Navegando Posts publicados em agosto, 2015

A Arte de Cláudio Giordano

Se beberes um copo de vinho depois da sopa,
roubas uma visita ao médico.
Provérbio russo

Vindima enxuta,
colherás vinho puro.

Vindima molhada,
pipa despejada.
Adagiário popular açoriano

O culto ao vinho tem raízes sólidas. Passa de geração a geração desde tempos remotos. Poder-se-ia acrescentar que nas famílias está impregnado no DNA, e a tradição se perpetua. Dos quatro filhos, apenas meu irmão José Paulo e eu perpetramos esse culto há cerca de sessenta anos, educados que fomos a admirar e apreciar essa bebida mágica pelo nosso saudoso pai, José da Silva Martins. Estou a me lembrar que me habituara a ver periodicamente o pai receber pequenas barricas (madeira) de vinho procedentes de Portugal e engarrafá-los em  bojudos recipientes de vidro de cinco litros. Habilidade não lhe faltava. Se quando miúdo inúmeras vezes nosso pai nos permitia beber sangrias (vinho e água), apenas por volta dos 18 anos tivemos acesso ao vinho em sua integralidade. Em seu livro “Saúde – Orientação para conservar a saúde e curar as doenças” (São Paulo, Martin Claret, 1995), saudado pelo ilustre médico Adib Jatene (1929-2014), meu pai observa: “O vinho, nas minhas duas principais refeições, é meu melhor amigo. Consagrado desde a Antiguidade, santificado por Jesus na última ceia, está diariamente presente em milhares de altares das igrejas de todo o mundo. Eleja-se, portanto, essa santa bebida como um alimento essencial para o nosso corpo, dela não abusando. Como um remédio tomado fora da prescrição médica, também o vinho tomado em excesso prejudica. Usemos, pois, o vinho com moderação”. Para corroborar sua posição, menciona frases de autores como São Paulo, Goethe e Shakespeare, entre tantos. Nas últimas décadas de sua longa existência (1898-2000) almoçava às sextas-feiras com meus pais. Aprendi a vê-lo regularmente frequentar distribuidoras de bebidas importadas e adquirir umas cinco garrafas de vinho português de diferentes procedências. Abria-as e embalava-as com um guardanapo, tampando pois os rótulos. Quando chegava para o almoço, meu pai e eu experimentávamos sem saber qual o vinho específico. A maioria dos votos era a razão para que ele comprasse várias caixas de determinada procedência. Tomávamos moderadamente durante as refeições, hábito que mantenho há décadas.

Foi pois com redobrada alegria que recebi das mãos de minha dileta amiga Norma Caribé da Rocha o livro “O Tempo e o Vinho – Recreações Vinárias”, com textos selecionados, traduzidos e organizados por Cláudio Giordano (São Paulo, Senai, SP-Editora, 2012). O nome desse também prezado amigo é total garantia de alta qualidade. Para aqueles que tiveram o privilégio de tê-lo como editor, essa assertiva é consensual.

“O Tempo e o Vinho” é um passeio prazeroso pela história da arte da vinificação. Giordano, com a acuidade e a dedicação que lhe são peculiares, recolheu, mormente na Biblioteca Vinária Reppucci, textos e reproduções gráficas que se estendem dos incunábulos do século XV a outros importantes exemplares que se prolongam dos séculos XVI ao XIX, propiciando ao leitor uma viagem extraordinária, a fazê-lo entender a magia e o encantamento que os povos, desde a antiguidade, têm pelo vinho. Se hoje há cerca de quatro mil variedades de uvas propícias à produção do vinho, desperta até estupefação saber que, já em tempos remotos, escritos dão conta de um sem número de cepas diferentes e que autores comentam as mais diversas aplicações do vinho como bebida, como remédio e em banhos saneadores.

A seleção feita por Cláudio Giordano é primorosa. Buscou textos que contemplam várias posições, quase todas a favor do vinho como uma quase poção mágica. Se personagens consagrados pela história comparecem com seus testemunhos, como Fedro, Casanova, Olavo Bilac e Eugênio de Andrade, causa surpresa a presença de autores que a história esqueceu, que majoritariamente escreveram sem fins da divulgação maior. Em textos claros, extraordinariamente bem documentados, comentam a trajetória do vinho, qualidades das uvas, processos de produção e quase sempre imbuídos de maravilhamento. Escritos pormenorizados, que denotaram tempo precioso de seus autores nos aprofundamentos históricos, sociais e da ação do vinho como bebida essencial. Na cuidadosa seleção feita por Giordano está o texto de Bartholomaeus Anglicus (Bartholémy l’Anglais ou Barholomeu Glanville – 1240), médico e posteriormente monge que, em sua vasta enciclopédia De proprietatibus rerum, dedicou segmento ao vinho. Pormenorizados igualmente os escritos de Francisco Franco (1569), Alfonso Limón Montero (1697), do Frade João Pacheco, eremita agostiniano (1734) e de Damião Antônio De Lemos Faria e Castro (1769). Das Memórias de Giacomo Casanova (1725-1798), Giordano extraiu passagens precisas relacionadas ao vinho e ao champagne, assim como concernentes à gastronomia e aos costumes do período em que o famoso aventureiro, libertino, escritor, espião, diplomata e religioso viveu. Tem muito interesse a apreciação degustativa de Casanova frente às mais diversas qualidades de vinhos.

Giordano não só preferenciou incunábulos, mas igualmente publicações que vieram até o século XIX. Conseguiu elaborar uma panorâmica que privilegia textos sobre a vinicultura, a ação do vinho sobre o corpo humano e também sobre seu humor, historiando a trajetória dessa sacra bebida no Egito e na Grécia antiga. Todos os textos são precedidos por acurada explicação de Giordano, revelando um verdadeiro encantamento do editor pelas preciosidades literárias que encontrou, desde os incunábulos já mencionados.

“O Tempo e o Vinho” está fartamente ilustrado. Fac-símiles de páginas de rosto ou mesmo de textos integrais enriquecem a publicação. Uma restrição apenas. O subtítulo “Recreações Vinárias” compreende-se, conhecendo-se o proverbial recato de Cláudio Giordano. Na realidade não se trata, a meu ver, de recreações, pois “O Tempo e o Vinho” expressa as impressões digitais de autores, através dos milênios, nesse culto à mais sacralizada bebida da história da humanidade. Uma obra rigorosamente enriquecedora.

This post is an appreciation of the book “O Tempo e o Vinho” (The Time and the Wine), a selection of texts organized by editor Cláudio Giordano, a name that speaks for itself in terms of quality and trust. The reader is taken to a journey into the history of the wine from 15th-century incunabula to 19th-century texts, with valuable and curious information on grape varieties, production processes and benefits for both body and humor, since drunk in moderation.

 

 

 

 

Reflexões sobre o Tema

O homem é comumente ligado àquilo que ele acredita conhecer,
mais do que àquilo que sabe ignorar.

Não se faz arte que fale às massas quando nada se tem a dizer.
André Malraux

Após o advento tecnológico destas últimas décadas foram muitas as vozes a vaticinarem o final da leitura impressa. Se dados concretos corroboram a assertiva, como a diminuição sensível dos periódicos diários, a transferência clara de tantas colunas jornalísticas para o denominado online, o surgimento de tantos veículos independentes, como os blogs que atingem hoje um número incalculável de adeptos, não menos certo é que o livro impresso continua sua trajetória. É lógico que sofreu impacto, teve de se reinventar para não perecer, mas permanece.

Nunca é pouco mencionar a perenidade do livro e sua retenção na memória de quem lê. Se a tecnologia apresenta sucessivamente novas formas de leitura e, nesse curto caminho, está permanentemente a aperfeiçoar o acesso à virtualidade, considere-se que o aparente imobilismo do livro impresso provoca em seus algozes a crítica que antevê o desaparecimento. O tema está longe de ter um final, o debate poderá tornar-se acirrado, mas as desigualdades quanto às trajetórias das duas abordagens não são motivo para a prevalência da forma virtual. O convívio deverá prosseguir e, se a tradição se perpetua desde Johannes Gutenberg (1398-1468), o advento dos meios tecnológicos e sua aceleração constante tornam o quadro virtual absolutamente imprevisível.

Antes de inserir parte do e-mail de François Servenière, mencionaria observações de profunda atualidade por ele enviadas após sua mensagem inicial. Trata-se de frases de Boris Souvarine (1895-1984) que remontam ao ano de 1937!!! Escreve: “Ao encontro de muitas previsões, de todas as esperanças, o progresso das artes e das profissões, das ciências e das técnicas não trouxe para a humanidade um progresso intelectual e moral paralelo, mas correspondeu a uma regressão sensível. Les Lumières, como se dizia no século XVIII, estão hoje numa rota inversa às conquistas da eletricidade. Tudo que deveria esclarecer a consciência do homem é utilizado para melhor enganar, a difundir pressupostos… E o número daqueles indivíduos capazes de pensar por si próprios decresce a cada dia”. Poderia essa ponderação ter sido escrita hoje e a acharíamos pertinente.

Voltando-se aos livros, e mercê de toda uma estonteante transformação cultural nas últimas décadas, percebe-se que a literatura tem sofrido decadência no sentido de um aviltamento de conteúdo, salvo  exceções já mencionadas no blog anterior. Mario Vargas Llosa, em seu magnífico “La Civilización del Espectáculo”, comenta: “Não é pois estranho que a literatura mais representativa de nossa época seja a literatura light, leve, ligeira, fácil, uma literatura que, sem o menor rubor, propõe-se ante tudo e sobretudo (quase exclusivamente) a divertir. Apesar da superficialidade de tantos textos, há entre seus autores verdadeiros talentos”. Seria possível entender essa literatura cotidianamente em ascensão, que entretém e que vende muito, para gáudio das editoras, consequência dessa decadência da língua, de sua estrutura e do conteúdo intrínseco que ela deveria manter. Nenhuma derrocada acontece sem a destruição de raízes sólidas. Em todas as áreas.

Voltemos a François Servenière. Escreve: “Sobre seu texto cuja origem está na discussão com sua netinha Emanuela, à qual felicito pela consciência esclarecida para sua idade, creio que você conhece minha posição que por várias vezes evoquei nas numerosas participações em seu blog. Ei-las:

Os livros não entram jamais em pane: a consequência direta é que a civilização da eletrônica está condenada no futuro, a menos que assegure ao mundo o fornecimento elétrico permanente para a eternidade, o que se vaticina impossível a longo prazo, como sabemos. O caminhar pela história através dos séculos é feito de altos e baixos, de períodos luminosos e de outros sombrios. A eletricidade não estancará esse fenômeno de usura de todas as sociedades. O livro tem ainda um futuro brilhante.

As ditaduras detestam os livros e desejam substituir toda a cultura por O LIVRO: fenômeno recorrente de todas as ideologias ditatoriais, que começam sempre por obstaculizar o primeiro instrumento de liberdade da humanidade, os livros, actus fidei, incêndio de bibliotecas…  Nossa Ministra da Cultura da França não ousou dizer publicamente em recente entrevista (eu insisto, Ministra da Cultura) de que não lia um livro há dois anos? Lembro-lhe de que ela é a Ministra da Cultura da FRANÇA, país sabidamente da literatura!!!”. Gostaria de acrescentar que assisti ao vídeo em que a Ministra da Cultura e da Comunicação, Fleur Pellerin, antecedia essa afirmação, a dizer que almoçara descontraidamente, dias antes, com o Prêmio Nobel de literatura de 2014, Patrick Modiano, e, ao ser questionada sobre quais obras conhecia do festejado escritor francês, não soube responder (sic)!!! Para um país que teve como Ministro da Cultura o grande escritor, pensador, humanista, político e conhecedor das artes André Malraux (1901-1976), autor de obras referenciais como La Condition Humaine, La Voie Royale e Musée imaginaire de la Sculpture Mondiale, entre tantas outras, tem-se uma queda abissal!!! Continua Servenière:

O que permitiu aos povos sobreviver sempre em tempos de ditaduras: OS LIVROS “.

Essa última frase do compositor e pensador francês nos faz lembrar de episódios históricos lamentáveis. Em França, durante a Revolução Francesa, os instrumentos musicais da família do cravo foram incendiados, pois representavam a monarquia. A Revolução Maoísta na China não pôs fogo em todas as partituras ocidentais, que representariam o “capitalismo decadente”? O relato pungente desse período sinistro está no livro da extraordinária pianista chinesa Zhu Xiao-Mei (vide blog “La Rivière et son secret – A pianista Zhu Xiao-Mei e seus desvelamentos”, 06/11/2009). Em termos nossos, o nosso último ex-presidente não teria declarado que sentia preguiça em ler um livro? Ao menos um dito conhecido atenua posições: “pior do que não ler um livro é ler apenas um”.

Se o destino do livro deve ser obviamente a leitura, lido e assimilado, entendê-lo como um “amigo” é consequência, pois na estante aguarda sempre o momento da revisitação. O livro impresso tem essa virtude inalienável e mais outras individuais, mormente os mais antigos. Com o passar dos anos, suas páginas impregnam-se até de fragrâncias características, a depender da idade do volume. Se já lido, ainda mais prazer temos nesse novo encontro, mormente se deixamos anotações que com o tempo podem até não corresponder às nossas reflexões tardias.

Servenière conclui: “Quando um país destrói sua cultura, ele destrói sua alma. Trata-se de uma  bandeira do socialismo que pretende, em todos os lugares, fazer com que os povos passem do ‘obscurantismo à luz’, por ideologia, é claro, erradicando as estruturas antigas, a fim de fundar ‘o homem novo’. Tabula rasa”. (tradução: J.E.M.)

This week I resume the subject of last week’s post , writing about the light literature of today — a blatant example of language deterioration —, the aim of which is just to entertain and to sell. The French composer François Servenière enriches the topic with his usual sharpness, commenting on how anti-intellectualism is often a face of totalitarianism, because books are an instrument for freedom of thought.