A Arte de Cláudio Giordano
Se beberes um copo de vinho depois da sopa,
roubas uma visita ao médico.
Provérbio russo
Vindima enxuta,
colherás vinho puro.
Vindima molhada,
pipa despejada.
Adagiário popular açoriano
O culto ao vinho tem raízes sólidas. Passa de geração a geração desde tempos remotos. Poder-se-ia acrescentar que nas famílias está impregnado no DNA, e a tradição se perpetua. Dos quatro filhos, apenas meu irmão José Paulo e eu perpetramos esse culto há cerca de sessenta anos, educados que fomos a admirar e apreciar essa bebida mágica pelo nosso saudoso pai, José da Silva Martins. Estou a me lembrar que me habituara a ver periodicamente o pai receber pequenas barricas (madeira) de vinho procedentes de Portugal e engarrafá-los em bojudos recipientes de vidro de cinco litros. Habilidade não lhe faltava. Se quando miúdo inúmeras vezes nosso pai nos permitia beber sangrias (vinho e água), apenas por volta dos 18 anos tivemos acesso ao vinho em sua integralidade. Em seu livro “Saúde – Orientação para conservar a saúde e curar as doenças” (São Paulo, Martin Claret, 1995), saudado pelo ilustre médico Adib Jatene (1929-2014), meu pai observa: “O vinho, nas minhas duas principais refeições, é meu melhor amigo. Consagrado desde a Antiguidade, santificado por Jesus na última ceia, está diariamente presente em milhares de altares das igrejas de todo o mundo. Eleja-se, portanto, essa santa bebida como um alimento essencial para o nosso corpo, dela não abusando. Como um remédio tomado fora da prescrição médica, também o vinho tomado em excesso prejudica. Usemos, pois, o vinho com moderação”. Para corroborar sua posição, menciona frases de autores como São Paulo, Goethe e Shakespeare, entre tantos. Nas últimas décadas de sua longa existência (1898-2000) almoçava às sextas-feiras com meus pais. Aprendi a vê-lo regularmente frequentar distribuidoras de bebidas importadas e adquirir umas cinco garrafas de vinho português de diferentes procedências. Abria-as e embalava-as com um guardanapo, tampando pois os rótulos. Quando chegava para o almoço, meu pai e eu experimentávamos sem saber qual o vinho específico. A maioria dos votos era a razão para que ele comprasse várias caixas de determinada procedência. Tomávamos moderadamente durante as refeições, hábito que mantenho há décadas.
Foi pois com redobrada alegria que recebi das mãos de minha dileta amiga Norma Caribé da Rocha o livro “O Tempo e o Vinho – Recreações Vinárias”, com textos selecionados, traduzidos e organizados por Cláudio Giordano (São Paulo, Senai, SP-Editora, 2012). O nome desse também prezado amigo é total garantia de alta qualidade. Para aqueles que tiveram o privilégio de tê-lo como editor, essa assertiva é consensual.
“O Tempo e o Vinho” é um passeio prazeroso pela história da arte da vinificação. Giordano, com a acuidade e a dedicação que lhe são peculiares, recolheu, mormente na Biblioteca Vinária Reppucci, textos e reproduções gráficas que se estendem dos incunábulos do século XV a outros importantes exemplares que se prolongam dos séculos XVI ao XIX, propiciando ao leitor uma viagem extraordinária, a fazê-lo entender a magia e o encantamento que os povos, desde a antiguidade, têm pelo vinho. Se hoje há cerca de quatro mil variedades de uvas propícias à produção do vinho, desperta até estupefação saber que, já em tempos remotos, escritos dão conta de um sem número de cepas diferentes e que autores comentam as mais diversas aplicações do vinho como bebida, como remédio e em banhos saneadores.
A seleção feita por Cláudio Giordano é primorosa. Buscou textos que contemplam várias posições, quase todas a favor do vinho como uma quase poção mágica. Se personagens consagrados pela história comparecem com seus testemunhos, como Fedro, Casanova, Olavo Bilac e Eugênio de Andrade, causa surpresa a presença de autores que a história esqueceu, que majoritariamente escreveram sem fins da divulgação maior. Em textos claros, extraordinariamente bem documentados, comentam a trajetória do vinho, qualidades das uvas, processos de produção e quase sempre imbuídos de maravilhamento. Escritos pormenorizados, que denotaram tempo precioso de seus autores nos aprofundamentos históricos, sociais e da ação do vinho como bebida essencial. Na cuidadosa seleção feita por Giordano está o texto de Bartholomaeus Anglicus (Bartholémy l’Anglais ou Barholomeu Glanville – 1240), médico e posteriormente monge que, em sua vasta enciclopédia De proprietatibus rerum, dedicou segmento ao vinho. Pormenorizados igualmente os escritos de Francisco Franco (1569), Alfonso Limón Montero (1697), do Frade João Pacheco, eremita agostiniano (1734) e de Damião Antônio De Lemos Faria e Castro (1769). Das Memórias de Giacomo Casanova (1725-1798), Giordano extraiu passagens precisas relacionadas ao vinho e ao champagne, assim como concernentes à gastronomia e aos costumes do período em que o famoso aventureiro, libertino, escritor, espião, diplomata e religioso viveu. Tem muito interesse a apreciação degustativa de Casanova frente às mais diversas qualidades de vinhos.
Giordano não só preferenciou incunábulos, mas igualmente publicações que vieram até o século XIX. Conseguiu elaborar uma panorâmica que privilegia textos sobre a vinicultura, a ação do vinho sobre o corpo humano e também sobre seu humor, historiando a trajetória dessa sacra bebida no Egito e na Grécia antiga. Todos os textos são precedidos por acurada explicação de Giordano, revelando um verdadeiro encantamento do editor pelas preciosidades literárias que encontrou, desde os incunábulos já mencionados.
“O Tempo e o Vinho” está fartamente ilustrado. Fac-símiles de páginas de rosto ou mesmo de textos integrais enriquecem a publicação. Uma restrição apenas. O subtítulo “Recreações Vinárias” compreende-se, conhecendo-se o proverbial recato de Cláudio Giordano. Na realidade não se trata, a meu ver, de recreações, pois “O Tempo e o Vinho” expressa as impressões digitais de autores, através dos milênios, nesse culto à mais sacralizada bebida da história da humanidade. Uma obra rigorosamente enriquecedora.
This post is an appreciation of the book “O Tempo e o Vinho” (The Time and the Wine), a selection of texts organized by editor Cláudio Giordano, a name that speaks for itself in terms of quality and trust. The reader is taken to a journey into the history of the wine from 15th-century incunabula to 19th-century texts, with valuable and curious information on grape varieties, production processes and benefits for both body and humor, since drunk in moderation.