Quando a amizade Transcende
Aquele é bom,
tudo reza bem dele.
Adágio popular açoriano (Faial)
Foram vários os e-mails. Geralmente breves, traduziam a apreensão da mensagem contida no blog anterior. Uma pergunta merece resposta: “Qual a razão de um distanciamento tão grande durante tanto tempo?” Respondo a Rafael da Silva. São tantas as circunstâncias que nos tornam reféns de determinados bloqueios!!! Ao acabar o curso de Direito, sabia que não iria advogar, pois não tinha vocação, apesar de ter captado tantos ensinamentos. Minha vida é a música, desde a tenra infância, e sabia que um difícil caminho iria trilhar. Família constituída, tive que, por longo período, dedicar-me simultaneamente à atividade outra de sustento, sem declinar de estudos pianísticos, pesquisas e apresentações públicas. Ao entrar na Universidade de São Paulo, a dedicação foi exclusiva à Música. Esse longo período “sedentário” – viagens ao Exterior eram de curta duração, mas sempre ligadas à atividade musical – distanciou-me de Amizades essenciais, sem que, porém, deixasse de nelas pensar com afeto.
Meu colega na Universidade de São Paulo, o ilustre professor Gildo Magalhães, escreveu algo fundamental. “Crônica tocante, suspeito que mais velhos, como eu, podem apreciá-la na sua inteira singeleza e sinceridade”. Realmente, foi da geração que já ultrapassou o cinquentenário que mensagens chegaram. Observação aguda.
Já mencionei que meu dileto amigo, há tempos partner de tantos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, tem olhar de lince. Ao ler na Normandia, na manhã do último sábado, o blog recém-publicado, transmitiu mensagem significativa. Em torno de Gabriel Meirelles de Miranda, Servenière ergue um hino ao entendimento. Ei-lo:
“Magnífica a frase ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Concordo inteiramente com as palavras de seu amigo Gabriel. Deus, na minha concepção, é a metáfora forjada pelos homens desde a antiguidade para expressar a riqueza interior que cada um de nós pode atingir através da corajem, da fé na existência, do trabalho, da empatia, do amor, da amizade…
Lendo o seu magnífico texto, dedicado ao seu amigo distante no tempo e no espaço, mas tão próximo no coração, pensei nos membros de minha família, ilustres farmacêuticos ou médicos, do campo ou de hospitais parisienses, que dividiam os mesmos valores e as mesmas práticas relacionadas à clientela de várias camadas sociais. O blog me fez lembrar de meu avô, Rémy, que, jovem farmacêutico, esteve no hospital de Verdun entre 1914 e 1918, em plena primeira Grande Guerra, tornando-se assistente de cirurgia e, após, cirurgião, por falta de pessoal e forçado pela lei, pois os estropiados tombavam aos milhares. Os mortos não eram o problema maior, centenas de milhares – milhões, no final da guerra -, mas os feridos que, ultrajadamente impossibilitados, tinham de ser ‘reabilitados’ para, talvez, retornar à frente do combate.
Ouvi de meu médico, Dr. Jean-Paul le Cam, especialista em medicina tropical, tendo exercido a função na África do Sul e na Inglaterra, que foi nesses lugares, verdadeiros açougues de guerra, que se forjou a técnica de cirurgia reparadora da qual o mundo de hoje é tributário. Quando li seu texto pensei nesses heróis da medicina. Meu pai foi um desses, pois doentes deslocavam-se 30km, na alta madrugada, dirigindo-se à sua farmácia, única onde podiam obter socorro ou medicamentos. Nada comparado aos pósteros que têm sobretudo vocação para cifras e otimização do tempo de trabalho. Desgraçadamente, a Idade de Ouro desse espírito está bem longe da visão monetarista de hoje. E, garanto-lhe, ela existiu e teve ilustres representantes.
Chamou-me a atenção um outro trecho de seu texto. A sua formação em Direito na Faculdade de Pouso Alegre, que lembrou-me a que tive em Ciências Econômicas. Não seria esse outro olhar humanístico a permitir a reflexão sobre a sociedade e nossa arte, fruto das ciências humanas fundamentais que tivemos de abordar nessas Escolas? Para mim, foi um desvio – um pouco para provar que nessa área não encontraria meu caminho – antes de aprofundar-me no objeto vocacional, a música. Aliás, recebi todo o apoio familiar para a escolha definitiva. Certamente você o recebeu ambém.
Desde minha infância tive contato intenso com a prática médica. O amor e a empatia pela humanidade, encontráveis em tantos médicos abnegados, é um bálsamo e eu senti essa atmosfera nos anos que se estenderam pela juventude. Para mim, um engenheiro matemático que não fala ao coração dos homens é um mau profissional. Mesmo um mecânico que ama o ofício compreende melhor o motor do carro quando este começa a funcionar.
Admiro os que praticam farmácia e medicina, pois são eles engenheiros do corpo (e do espírito, tantas vezes) tendo a capacidade de captar pelo simples olhar e transmitir ao paciente os cuidados necessários a serem tomados bem antes da decisão de um receituário. Quando entro num consultório médico ou farmácia – sei que é sensação generalizada dos pacientes -, sinto-me já quase diagnosticado pela escuta e pela capacidade do médico vocacionado de sentir vibrações. Tudo lá está. A empatia é a vibração que se sente do outro, seu pulsar, sua energia e suas ondas. Sensações que podem ser negativas. Os músicos conhecem bem a simpatia, essa maravilha da ressonância que permite a todos os instrumentos ressoarem entre eles. A orquestra é um exemplo, tão dificilmente podendo ser reproduzida pela informática, quase impossível, artificialmente. Não somos diferentes dos instrumentos, mas somos sim, instrumentos de comunicação viva. Simpatia, empatia, quantas semelhanças! Consequência direta, o efeito placebo. O verdadeiro médico generalista é assim. Inocula confiança no corpo do paciente e este deve encontrar muitas vezes seus medicamentos ‘internos’ para salvar-se.
Artistas, filósofos e místicos são médicos da alma. Salvam os seres pela beleza e pela evocação do melhor da alma humana, materializada pela frase de seu amigo Gabriel Meirelles de Miranda: ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Tudo está dito. Tudo está no fundo de nosso coração, no nosso de profundis capaz de criar compartimentos encantadores, desses que corroboram o salvamento do espírito e da alma nos momentos mais sombrios: ‘a beleza salvará o mundo’ (Dostoievsky, certamente).
Quando li seu texto pensei em meus ascendentes, que disseminaram esse mesmo estado de espírito nas suas regiões de influência, tal qual seu amigo Gabriel. Leva-me a pensar na sábia frase do cantor Sting, que eu espero não trair nesta mensagem: ‘Para mudar o mundo, é necessário começar ao seu redor’. Essas personagens públicas de que falamos são exemplos. A nós retomarmos essa flama e a herança como nossos meios e ferramentas. Mas sempre com o mesmo espírito. Atitude absolutamente contrária à mentalidade que dissemina o ódio, a discórdia e a guerra.
A medicina também tem seus aspectos sombrios, desenvolve formas de pesquisa para necessidades militares com o desiderato precípuo de matar o mais rapidamente possível o maior número de indivíduos. Parte dessa sombra da humanidade devemos combater a partir de nosso espírito positivo em nossas atividades musicais. O compositor armênio Aram Khatchaturian tem fabulosa e célebre citação, que considera como objetivo ‘uma música que seja bela em si, nem grande nem pequena, mas simplesmente bela, aberta, expansiva, que traduza a felicidade de viver. Há muita feiura e desesperança no mundo para que não as deixemos invadir nossa arte’.
Finalmente, não há acaso em nossos posicionamentos artísticos respectivos, desenvolvidos comumente em nossas linhas hebdomadárias. Fomos influenciados, numa vasta comparação, pelos mesmos tipos de pessoas, pelos mesmos professores, pelos mesmos artistas e os mesmos praticantes da medicina… Todos eles nos falaram simplesmente de uma empatia pela vida e pela humanidade. Generosidade, amor, amizade. Valores que prazerosamente compartilhamos.
O que de mais precioso do que essa prática que também comungamos, o elogio da lentidão!!! Gostaria de terminar meu e-mail semanal a comentar seus blogs por uma observação desses dois rostos na foto do post sobre seu grande amigo Gabriel e que exprimem, simplesmente, felicidade e bondade. Eis o que é ‘realizar-se na vida’ “. (tradução: J.E.M.)
The last post about friendship received much feedback. This week I mention some e-mails from readers on the subject and transcribe passages of a long e-mail from the French composer François Servenière about friendship and also about his family, reminding us that he was born into a family of altruistic doctors and pharmacists, so distant from the business-minded approach of today’s professionals.