Chegado a Lisboa, esperavam-me dois dias intensos de master classes. Ouvi alunos entusiasmados pela arte do piano. Como sempre faço nessas oportunidades, interessa-me explanar as causas de tal obra, o contexto histórico e a necessidade imperiosa de o aluno abrir a mente “além” do limite do teclado. A interpretação inteligente é fruto de denodo, disciplina, concentração, análise e muito estudo. O intérprete deve abrir os horizontes. É só querer. A intuição e o sensível, em reconhecimento por esse preparo soberano, chegam à mente levados pelas musas. Tocar significa o acúmulo de toda uma dedicação. Os alunos atentos, de diversas faixas etárias, entenderam as mensagens, que se prolongaram por dois dias, das 14h30min às 19h!!!

Confessei tantas vezes ao leitor que dois templos têm para mim a aura do sagrado. Mantê-la é saber que a música continua a pulsar em minhas veias. A Capela de Sint-Hilarius, em Müllem, e a Academia de Amadores de Música, em Lisboa. Nesse templo dei meu primeiro recital na Europa, a convite do imenso compositor Lopes-Graça (1906-1994). Dia 14 de julho de 1959!!! Como não me lembrar da data e dos aproximados 15 recitais apresentados ao longo dos anos… Se na minha juventude subia a correr os 49 degraus que levam ao segundo andar, onde está a sede da AAM, hoje, nos meus 76, subo-os tranquila e amorosamente.

O recital de sábado à noite em Lisboa teve numeroso público e, entre ilustres ouvintes, Mário Vieira de Carvalho, Eurico Carrapatoso, José Maria Pedrosa Cardoso, Idalete Giga, António Ferreirinho, Alexandre Branco Weffort. Como ocorreu em São Paulo, em Gent e agora em Lisboa, foi incrível a aceitação dos Estudos de Eurico Carrapatoso e de François Servenière. Tinha-se a impressão de que pertenciam ao repertório sacralizado, tão grande a acolhida.

Sigo para Tomar, cidade envolta em mistérios. Segredos muitos já foram revelados, mas há, em torno do extraordinário Convento de Cristo, histórias e lendas que dimensionam o imaginário. Sob a égide musical, a cidade viu nascer o extraordinário compositor, músico absoluto e pensador notável, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Apresentei-me pela primeira vez em Tomar em 1982 e  anos subsequentes. A partir de 2003 retorno prazerosamente à cidade e apresento-me no Canto Firme, dirigido pelo professor e dileto amigo António Souza. Já foram muitos os recitais e palestras. Nunca faltou a música portuguesa, mormente Lopes-Graça.

O recital em Tomar foi algo mágico para o velho intérprete. Saber que todo aquele repertório apresentado foi criado por compositores extraordinários a partir da acolhida que deram ao projeto de Estudos Contemporâneos, nascido em 1985 e que se encerra neste ano!!!! Todas as obras novas acolhidas com o maior entusiasmo!!! Sentir que não há por que não adentrar no universo desconhecido. Se a obra é de qualidade e a transmissão amorosa, como não aceitá-la? E duas obras rigorosamente herméticas, os Estudos de Gheorghi Arnaoudov e de Jorge Peixinho, tiveram a mesma acolhida de outras que vão direto aos sentimentos, ao coração, mais precisamente. Precedido de conferência horas antes, o público entendeu a extensão do projeto e compreendeu que o repertório sacralizado ─- importantíssimo, diga-se ─ não é o único.

Em Lisboa um dia após, na Academia de Amadores de Música, dei palestra-recital em torno da obra para piano de nosso grande compositor romântico Henrique Oswald. Provoquei alunos professores, que entenderam, nas obras para piano que apresentei ─- gravara-as dias antes na Bélgica ─, a filiação francesa dessas magníficas criações, algumas inéditas.

Na próxima semana escreverei sobre homenagem que será prestada a Fernando Lopes-Graça. Participarei com pronunciamento sobre o contributo extraordinário do grande mestre tomarense.