Hilton disse: “Posso não entender profundamente de esporte, mas entendo de gente” (sic).

A frase de Ives Gandra torna-se cristalina e repito essa triste verdade: “Quem busca o poder, na esmagadora maioria dos casos, pouco está pensando em prestar serviços públicos, mas em mandar, usufruir ou beneficiar-se do governo”. Se assim não fosse, pensar e sentir o Brasil implicaria a nomeação de especialistas nos vários ministérios para o desempenho pleno em um país que perde oportunidades nítidas de progredir. O que se vê é um loteamento sem precedentes na história da República. Pudesse cada ministro, no instante do convite da presidente, friso, pronunciar-se a respeito do que fará no desempenho de suas atribuições e teríamos a certeza do equívoco irreparável quanto às indicações de tantos deles, a prenunciar anos plúmbeos, como exemplificado acima.

A divagação tem sentido. Acredito que a palavra mais adequada, ao inverso da situação atual, seria responsabilidade. Houvesse assimilação integral do termo não estaríamos a passar por grande instabilidade constrangedora. Tivesse responsabilidade para com o país, para com o seu povo na essência essencial do termo, a governante saberia fazer suas escolhas a privilegiar, sine qua nom, o mérito como única via para a governabilidade. Não obstante, a necessidade imperiosa de obter maioria em votações nas duas casas do Congresso Nacional levou a presidente reeleita para os próximos quatro anos a decisões errôneas, o que poderá encaminhar o país ao impasse.

 

A tragédia que se abateu sobre a França e o mundo democrático – acepção do termo – não tem precedente moderno no país europeu. Todos os esclarecidos se comoveram após o ato insano cometido por fanáticos. Esse tipo de atentado tem recrudescido de maneira alarmante em todo o planeta. Algo tem de ser feito a reunir, consciente e responsavelmente, as maiores autoridades mundiais. Resoluções concretas têm de surgir. A humanidade já não mais suporta evasivas ou reuniões que só estabelecem intenções.

A referência advém do fato de que, ao saber dessa loucura que vitimou cartunistas e jornalistas do Charlie Hebdo, ter pensado imediatamente em meu amigo e ex-colega da USP, Dorinho Bastos, cartunista exemplar. Enviara ele um cartão de Natal em que o Papai Noel apresentava um repertório de amuletos e sinais contra malefícios que poderão ocorrer em 2015. Referia-se, creio eu, à condução de nosso país. Todavia, o infausto acontecimento parisiense evidencia que nem ramos de arruda, tampouco figas, ferraduras com sete furos, pés de coelho ou trevos de quatro folhas estão adiantando numa visão mais global. A charge do excelente Dorinho, que ilustra também este post, ficaria como nossa homenagem àqueles que tombaram na sede do Charlie Hebdo.

This week’s post reflects upon the word “responsibility” related to the present political situation in Brazil, where ministers are appointed according to political party interests and not the public good. Also mentioned is the unfortunate gunmen attack on the French magazine Charlie Hebdo. The illustration – by the Brazilian cartoonist Dorinho Bastos – is a tribute to the ones that lost their lives in the shooting.

 

 

 

Leonor Alvim e a Arte Tri-dimensionada

Amor é sentir o universo
Pequeno para tanta estrela
Leonor Alvim

Conheci Leonor Alvim (1935-2012) no final da década de 1970. Chegara ao Brasil, vinda de Portugal, para fixar-se em São Paulo com toda a família após a “Revolução dos Cravos”, de 25 de Abril de 1974. Nesse período, nosso país receberia inúmeras outras famílias portuguesas. Privei da amizade de todo o clã dos Alvins, principalmente de meu saudoso amigo Rui Pereira Alvim, intelectual e poeta, marido de Leonor. Os filhos do casal tornaram-se amigos diários de nossas duas filhas. E concretizava-se uma amizade que perduraria…

Lutando com intrepidez, Leonor operou tripardidamente. Foi professora de piano no Conservatório Musical Brooklin Paulista e no Conservatório de Pouso Alegre em Minas Gerais, dedicar-se-ia com maestria a arte invulgar, grandes painéis tecidos, e escrevia seus poemas veladamente, sem contudo divulgá-los. Agitada, impulsiva a defender suas ideias, era sempre um prazer estético acentuado a discussão com a saudosa Leonor sobre o ato artístico. Diria que foram anos de intensa confraternização, expandida pelo relacionamento fraterno entre nossos filhos. Sob outro contexto, minha mulher Regina e Leonor chegaram a se apresentar várias vezes em recitais de piano a quatro mãos.

Depois dos anos tumultuados pós Revolução, regressaria a Portugal em 1989, a continuar sua atividade como professora na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa e a realizar seus já famosos painéis tecidos, expondo-os em alguns espaços referenciais, como a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Estive umas poucas vezes com Leonor em Lisboa, que por vezes assistiu meus recitais de piano na capital portuguesa. Em uma das noites, após meu recital no Conservatório Nacional de Lisboa, jantamos com o saudoso compositor e amigo Jorge Peixinho em restaurante caro ao notável músico, “Toni dos Bifes”, ao pé do Saldanha. Noitada não esquecida. Dos seus cinco filhos, três permaneceram no Brasil, um deles, Rui, músico, outros dois, Tomás e Luiz, dedicando-se à editoração de livros de arte, sendo que as duas filhas singraram mares. Leonor Alvim Brazão, ativa publicitária e artista plástica nos Estados Unidos, primogênita dos Alvins, foi uma das organizadoras do comovente evento “Obrigado, Sígrido”.

Qual não foi nossa alegria ao recebermos das mãos de Leonor o livro de poemas e ilustrações de panos-collage “Palavras Soltas” (São Paulo, BEI, 2010). Encantaram-me os poemas, pois seus painéis tecidos já me eram familiares e os admirava imenso.

Confesso que jamais Leonor me apresentou um só de seus poemas e apenas conhecia os dons poéticos de Rui, com quem esteve casada por mais de duas décadas. Literatura portuguesa era a temática das conversas diárias mantidas com Rui (Os Alvins eram nossos vizinhos), pois com Leonor música e painéis preponderavam em nossos diálogos.

A poesia de Leonor Alvim tem a sua impressão digital. Aquela mulher artista que caminhava sempre agitada assim procedendo durante toda a existência, na busca frenética de horizontes não vislumbrados, mas que sabia entender a sua prole à sua maneira, refugiar-se-ia no solilóquio, recanto íntimo insondável para os outros. Anos de convívio e a criação poética de Leonor manteve-se não revelada para este amigo confidente, mormente naquele período de intensas discussões em torno da arte.

Os poemas de Leonor se processam em situações confluentes. A metáfora lhe é familiar e sabe dela servir-se com maestria. O amálgama panos-collage e poema se dá a todo instante. Em “Panos”, revela origens:

Panos

“A minha Mãe ensinou viver sem a cópia da obrigação

Onde os tecidos viraram a pele que me cobre, a sensação
Feita posse da luz que os ilumina, uma longa estrada
Brincando no espaço que se recria
Caleidoscópio de outra dimensão

A minha Mãe ensinou-me a ser livre
A ser um livro de capas da minha pele
Que ambas costuramos a vida inteira”

No poema “Noite”, Leonor ratifica a trajetória “Sou noite na madrugada e a minha pele é a Terra!”. Essa “pele”, elaborada no útero, não sofre metaforfose, pois revelaria a integração plena e harmoniosa com todo o trabalho vindouro, a feitura dos painéis tecidos. Em cada tira, na junção dos tecidos, é essa pele que, por osmose, penetra a obra de arte multicolorida – sua alma assim não era? -, intrigando o observador, mercê do propósito da artista de revelar segredos, mas a guardar mistérios, esses insondáveis. Impossível não sentir impacto frente aos seus painéis tecidos, que servem a tantas interpretações. O filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch já escrevia que o segredo pode ser descoberto, jamais o mistério.

Não obstante imagens figurativas e abstratas fundirem-se tantas vezes num delírio onírico, seria a leitura do poema que traria subsídios ao observador para  apreender ao menos uma centelha das verdadeiras intenções da artista.

Em “Amanhecer” Leonor capta a explosão da natureza, dissipados os resquícios da penumbra, aspiração em direção à luz numa visão heliotrópica. Bastam uns versos para a apreensão do todo:

Amanhecer

“Em tons ciclâmen e rosa tinge a noite seu manto de sombras
Lilases e magenta espalham-se sobre os prados
Que se espreguiçam sobre a Terra
Brilhos sob os véus que se esboroam
Nos sons do amanhecer

Raios de luz acordam a Natureza
Deslizam no espaço que se dilata, freme
A claridade avança e mistura os timbres da aurora
Às sombras da Noite… que se dilui!

Mítica luz que se espalha pelo espaço
Azul turquesa, preciosa gema, cristal facetado
Desta divindade que brilha ao nascer do Sol”

A noção do regresso, seja ele geográfico ou afetivo, move-a em direção ao geotrópico, característica visceral em tantos painéis:

Torno à velha casa donde parti

Torno à velha casa donde parti
À minha volta apenas o mar e a terra que me rodeia
O ar espesso de ausências sorvo – banquete amargo de saudades
Ser adiado, vida contida que no entanto jorra
Destes campos e colinas que me cercam
Fui embora… só este corpo resta, esvaziada a sede
Que me devora
Livre e solta, partirei agora. Outros espaços aguardam
Sem som, sem cor
Só a água clara que brota de meus olhos em prantos já antigos
Torno à velha casa donde parti outrora tão só e triste como agora

Como não pensar no soneto “Visita à Casa Paterna”, de Luiz Guimarães Junior (1844-1898), nascido no Rio de Janeiro e falecido em Lisboa?  “Como a ave que volta ao ninho antigo, / Depois de um longo e tenebroso inverno, / Eu quis também rever o lar paterno, / O meu primeiro e virginal abrigo: // Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, / O fantasma talvez do amor materno, / Tomou-me as mãos,-olhou-me grave e terno, /E, passo a passo, caminhou comigo.// Era esta a sala (oh! se me lembro! e quanto!) / Em que, da luz noturna à claridade, / Minhas irmãs e minha Mãe… O pranto // Jorrou-me em ondas… Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.” O regresso não passaria impune nos dois poemas.

Em texto curto e exemplar, “A Patria dentro da Pátria”, a imensa poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004),  nascida no Porto como Leonor Alvim, já escrevia: “Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece. Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias”. Seria essa “O Porto” que faz Leonor tão bem expressar na série de painéis tecidos a representar o Douro: “Não vejo mais o espaço, sou cada uma, áspera, lúbrica / Violenta ou doce feito mel / Gerada neste berço de família de pedras em cadeia / Esculpidas pela Natureza”.

Privilegiados os que conheceram Leonor Alvim, que perdurará através de seus painéis carregados de emoção, de lirismo e da força interior. Seus poemas seguirão como a segunda via, necessária, imperiosa até, nessa integração plena cor e palavra, vida e o amor.

From Leonor Alvim Brazão – who organized the event “Obrigado, Sígrido”- I have received the poetry book “Palavras Soltas” (Loose Words), written by her mother, the late Leonor Alvim, a dear friend who lived in São Paulo for some years, fleeing from the Carnation Revolution (1974) in Portugal. Leonor was a multifaceted artist: talented pianist and teacher, visual artist (her fabric collages are spread through private and public collections in various countries) and also a poet. This last talent was unknown to me, though we’ve been friends for more than twenty years. This post is a brief appreciation of her book, in which the amalgamation between her paneaux collages and her thought-provoking poetic language is a constant, as evidenced by the book’s magnificent illustrations. Leonor passed away in 2012, but she will remain with us through her collages charged with emotion, lyricism and inner strength. Her poems are a second path, necessary, even imperative, for merging into a single art color-word, love-life.