Sylvain Tesson e a Síntese da Observação

O aforismo permite ganhar tempo economizando espaço.
Um aforismo vinga desde que não haja nada a acrescentar
a alguma coisa da qual se teria muito a dizer.
Sylvain Tesson

Nós não confessamos os pequenos defeitos
para persuadir-nos que não temos os grandes.
La Rochefoucauld

Ao longo da História, o gênero aforismo tem sido utilizado, entre tantas outras categorias literárias, por pensadores, filósofos, artistas, juristas, literatos… Pretende, em pouquíssimas palavras, deixar registrado um pensamento, um princípio, uma observação ou uma sentença. Incontáveis os autores que se perpetuaram no imaginário do leitor através de seus aforismos. Estes são repetidos pela sucessão de gerações. Caracteriza o aforismo essa singularidade da síntese da síntese. Provocador, o aforismo abre campo para uma série de outras constatações. Tem a independência que o coloca isolado em texto de um autor. Pinçado, por vezes. Apesar de semelhança, não deve ser confundido com máxima, provérbio ou adágio (vide “Açores – O Povo Eternizado, Adagiário Açoriano”, 26/03/2011), formas mais penetrantes e “doutrinárias”. O aforismo, síntese da síntese literária, tem a qualidade de apreender a observação aguda de quem pratica o gênero. A liberdade dessa forma literária confere-lhe conteúdo descritivo, humorístico e espiritual. Pode encerrar um princípio teórico, igualmente. Encontramo-lo com várias vestimentas: aforismo de ordem poética, moral, geral e tantas outras.

Estou a me lembrar de que meu saudoso pai, admirador confesso da literatura francesa, gostava de ler para os quatro filhos “Les Maximes”, de La Rochefoucauld (1613-1680). Mencionaria dois exemplos outros: Honoré de Balzac (1799-1950), em “Physiologie du mariage ou méditations de philosophie écletique, sur le bonheur et le malheur conjugal” (1829), cultua a forma em segmento por ele denominado “Aphorisme”. Por sua vez, Friedrich Nietzsche (1844-1900), admirador do gênero, considera ser necessária a “leitura lenta” e uma “ruminação” dessa forma tão difundida.

Sylvain Tesson, em suas caminhadas pelo mundo a pé, de bicicleta ou sobre um cavalo, narra a natureza, costumes das etnias e tece reflexões sobre a condição humana. Arguto, olhar de lince, Tesson fixa em seu carnê de viagem conceitos curtos em forma de aforismos. Para quem leu sua já vasta obra literária, essa síntese da síntese traduz verdades transparentes. O pensamento de Tesson por vezes é cáustico, se não sarcástico. Há humor fino ou direto, mas também crítica à incúria humana. Metáforas são permanentes nos aforismos de Tesson. O caminhar, preferencialmente solitário, tem sua síntese. “Solidão: companhia que não fugirá jamais” ou “O amor dá-se quando convidamos o outro à mesa da solidão”. Paradoxal para o “eremita caminhante”, mas compreensível em sua admiração ilimitada pelo desconhecido. Desacertos e incúrias provocados pelo homem em tantas latitudes e longitudes não o deixariam indiferente. Se a árvore é recorrente, lembre-se dos inúmeros bivaques realizados por Tesson no alto das mais frondosas. A admiração pela fauna é onipresente, assim como a metamorfose das estações, as águas estáticas, deslizantes ou marítimas, a geografia do andarilho e seu convívio efêmero, mas intenso, com o outro. Natureza a preponderar, vida animal, o homem a caminhar pela história…

Do livro de Sylvain Tesson, “Aphorismes sous la Lune et autres pensées sauvages” (France, Équateurs-Parallèles, Illustrations de Bertrand de Miollis, 2008), selecionei alguns aforismos,  buscando agrupá-los tematicamente.

Fauna:

O tiro do fusil parte. O pássaro cai, mas o caçador está moralmente abaixo.
Caça à perdiz: o céu dá pérolas aos porcos.
Pã! A mesma sílaba para o deus da Natureza e o tiro de fusil que a fere.
Caçador: vândalo que destrói as obras de Pã.
O chilreio dos pássaros intima e ordena o dia a despertar.
Cada pássaro escolhe o galho na universidade das árvores.
Os passarinhos cantam pelo fato de serem felizes.
Pássaro engaiolado: teríamos ideia de denominar homens de estimação os presidiários?
Voo do urubu: auréola dos cadáveres.
Cada dia a aranha redesenha o mapa da Rota da Seda.
A mosca na teia da aranha tem como consolo morrer na seda.
Um urso insone muito estressado durante seis meses do ano.
Joaninha: um pequeno tanque de guerra vestido de palhaço.
As serpentes praticam a dança do ventre.
Quando penso na vaca, o vermelho da carne sobe-me à cabeça.
Vespas: a Luftwaffe dos campos.
Se o homem fosse um lobo para o homem, ele deixaria o lobo tranquilo.


Mundo vegetal:

Uma velha árvore inclinada sob o peso dos segredos que os pássaros lhe confiaram.
Uma árvore sozinha no meio campo: monumento comemorativo de uma floresta desaparecida.
Conversação das folhas nas árvores: elas falam do vento, tema que as agita.
Vistam-se!!! Ordena a primavera para as árvores.
No Music-hall da Natureza, a cada ano há o strip-tease do outono antes que desça a cortina do inverno.
Não é cortando que tornaremos melhores as ervas daninhas.
O campo de flor é o tapete de oração do jardineiro.

Montanhas:

A erosão pune a montanha que quis se erguer em direção ao céu.
O Himalaia continua a crescer. O que mais quer além das neves eternas?
Lago de Como: Os Alpes nevados se veem envelhecidos no espelho das águas.
Colocar uma cruz no alto da montanha é acreditar que ela não se basta por si só.

Falésias:

Falésia: o mar encostado ao muro.
A Terra, com pressa de se jogar ao mar, hesita e a falésia se forma.
O oceano baba de raiva por não poder abater a falésia.
Ir avante é viver, salvo na beirada de uma falésia.

Águas:

O  mar: coração que bate entre dois litorais.
Chuva: volta à terra daquilo que o céu tirou do mar.
Uma cascata chorava num vale de lágrimas.
Uma pedra que cai na água não erra jamais o centro do alvo.
O oceano é um cinemascópio: ele não conhece senão a nouvelle vague.
Rios: hemorragia das montanhas.
A queda faz a chuva sofrer?
Seria pelo fato de ter olhado para o interior das casas que as lágrimas da chuva escorrem pelas janelas?
Habitantes das margens do Aral: órfãos de seu mar.

Universo:

Para qual alvo estão apontadas as flechas das catedrais?
Sentindo-se observada, uma estrela foge velozmente.
O dia é o véu que as estrelas nos jogam, aborrecidas de serem tão observadas.
A lua, grávida da luz, amamenta a noite.
Relâmpago: a tempestade teve uma ideia.
A coragem não existe: mesmo o sol se deita.

Geografia:

A Terra talvez seja azul, mas como uma laranja podre.
Praias do Mediterrâneo: campos de batalha cobertos de corpos mortos de calor.
O Equador é a cintura de um ventre que nunca engorda.
Chile: um cigarro de quatro mil quilômetros cuja ponta incandescente chama-se Terra do Fogo.
Se o Tibete é o teto do mundo, o Nepal é a goteira.
O Tirol é um vaso de gerânios colados no balcão da Áustria.

Comboios:

Transiberiana: um zipper do manteau de taigas
Amo os trens: eles seguem um caminho de ferro.
Escritura: as palavras são vagões, as frases comboios e as páginas, estepes percorridas pelo trem.

Vinho:

Os enólogos são pessoas às quais o vinho torna falantes. Os bêbados, pessoas que falam após embebedarem-se.
Vinho: o fruto está na taça.

Temas Diversos:

A Música é a ciência do tempo sob controle; o nomadismo, a ciência do espaço conquistado.
O homem se interessa pela meteorologia para fazer passar o tempo.
Televisão: ligamos e o mundo se fecha.
Desde a noite dos tempos há o efêmero.
Quem me ama me segue, dizia o vento.
Mesmo o pensamento de Darwin conheceu uma espécie de evolução.
Bandeiras na janela: roupa suja dos Estados.
Uma vez rico, o faquir decide dormir sobre a palha.
Gostaríamos de cumprimentar os suicidas pela coragem do ato.
Há influências intelectuais semelhantes às medusas: corpo mole mas longos tentáculos.
Desde que se faça da imensidão o seu deus, caminhar torna-se liturgia.
A poluição é a sombra do progresso.
Neve: partículas nos olhos do inverno.
Trancar um nômade entre quatro paredes é o mesmo que enlatar o vento.
O que fazem certos livros para ficar tranquilos, mercê de seus conteúdos?
O frio é um ser sutil; ele morde, corta, penetra e agulha. O calor é um bruto que se contenta em nocautear.
A nostalgia é estar indignado com o tempo que ousa passar sem nós.
A fé é a vaidade de se acreditar criado à imagem de Deus.
Conseguir caminhar levemente sobre a corda esticada da existência.
No momento de minha morte, minhas últimas palavras: “Um a menos”.
(tradução: J.E.M.)

The French explorer and writer Sylvain Tesson, in his adventures in remote areas of the globe, observes nature and humans, summing up his life experience in witty, sarcastic, good humored or poetic aphorisms that wrestle with the big questions of life. This post is a selection of aphorisms taken from Tesson’s book “Aphorismes sous la lune et autres pensées sauvages”.