Navegando Posts publicados em outubro, 2015

Portugal, Aldeias, Vilas e Música Sefardita

Não sei se tenho muita razão:
mas o que é certo é que quase sempre me causa revolta
(e eu já por lá passei pessoalmente) este sacrifício,
esta imolação, que o mundo faz do homem ao artista,
ignorando aquele para egoisticamente se rever na obra deste,
e depois cantar loas à grandeza e à glória do Homem,
do Espírito e não sei que mais coisas escritas com maiúsculas.
Lopes-Graça

Nestes oito anos e meio de existência do blog, inúmeras vezes escrevi posts sobre a música portuguesa, sua importância e divulgação. Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o grande compositor português do século XX, tem sido um dos temas preferenciais. Sua criação imensa abordou quase todos os gêneros musicais e sua pena arguta, inteligente e criativa legou cerca de 20 livros realmente preciosos sobre os mais variados temas da área. Em torno de Lopes-Graça nasceria, em fins de 2014, um projeto a visar eventos especiais em São Paulo.

Bruno Assami, competente diretor executivo da Unibes Cultural e adido cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, convidou-me para uma reunião em que discutimos a música sefardita em Portugal e a possibilidade da realização de apresentações para promover a difusão dessa manifestação artística. Foi lembrada a coleção dos 12 Cantos Sefardins (1969) para canto e piano de Lopes-Graça, ainda não apresentada em público. Em torno dessa obra um projeto foi montado e, entre os dias 13 e 15 de Outubro próximos, a Unibes Cultural e o Consulado Geral de Portugal em São Paulo sediarão um ciclo de palestras e recitais a abordar a obra e o pensamento de Lopes-Graça, a enfatizar os 12 Cantos Sefardins.

A palavra sefardi, de origem hebraica, aplica-se aos judeus originários de Portugal e Espanha. A tradição remonta, possivelmente, à época dos fenícios e é mais documentada a partir do Império Romano. Os sefaradis mantiveram tradições e sua cultura resistiu às muitas outras culturas majoritárias através dos tempos, como a cristã, a dos bárbaros e a dos mouros. Durante a Inquisição foram perseguidos na Península Ibérica e expulsos nos séculos XV e XVI, estabelecendo-se em comunidades na África do Norte, Brasil, México… Os sefarditas da nação portuguesa também são denominados sefarditas ocidentais. Quanto à sua música, tem ela forte influência das culturas do Médio Oriente.

Abre o ciclo o Prof. Dr. José Maria Pedrosa Cardoso, que realizou extensa pesquisa a respeito dos Cantos Sefarditas compostos por Fernando Lopes-Graça. Foi às origens dos temas escolhidos e encontrou fontes preciosas, que o ajudaram nesse desvelamento. Sua palestra no dia 13 de Outubro versará sobre esse aprofundamento. Extraí alguns pontos do artigo que será publicado brevemente pela revista portuguesa Glosas em Portugal e que será um dos três textos que irão compor um opúsculo a ser distribuído durante o ciclo promovido pela Unibes Cultural. Pedrosa Cardoso dá uma panorâmica da gestação dos Cantos Sefardins.

“Com o título de Cantos sefardins, op. 181, compôs Fernando Lopes-Graça, entre 1969 e 1971, um ciclo de 12 peças  para voz e piano as quais, segundo Romeu Pinto da Silva e outros observadores autorizados, bem como Conceição Correia do Museu da Música Portuguesa, ainda não foram executadas em público.

Em ambos os casos, trata-se de composições importantes, que vale a pena considerar no seu justo valor. Nada se sabe da versão para canto e piano, a não ser que foi alguma vez ensaiada pelo próprio compositor na sua casa  diante de Manuel Cadafaz de Matos, que diz ter recebido o autógrafo   oferecido pelo compositor: ‘Quanto às Canções Sefarditas de Lopes-Graça, informo que o CEHLE é o actual detentor do manuscrito autógrafo do compositor, que por ele nos foi cedido em retribuição de uma (que ele entendeu ser) dádiva de amizade. Tal ocorreu quando – no Verão de 1979 – eu fui o responsável, entre 5 de Abril e 12 de Outubro desse ano, na Rádio Comercial, na Rua Sampaio e Pina, em Lisboa, de um programa semanal (de uma hora cada) intitulado A Linguagem e o Mito na Música Portuguesa.’ (Informação pessoal, que muito se agradece, prestada pelo Prof. Doutor Manuel Cadafaz de Matos).

Mais importante do que as vicissitudes da estreia ou não estreia de Cantos sefardins é a questão de saber-se o motivo que levou Lopes-Graça a escrever sobre música sefardim, isto é, música de tradição judaica hispano-portuguesa. Parece certo que nunca o compositor escreveu nada que fosse sobre música tradicional judaica. Donde lhe veio o interesse por tais assuntos? Segundo o musicólogo Sérgio Azevedo, ‘a música popular dos judeus sefarditas não podia deixar de interessar Lopes-Graça, nascido (muito próximo da Sinagoga local) numa terra de grandes tradições judaicas: Tomar’ (encarte da gravação da versão para canto e orquestra de seis dos doze cantos sefardins em questão). Por sua vez, Mário Vieira de Carvalho refere-se às raízes de uma tradição hebraica ‘a que a casa natal do compositor bem como as suas origens familiares também se encontram ligadas’ (2006).

Todavia, e partindo deste pressuposto, poder-se-ia conjecturar apenas que Lopes-Graça se tenha imbuído de alguma tradição judaica vivida na sua infância ou até que alguma fímbria judaizante lhe corresse no sangue, o que ele jamais confessou. Nada seria de estranhar que o avô paterno de Lopes-Graça, de nome Elisiário da Graça, para além de sempre ter vivido ‘na Judiaria, mais tarde Rua Nova (actual Rua Dr. Joaquim Jacinto)…’ (cf. António de Sousa, A Construção de uma Identidade: Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça, Chamusca, Edições Cosmos, 2006), aparentemente na mesma casa onde nasceu o compositor, não devesse o seu nome uma efectiva filiação judaica.

Para se explicar o interesse de Lopes-Graça pela música sefardim poderíamos ainda invocar amizades com judeus que lhe marcaram a vida, um dos quais foi Louis Saguer. O que é certo é que o compositor, por volta de 1969, se interessou seriamente pela música tradicional judaica. Como tomou conhecimento daquelas melodias sefardins? Neste momento, é possível declarar que foi através de um livro da colecção de M. Giacometti: Chants Sephardis, uma colecçao recolhida e notada pelo célebre judeu francês, Léon Algazi, e publicada em 1958 pela World Sephard Federation. Ali foi possível encontrar, nas pp. 27, 45, 48, 52, 55, 56, 57,65, 66, 74, 75 e 79, as 12 peças que constituem o cancioneiro sefardim de Lopes-Graça, a saber, pela ordem mencionada: Un Cavritico, Cuando el Rey Nimrod, A la Nana, Noches, Noches, Una Noche yo me armi, A la una naci yo, Durmo la Nochada, Arvolera, Arvoles yoran, Morenica sos, El sasento e Si savias gioya mía.  Pode ser que M. Giacometti tenha recomendado estas, e não outras, canções, razão pela qual Lopes-Graça lhe dedicou as suas composições.

É certo que Lopes-Graça se dedicou de alma e coração, escrevendo, entre 1969 e 1971, as 12 peças de antologia que constituem o seu op. 181. Segundo Sérgio Azevedo, ‘nada nestas peças se fica pela banal harmonização, mera roupagem erudita de cantos populares simples. Ao invés, é um ciclo de poderosos lieder, por vezes próximos das vanguardas da época (podemos compará-los com as obras semelhantes de Berio, ou do último Britten), cujo sabor oriental e complexa profusão polifónica e orquestral fazem por vezes lembrar Szymanowski, na sua fase de fascínio arábico. Fechando o ciclo, o rítmico, obsessivo e quase salmódico el cavriti (o cabrito) transforma tudo numa dança popular desenfreada, de uma virtuosidade orquestral  (e vocal) estonteante.’

E agora que o mundo se prepara para escutar pela primeira vez a versão original para canto e piano, tal como se encontra depositada no Museu da Música Portuguesa, no dia 15 de Outubro p.f., em São Paulo, na Unibes Cultural, pela voz de Rita Morão Tavares e pelas mãos de José Eduardo Martins, apeteceria passar a pente fino o conteúdo musical das 12 melodias eleitas por Lopes-Graça da tradição sefardim. É o que será apresentado antes, no dia 13 de Outubro e no mesmo local, pelo signatário deste artigo em conferência com o título de ‘Os Cantos sefardins de Lopes-Graça: origem e panorâmica analítica’. Aquelas melodias, recolhidas maioritariamente em Paris por Léon Algazi, são as que o compositor português, prestando preito aos seus possíveis antepassados e, de qualquer modo, gloriosos filhos enjeitados de Portugal, revestiu sacralmente de uma arte pianística de  eleição. Sem o fazer, por simples premura de espaço, seja lícito salientar que, para além do respeito intocável pelas melopeias, já langorosas e cheias de saudade, já alegres e mesmo jocosas, Lopes-Graça colocou nelas o seu estilo inconfundível, que faz das mesmas modelo de virtuosismo e, ao mesmo tempo, de um tratamento musical absolutamente ímpar, que lhe merece, certamente, ser inscrito no quadro dos maiores compositores de música judaica dos tempos modernos”.

No próximo post apresentarei excertos de minha palestra “Em torno de ‘Canto de Amor e de Morte’ de Lopes-Graça – Mors Certa Hora Incerta“, em que o compositor evidencia nítida atração pelo tema desde Epitáfio para o Autor, terceiro dos três epitáfios compostos em 1930. Interpretarei essa obra, duas das nove Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte. Igualmente, postarei segmentos do terceiro texto que compõe o pequeno opúsculo a ser distribuído durante o ciclo e que aborda Viagens na Minha Terra, obra fundamental de Lopes-Graça, cujo título, homônimo ao do romance de Almeida Garrett, testemunha afeições às terras lusíadas. A execução das 19 peças das Viagens na Minha Terra será substanciada pelo datashow preparado pelo prof. Pedrosa Cardoso que visitou nestes últimos meses as aldeias, freguesias e vilas contempladas pelas Viagens… Na segunda parte do programa do dia 15 teremos a esperada primeira audição mundial dos 12 Cantos Sefardins do grande mestre nascido em Tomar. Também apresentarei no blog testemunhos referentes à recepção do valioso repertório a ser interpretado.

This post addresses the cycle of lectures and recitals sponsored by Unibes Cultural – a non-profit organization – and the Portuguese Consulate-General, addressing the work and thought of the composer Fernando Lopes-Graça, with focus on the world premiere of his 12 Sephardic songs for voice and piano. The event will take place from October 13 to 15 in São Paulo, with the participation of the Portuguese musicologist José Maria Pedrosa Cardoso, the Portuguese mezzo soprano Rita Morão Tavares and myself.

 

 

 

 

Um Livro do Médico Drauzio Varella

Correr é experimentar a liberdade suprema,
é voltar aos tempos de criança.

De minha parte,
se alguma coisa aprendi com as maratonas
e os treinos necessários para completá-las,
foi não levar a idade em conta.
Confrontado com um desafio,
procuro ver se me acho em condições físicas e intelectuais
e se terei disciplina para enfrentá-lo;
jamais considero o número de anos que juntei,
porque a questão da idade
vem contaminada por preconceitos arcaicos.
Drauzio Varella

Ao longo destes anos, inúmeras vezes pormenorizei a corrida de rua, nela a encontrar uma das mais salutares práticas esportivas nessa busca incessante do ser humano em direção à qualidade de vida. Prazerosa, enriquecedora física e mentalmente, a corrida de rua tem recebido a cada ano, aqui e alhures, um número cada vez maior de adeptos otimistas. Diria que um impulso interior torna esse praticante da corrida de rua um apaixonado pela atividade, que se traduz na frequência permanente aos inúmeros eventos que se realizam neste país. Para o observador, não é difícil visualizar rostos já memorizados de corridas anteriores, sempre com  vontade, determinação e alegria.

Anteriormente, neste espaço, resenhei o excelente livro do consagrado escritor japonês Haruki Murakami, que narra suas maratonas (vide post: Do que eu falo quando falo de corrida, 19/02/2011). É pois alvissareiro o lançamento do livro do mediático médico oncologista Drauzio Varella, autor de tantos livros consagrados, e célebre através das intervenções constantes na TV. Pormenorizando-se nas maratonas, traz contribuição efetiva, mormente para os praticantes dos 42,195k (Correr – o Exercício, a Cidade e o Desafio da Maratona, São Paulo, Companhia das Letras, 2015).

Nascido em 1943, Varella apenas começaria a participar de corrida de rua aos 50 anos. Fumante inveterado, não se esqueceria de frase do também oncologista já falecido, Fernando Gentil, para que parasse de fumar. Desistiu do hábito nefasto e pôs-se a correr, almejando não as corridas curtas, ou a clássica 10k, mas a pensar apenas na maratona. Disciplina férrea levou-o a treinamentos intensivos e de 1983 até o presente já são inúmeras as maratonas percorridas.

Drauzio Varella tem o dom da linguagem direta, sem subterfúgios. Apresenta uma panorâmica histórica da maratona na Grécia Antiga, a trazer ao leitor leigo as básicas informações sobre a mítica corrida. A preceder as maratonas das quais participou, em pontos geográficos tão diversos como Blumenau e Rio de Janeiro, Nova York (inúmeras), Chicago, Boston, Tóquio, Buenos Aires, Berlim… , Drauzio Varella conta descontraidamente os preparativos físicos, a expectativa que sempre  acomete o corredor antes de qualquer corrida e… observa. Em várias oportunidades não deixa de olhar o entorno e de apreciar o que a visão alcança, tecendo comentários pitorescos. Há fino humor em suas narrativas.

“Correr” tem segmentos que poderiam parecer fora do contexto, mas não o são. Não por acaso, uma das palavras do subtítulo é Cidade. Hilariante a sua aventura em Miami, para onde foi a fim de participar de Congresso e, em treino pelas ruas da cidade, perde-se, e o desenrolar dos episódios dessa “aventura” tem graça, assim como o treinar no centro de São Paulo e passar pela cracolândia. Em ambas as situações, é clara a intenção do médico observador de estudar fisionomias e as ações – hostis, passivas ou entusiasmantes –  dos personagens citadinos dos quais tem um vislumbre efêmero. Lagoa Rodrigo de Freitas, Floresta da Tijuca, Haga Park em Estocolmo, Parque do IbirapueraCentro Histórico de São Paulo, Minhocão são pormenorizados nos treinos constantes e prolongados, visando às árduas maratonas. Seria o arguto senso de observação que o faz narrar a história de desencanto amoroso no capítulo Love Story, pois, em seus treinos pelo centro de São Paulo, encontra um desiludido. Também de interesse suas observações em Buffalo, onde realizava um curso e saiu para treinar. Maravilha-se com a quantidade de gaivotas às margens do lado Erie, seus pios, suas revoadas. Curiosamente, tenho sempre essa impressão, quando em Gent, na Bélgica, para gravações de CDs, vejo de meu quarto essas lindas aves brancas e ouço seus pios esganiçados, mas característicos, mormente durante voos rasantes no canal em frente à janela.

Extremamente úteis os capítulos dedicados ao físico do atleta e aos cuidados necessários para a preservação da “máquina” nos itens essenciais: as lesões osteomusculares, os joelhos; suas repercussões várias, digestivas, cardíacas, renais e pulmonares; a problemática da hipotermia e a desidratação. Esses capítulos, distribuídos entre os temas da maratona e da cidade, tornam a leitura prazerosa, não concentrada em um assunto apenas, entrelaçando-se de maneira harmoniosa com o todo da narrativa.

Drauzio Varella é  especialista em vários segmentos da medicina, comunicador de grande talento e escritor que se tem notabilizado a cada obra publicada. Em seu ótimo “Correr” teria, talvez, faltado um capítulo ao qual poderia dar enorme contributo, se bem que o subtítulo já enfatiza a distância a que se propõe. Se considerado for que a imensa maioria das corridas de rua privilegia distâncias que se estendem dos 5 aos 10k, umas outras às 10 milhas ou à meia maratona, é certo que, apesar de algumas dezenas de milhares de corredores dedicarem-se à maratona, ela ocorre bem menos frequentemente. Preparação prolongada e a “impossibilidade” de um corredor amador realizar mais de duas provas ao ano (o recomendável extremo) tornam essa distância de 42,195 km menos habitual no calendário. É só verificarmos os calendários de corridas de rua espalhados pelo mundo. Assim como, para um corredor de maratona, distâncias menores são “minimizadas”, assim também é fato que, para o corredor de ultramaratonas (em suas várias distâncias de 50km às 24hs, sempre a correr), a maratona também é “minimizada”. Em uma de minhas participações nos 10k no Parque do Carmo, conheci um ultramaratonista que chegara às 7 da manhã para a prova, tendo já corrido 30k até a largada. No final dos 10k disse-me que correria mais 15 até a casa de sua sogra, onde almoçaria. Um ano após encontro-o na corrida do Centro Histórico (9k). Não correria, apenas estava dando suporte a amigos. Sorrindo, levanta a camisa e mostra um imenso corte que atravessava todo o tórax no sentido vertical. Problemas coronários logo após as 24hs de uma corrida em Florianópolis (sic).

Treinadores e corredores sabem que a maratona exige preparo outro que o destinado aos 10k ao à meia maratona. Mais horas de treinamento, exercícios tipificados para longas distâncias e condicionamento físico outro. Médico competente que é, Drauzio Varella seria lido atentamente pela legião de corredores dos 5, 10, 12, 15, 16 e 21.1k, se capítulo a pormenorizar distâncias menores estivesse inserido.  No livro há menção de ter realizado os 10k em treinamento. Apenas fica essa sugestão, que não altera em nenhuma hipótese o prazer e o aprendizado que a leitura de “Correr” trouxe-me. Recomendo-o vivamente.

Today’s post addresses the book “Correr” (Running), written by the oncologist and marathoner Drauzio Varella. I really enjoyed the stories about his marathons around the world, his professional look at the various aspects involving physical fitness, training and problems that may arise, as well as the funny events he experienced during his trainings. Worth reading for runners or anyone who is curious about the subject.