Uma das Obras Essenciais Apresentadas no Ciclo da Unibes

Assim o povo,
que tem sempre melhor gosto

e mais puro do que essa escuma descorada
que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade,
os seus passeios favoritos são a Madre-de-Deus
e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas.
Almeida Garrett (1799-1854)
(Viagens na Minha Terra)

No blog anterior apresentamos o texto impecável do musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso sobre os 12 Cantos Sefardins, de Fernando Lopes-Graça. A obra fundamental do compositor teve a primeira audição mundial neste último dia 15 de Outubro. Às melodias tradicionais sefarditas, Lopes-Graça estabelece como acompanhamento uma escritura por vezes transcendente no aspecto de entrosamento, pois propõe uma série de soluções complexas nessa combinação simplicidade melódica e refinadíssima composição pianística. O que poderia parecer antagonismo insolúvel resulta numa qualidade ímpar quanto à possível “união dos contrários”.

Os três textos que constam do opúsculo distribuído graciosamente pela Unibes não são propriamente notas de programa, geralmente textos informativos retirados de enciclopédias ou livros afins. Resultam dos aprofundamentos a que se propuseram Pedrosa Cardoso (Cantos Sefardins) e este músico para as obras mencionadas no título do post. Transcrevo, pois, excertos do texto sobre Viagens na Minha Terra, obra apresentada no programa que incluía os 12 Cantos Sefardins, interpretados em primeira audição mundial com recepção calorosa por parte do seleto público.

Apresentei Viagens na Minha Terra em São Paulo no ano de 2003 e em várias cidades portuguesas no mesmo ano, tendo gravado a magnífica coletânea, juntamente com outras importantes obras de Lopes-Graça, para CD do selo Portugaler. Escrevi o texto do encarte que reproduzo no presente blog. No recital do último dia 15 de Outubro tivemos datashow preparado pelo competente musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso (Universidade de Coimbra), a particularizar “didaticamente” cada uma das 19 aldeias e vilas percorridas por Lopes-Graça.

Viagens na Minha Terra, cujo título e expressiva epígrafe são extraídos da obra homônima de Almeida Garrett, serve como homenagem ao grande escritor português e pretexto para o compositor penetrar Portugal em uma de suas essencialidades. Tão logo aceitas as iniciais, Lopes-Graça empreende outras viagens, percorrendo caminhos geográficos sob a égide da observação sensível e evocativa, sempre a ter esse povo da tradição como desiderato maior. Sente a grandeza de Portugal, como escreve em fevereiro de 1959: “[...] estímulo para novas partidas, para novas viagens neste continente ainda tão mal conhecido que é a música portuguesa”.

Viagens na Minha Terra expõe, em segmento expressivo da coletânea, o culto voltado ao religioso. Sete das dezenove “pequenas peças para piano sobre melodias tradicionais portuguesas”, subtítulo do álbum, têm a participação do povo da pequena cidade, do vilarejo ou da aldeia no intrínseco histórico de sua religiosidade, nessa prática dos ritos populares, acalentada diariamente pelo campesino ou citadino mais simples, no aguardo do evento que sempre ocorrerá, mesmo que seja anual. Existindo a preservação da tradição, o tempo escoa sem ser sentido. Procissões, rezas, folguedos sacroprofanos incorporam-se à série de peças, dando-lhes homogeneidade. Nessa atmosfera objetivo-subjetiva, Lopes-Graça descreve sugerindo, como a convidar o ouvinte àquilo que foi captado pelos sentidos e reinterpretado pela técnica apurada.

O ouvinte seguirá a procissão de penitência em São Gens de Calvos; a romaria do Senhor da Serra de Semide e mesmo a romaria de Póvoa de Val de Lobo, onde troam os adufes profanos; acompanhará o gestual e os sons do lundum em Figueira da Foz e também o fandango em Alcobaça; ouvirá o Bendito em São Miguel d’Acha; os cantos dos festejos de Reis em Rezende ou a velhinha de Pegarinhos em sua solidão, a expressar-se através de antiga canção de roca; contemplará o singelo Natal no Ribatejo; lançará um olhar às faldas da Serra da Estrela, à Citânia de Briteiros e às terras do Douro, e ainda ao ritmo da barcarola, conhecerá a Ria de Aveiro; presenciará as cenas campesinas em Monsanto da Beira, quando apanham a margaça; em Setúbal, onde comem a bela laranja, e em Vinhais, quando escutam um velho romance; constatará a ausência das que foram moiras encantadas em Silves. Todo esse mágico desfilar guiado pelas mãos de um autor autêntico.

Quanto ao idiomático técnico-pianístico, há profunda consistência intervalar e a utilização constante de oitavas paralelas nos movimentos lentos, enfatizando melodias, quintas, segundas maiores ou menores; apojaturas expressivas; o elemento percussivo, como rítmica complexa, a aparente aridez do rústico, rudeza poética, configurando determinadas características estilísticas do autor.

Viagens na Minha Terra foram dedicadas ao grande pianista brasileiro Arnaldo Estrela (1909-1980), que comungava de ideais sociopolíticos com o compositor português.

Há que se considerar, sempre, o entusiasmo de Lopes-Graça quanto às viagens em Portugal para recolha do material da música popular tradicional. Tinha em mente, no decênio da criação das Viagens…, a difusão dessa recolha: “[...] tendo eu regressado com um pequeno pecúlio de canções saborosíssimas, umas, outras de uma profundidade de expressão rara, todas oferecendo mais ou menos, por este ou aquele aspecto, matéria de meditação aos estudiosos do assunto”.

A revisitação às Viagens… dar-se-á em 1969, quando Lopes-Graça orquestrará todas as pequenas peças do álbum. Estaria a demonstrar o carinho para com a obra e esse novo debruçar propicia o descortino de todo um universo timbrístico, quiçá existente em 1953-1954, mas que, mercê do “processo de amadurecimento progressivo”, enriquece-se de concepções imaginárias outras. Maurice Ravel voltou-se para os Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, deles oferecendo uma leitura orquestral. Lopes-Graça faz o mesmo consigo próprio. Em ambos os casos, temos pequenos quadros musicais. Nas duas situações, a orquestra apenas ratifica a qualidade das obras pianísticas.

Lembrar Lopes-Graça é a certeza de nos depararmos com o grande gênio musical português do século XX em sua absoluta abrangência multifacetada, um dos vultos que melhor soube amar as terras e o povo de Portugal.

Brief considerations on the great composer Fernando Lopes-Graça’s works “Viagens na Minha Terra” e “12 Cantos Sefardins”, both presented at my piano recital held last 15 October in São Paulo, the latter with the participation of the Portuguese mezzo soprano Rita Morão Tavares and the professor José Maria Pedrosa Cardoso.