Várias Gerações Opinam

À medida que a civilização evolui o homem vive
não para adorar o que vê, como outrora,
não para fazer de todos os seus actos
uma tentativa de reconquistar o paraíso perdido,
mas para se aproveitar do que existe, para dominar,
para se afastar cada vez mais da inocência da Idade de Ouro,
com o risco de nunca poder reencontrar o caminho…
Agostinho da Silva

Colocava um ponto final no post desta semana quando recebo “Concerto – guia mensal de música clássica” (Junho). Coincidentemente, meu dileto amigo Júlio Medaglia, músico completo e multidirecionado, apontava em sua coluna mensal, sob outro contexto, para o mesmo direcionamento de meu blog anterior, a abordar esses aparelhos eletrônicos, celulares com múltiplas funções que hipnotizam seus donos com suas telinhas iluminadas. Transcrevo dois parágrafos instigantes de Medaglia em sua rubrica “Atrás da Pauta” do referido guia, sob o título “Stravinsky e o iPhone 6″. No alto da página lê-se: “Ninguém mais olha para os lados, ninguém se encanta com a beleza da arte: as emoções, hoje, se concentram na interação individualista com o universo tecnológico”. A seguir inicia o texto: “Há dias, troquei meu celular por um novo modelo. Joguei o antigo no lixo e já me acostumei com as novidades do atual. Nada de especial ocorreu, e a luta pela vida continua”. No centro da matéria, escreve: “Parece que o século XX operou uma inversão de valores. No início do século passado, vivia-se em função do delírio da sensibilidade, da criatividade espiritual, da cultura, das ideias artísticas em constante ebulição e transformação – não por coincidência, o período era chamado de belle époque. Hoje, as emoções se concentram na interação com o universo tecnológico. O ‘grande barato’ é operar quase alucinadamente os celulares e os tablets, não importando para quê”.

Particularmente o blog anterior causou uma série de comentários vindos de leitores que apreenderam a necessidade imperiosa de uma tomada de consciência generalizada, mas que dificilmente encontrará guarida face à imensa publicidade que cerca aparelhos de comunicação e aplicativos.  Ao ser lançada com grande alarde uma nova “engenhoca”, legião idiotizada se dirige aos Estados Unidos, preferencialmente, e permanece de vigília à espera do lançamento da novidade que, meses após, será substituída por outra. Comparo essa alienação àquela dos que passam vários dias frente às bilheterias para poder “ver e ouvir” roqueiros internacionais, invasores permanentes de nossos maiores centros a preço de ouro puro. O impulso e a compulsão são os mesmos pelo ter e pelo ver, respectivamente.

Selecionei quatro mensagens, que entendo serão de interesse para os leitores. Valentina, minha neta de apenas 15 anos, escreveu: “Embora eu esteja aí no meio (rsrs), adorei o que você e Servenière escreveram… Muito bom!!!”.

O ilustre arquiteto e professor português António Menéres, que adentrou o período octogenário, traça uma bela imagem comparativa, a mostrar o que os compulsivos por essas maquininhas têm perdido daqueles momentos preciosos do verdadeiro entendimento: “Com frequência vejo, quando almoço com a Maria Amélia num restaurante na Foz do Douro, bem em frente ao mar, os jovens pares que chegam para almoçar e que nem se preocupam em chamar o garçom ou, ainda, o jovem fazer afago natural e espontâneo à moça com quem deseja viver por muitos anos e dela ter os seus filhos… nada disso!!! Cada qual puxa do seu telemóvel, procura reconhecer se tem alguma mensagem (meio parva, por certo) e não agarra aquilo que a vida tem de tão precioso: o tempo que, uma vez passado, não é recuperável. Talvez, por isso, a Maria Amélia seja tão importante para mim. Vamos com frequência a esse restaurante e sentámo-nos um em frente ao outro… olhamos o mar, naturalmente eu com maior deleite, pois sempre vivi próximo à orla marítima e muitas horas naveguei à vela, em Leixões, no norte da Galiza e nos campeonatos nacionais no Algarve… enquanto tinha fibra para a competição. Encomendamos a refeição e colocamos a conversa em dia, falámos dos filhos… Agora, um em frente ao outro, a divagar sobre as teclas, ou agora até com um simples toque, a deixar passar o tempo… isso nunca”.

O respeitado professor de História da Ciência da USP Gildo Magalhães aborda tema que eu tratei anos passados nesse espaço, o desaparecimento da missiva escrita a mão e enviada pelo Correio. Perdeu-se o hábito e com ele o cuidado de uma escrita com mais apuro e substância. Cartas eram guardadas com afeto e permaneciam. Hoje, mesmo com a possibilidade de arquivar em pendrives ou outros aparelhos, rarissimamente são revisitados e-mails conceituais ou amistosos. Por vezes nem mais os encontramos, perdidos que estão nessa parafernália de maquininhas. Com argúcia Gildo Magalhães observa: “Os homens ainda não se deram conta do que perderam quando acabou o hábito de mandar cartas pelo correio”. Menciona no e-mail fato que se tem tornado frequente nas Universidades, ou seja, professores preocupados em mandar mensagens ininterruptamente durante arguição de colegas em bancas de concursos!

Recebi comentários adicionais do compositor e pensador francês François Servenière: “Primeiramente, gostei das duas charges do blog anterior. Terríveis, mas tão verdadeiras… Hoje, diante de um acidente de trânsito, pessoas preferem tirar fotos ou gravar vídeos em detrimento de prestar assistência, pois a mídia está sempre ávida para adquirir material focalizado ao vivo, o que lhe proporcionará audiência segura. Será necessário muita lucidez para olhar a realidade de frente, caso contrário corremos o risco, em curto prazo, de ter as sociedades ocidentais caóticas. Acredito, contudo, em um renascimento, que se deve manifestar  pela renovação de valores que fundaram nossas civilizações. Não podemos  esquecer de que, apesar da grave crise econômica grega e suas consequências catastróficas para o nosso continente, toda as nossas bases culturais vêm desse pequeno país a beira do colapso econômico. Esse recomeço em direção a uma nova civilização deveria ter início nas escolas, através de uma perspectiva voltada à cultura, às comunicações, às artes, num olhar outro sobre nossa sociedade. É rigorosamente necessário defender os valores antigos como pilares de nossas vidas e de nossos países. Sem eles, não haverá civilização, tampouco valores e culturas. O combate é agora, infelizmente sem tréguas, contra o niilismo e as forças obscuras” (tradução JEM).

Causou-me grata surpresa o fato de que também todas as outras mensagens recebidas foram escritas por leitores cônscios dessa atualidade tecnológica em aceleração constante. Apesar das muitas variações sobre o mesmo tema, uma identidade se estabeleceu entre todos os envios: a preocupação acentuada com um caminho cujas consequências mal podemos imaginar.

Finalizo a mencionar novamente o esperançoso Medaglia, que conclui seu artigo sobre essas maquininhas em constante mutação “… haverá não apenas uma manipulação mercadológica de nossa sensibilidade em função do lucro empresarial, mas um novo e rico conceito de beleza. Quem viver verá”.

Today I publish e-mail messages received from readers about the subject of last week’s post: mobile devices disrupting human to human communications. I’m not the only one worrying about how immersion in the digital world prevents us from being present in the real world.