Navegando Posts publicados em outubro, 2015

Lembranças que Permanecem

Aos domingos,
folga de meu pai,
pegávamos o bonde para visitar a tia Olímpia,
irmã e confidente de minha mãe,
em Santana.
Drauzio Varella

Minha neta Ana Clara (23) leu a resenha que fiz do livro “Correr”, de Drauzio Varella (vide blog 03/10/2015). Gostou imenso e teceu comentários. Ana Clara já participou de duas corridas com o avô e se prepara para mais uma, agora com a irmã, Maria Teresa (17). Uma alegria só. Ao comentar o blog, lembrou-se de um livro que apreciou, quando ainda criança, escrito por Drauzio Varella, “Nas Ruas do Brás” (São Paulo, Companhia das Letrinhas – Coleção Memória e História, 2000). Destinado, em princípio, aos miúdos, o livrinho está fartamente ilustrado com desenhos de Maria Eugênia, coloridos e apropriados a cada situação, além de fotos do período, a enriquecer as curtas e deliciosas narrativas. Impressiona vivamente a lembrança fotográfica do autor ao rememorar episódios tão distantes, quão mais verdadeiros se, ao puxarmos por nossa própria memória, fatos bem comuns àqueles que viveram esse período tão especial não pululassem também.

“Nas Ruas do Brás” evoca a infância vivida em bairro operário em que a fábrica se apresenta como um epicentro. Pais, tios, amigos têm suas vidas ou ligadas a uma fábrica ou a alguma atividade de serviço autônomo. Imigrantes italianos ou espanhóis são revividos por Varella em seus hábitos trazidos nessa imigração que se fez necessária. Vivendo modestamente em habitações coletivas, pois geralmente um só banheiro servia a várias famílias. Isso trazia uma série de conflitos cotidianos entre as muitas mães que habitavam espaços restritos, mas tudo, segundo o autor, tinha felizmente chama efêmera e a paz se restabelecia.

O olhar daquele menino que participou de tantas molequices, que corria atrás de balões durante as festividades juninas, que brigava, apesar da pouca idade, com meninos maiores, que estudava, mas sempre atento ao cotidiano, fica com clareza, humor e precisão fixado nessas suas histórias em idade edipiana. Fez-me lembrar leituras percorridas nos meus poucos anos e que me marcaram: “Cuore”, de Edmondo de Amicis (1846-1908),  “Os Meninos da Rua Paula”, de Ferenc Molnár (1878-1952) e “Cazuza”, de Viriato Corrêa (1884-1967). “Nas Ruas do Brás” é narrativa de vida, os três outros romances, de formação com viés memorialista.

Estive a me lembrar, durante a companhia do pueril e agradável “livrinho” de Drauzio Varella, da minha própria infância. Quanta proximidade com a essência daqueles tempos, apesar de meus cinco anos a mais, num período em que as transformações tendiam a se acelerar a cada ano, como de fato aconteceu. As nítidas diferenças de infância vivida em bairro eminentemente operário, onde as dificuldades para a sobrevivência digna eram maiores do que aquelas da Vila Mariana, onde cresci, não descartam tantas identidades características da meninice. Ficaram as lembranças das brincadeiras bem próximas àquelas narradas por Varella, como correr atrás de balões que despencavam dos céus; “pescar” com peneira pequeninos guarus que existiam num córrego límpido próximo à av. Rodrigues Alves, destinados a povoar dois aquários de cimento que tínhamos em casa, assim como pegar sapos, que meu irmão Ives e seu colega Armando levavam para o laboratório de sua escola, Colégio Bandeirantes – o portador de batráquio ou outro pequeno animal para dissecação tinha nota alta garantida! -; fazer pipas triangulares ou hexagonais; rodar pião; descer a av. Rodrigues Alves com carrinho rolimã no asfalto que existia na trilha dos bondes – certo dia, à altura da Rua Rio Grande, bati num poste, daí resultando corte profundo na “canela”, escoriações, hematomas e, pior, a proibição paterna para que jamais voltasse à prática, não sem antes ter recebido boas e doídas chineladas -; pular o muro para jogar bola em casa dos Bogossians; praticar pingue-pongue em casa com meus irmãos e jogo de dominó com o pai. Todas, distrações que se davam nos intervalos dos inflexíveis horários de estudo de piano aos quais meu irmão João Carlos e eu nos dedicávamos com afinco. Lembro-me de ter sempre acompanhado minha mãe à feira livre no Ibirapuera (hoje av. Dante Pazzanese), puxando o carrinho de madeira, daí minha frequência extremamente prazerosa às feiras-livres de sábado na minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Reminiscência mais antiga vem das filas diárias a que minha mãe e os quatro filhos se submetiam para a cota de pão de milho em tempos dos conflitos na Europa. Vivíamos a era do rádio e me recordo do alto falante do quintal de casa anunciar, aos seis de Junho de 1944, a invasão da Normandia pelas tropas aliadas durante a IIª Grande Guerra. Estava eu para completar seis anos dias após. Todos os vizinhos correram para a rua, saudando o acontecimento. Servindo-me de uma frase de Varella, diria que também “aos domingos, pegávamos o bonde para visitar” nossos avós, em Santo Amaro. A foto a estampar caminhão que entregava leite em frascos de vidro era também comum em minha infância, assim como habitual em meu bairro a chegada, uma vez  por semana, de cabras leiteiras, anunciadas, ao descerem a av. Rodrigues Alves, graças aos sinos pendurados aos pescoços. O lixo era recolhido por grandes carroções puxados a cavalo. Nessas comparações, que forçosamente surgiram durante a aprazível leitura, só não havia esse total congraçamento entre a criançada, pois no Brás, segundo Varella, as habitações proporcionavam esse salutar convívio, o que era mais difícil em meu bairro, pois muitas residências eram construídas em terrenos espaçosos e a avenida não possibilitava peraltices da criançada. Diria que o relacionamento era mais íntimo, familiar.

O que torna o relato de Drauzio Varella tão encantador é o fato de que em todos os breves capítulos há a presença de algumas argutas observações, normalmente esquecidas graças ao acontecimento efêmero, mas que ficaram presentes na memória do médico oncologista. Reteve lembranças dessas casas privadas de conforto e seus corredores escuros, pormenorizando os espaços partilhados que por vezes levavam às desavenças, reparadas logo em seguida; a amizade com miúdos da sua idade que participavam das mesmas peraltices; a gastronomia que imigrantes e seus descendentes mantinham como elo às terras distantes e tantas outras situações de interesse, inclusive para a compreensão de período crucial da cidade. Acompanha com ternura e inocência o longo definhar de sua mãe, que morreria precocemente. Fez-me pensar no relato do grande pianista Wilhelm Kempff (1895-1991) ao viver situação bem próxima, quando da morte de sua avó (Cette Note Grave, Paris, Plon, 1955).

Drauzio Varella deve ter paulatinamente anotado todas as situações por que passou. É comum, mormente sur le tard, uma névoa encobrir a realidade vivida, o que torna relatos suspeitos. A precisão, o pragmatismo e, paradoxalmente, o encantamento que flui das poucas páginas de “Nas Ruas do Brás” testemunham um período histórico da cidade e revelam hábitos, costumes e tradições de um dos mais acarinhados bairros de nossa megalópole. Foi com prazer, curiosidade e inevitáveis comparações que li “Nas Ruas do Brás”, que tão intensa impressão deixou em Ana Clara e em seu avô, que carinhosamente agradece a indicação.

My comments on the book “Pelas Ruas do Brás” (On the Streets of Brás), written by the oncologist Drauzio Varella, in which he recalls delightful moments of his childhood spent in the forties at Brás, a traditional working class district in São Paulo, predominantly inhabited by Italians and their descendants. Revealing habits, traditions and social conditions of a historical period of São Paulo, the author’s remembrances made me feel dominated by emotions, since they reminded me of my own childhood lived in the same city around the same time.

Post Scriptum

Recebi de meu dileto amigo, o musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, que abrilhantou o ciclo “Viagens e História” promovido pela Unibes Cultural e pelo Consulado Geral de Portugal em São Paulo, a camisa de seu time de eleição em Portugal, Vitória de Guimarães. Tive o prazer de correr com a gloriosa camisa na Corrida Shopping Aricanduva deste último dia 25 de Outubro.

 

 

 

Uma Obra Singular

Mas vivos que são?
Mortos incompletos.
José Gomes Ferreira (1900-1985)

Com o texto “Em torno de Canto e de Amor” encerramos o tríptico  dedicado ao ciclo que a Unibes Cultural e o Consulado Geral de Portugal em São Paulo realizaram entre os dias 13 e 15 de Outubro, tendo como tema fulcral a apresentação da primeira audição mundial dos 12 Cantos Sefardins (1969) compostos por Fernando Lopes-Graça para voz média e piano. Dois textos precedentes envolveram essa magistral obra e Viagens na Minha Terra para piano solo do notável compositor português, ficando reservado ao musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso a autoria do primeiro e a mim, do segundo. Esse terceiro que escrevi completa a publicação realizada pela Unibes, competentemente ilustrada com belas fotos de aldeias e vilas portuguesas, a ter como tema central “Viagens e História”.

Após palestra “Em torno de ‘Canto de Amor e de Morte’ de Fernando Lopes-Graça – Mors certa, hora incerta “,  interpretei o Epitáfio para o Autor, duas das nove Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte. A anteceder a quarta Música Fúnebre, sob o título Morto, José Gomes Ferreira, vais ao nosso lado, a mezzo soprano Rita Morão Tavares cantou Jornada, do notável poeta, obra que integra o conjunto das Canções Heróicas de Lopes-Graça. Acompanhei-a ao piano. O tema de Jornada está presente, sob várias roupagens, no In Memoriam ao poeta amigo.

Canto de Amor e de Morte mereceu destaque especial em textos publicados no meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” (Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2011. Edusp, São Paulo, 2014).

O segmento Morte na criação de Fernando Lopes-Graça apresenta-se como um dos mais frequentados. Dir-se-ia que uma atração clara, direcionada ao fim da existência, estaria presente desde os primórdios da vida adulta. Se Epitáfio para o Autor - terceira peça para piano do tríptico específico de 1930 -, já assinala ao músico, nos seus 24 anos, qual a inscrição em futura lápide, pondere-se que o tema deveria acompanhá-lo ao longo da vida.

A trajetória de Fernando Lopes-Graça (1906-1994) foi plena de sentimentos antagônicos. Sua música é consequência de constante luta interior frente a obstáculos exteriores que entendia serem necessários remover e à impossibilidade de vencer tantos deles, entre os quais os vários períodos em prisão, mercê de suas convicções ideológicas contrárias ao regime salazarista. Todos, provas de estresses por que passou. As inúmeras vicissitudes foram atenuadas pela proximidade com o povo mais simples das aldeias ou vilarejos e com a criação de um cancioneiro singular, constituído pelas canções de raiz harmonizadas pelo compositor, mas também criações outras do mestre, como marchas, canções heroicas, dramáticas e bucólicas. Soube selecionar os poetas, tantos deles seus amigos. Como regente-coral, percorreu Portugal a difundir riquíssimo repertório, que atendia diretamente aos anseios do povo menos afortunado. Sob outra égide, Lopes-Graça contemplaria em suas composições os mais diversos gêneros, evidenciando maestria e criatividade ímpar.

Constata-se, no vasto catálogo de Lopes-Graça, o direcionamento instrumental diversificado na temática morte. Mencionando-se as denominações explícitas, tem-se: Marcha quase Fúnebre (canto e piano – 1935); História Trágico-Marítima (voz e orquestra – 1942-1943), com texto de Miguel Torga, Cinco Estelas Funerárias (orquestra – 1938-1948), Onze Encomendações das Almas (coro misto a capella – 1950-1953), In memoriam Manuela Porto (coro a capella – 1950), Inscrição para o Túmulo de uma Donzela (canto e piano – 1950), O túmulo de Manuel de Falla (coro a capella 1961), Canto de Amor e de Morte, versões para quarteto de cordas e piano – 1961 e para orquestra – 1962), O túmulo de Villa-Lobos (quinteto de sopros 1970),  Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal (vozes solistas, coros e orquestra – 1976-1979).

Quanto ao piano solo, seu instrumento eleito, Lopes-Graça privilegia-o com vários títulos significativos: Três Epitáfios (1930), Canto de Amor e de Morte (original para piano – 1961) e as nove Músicas Fúnebres (1981-1991). Considere-se que o 11º dos 24 Prelúdios tem como título Fúnebre e que Préstito Fúnebre é a quinta peça da sexta das oito suítes progressivas  In Memoriam Béla Bartók (1960-1975), assim como Pranto à Memória de Manuela Porto, a quarta das oito Bagatelas (1939-1948), evoca o passamento da homenageada.

O meu interesse por Canto de Amor e de Morte (1961) em seu original para piano solo surgiu após instigante nota na “Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes Graça”, que foi concluída e teve acréscimos com informação e documentação várias de Romeu Pinto da Silva, na qual o estudioso insere que, meses antes de sua morte, em 1994, Lopes-Graça decidiu manter Canto de Amor e de Morte (original para piano) interditada para execução. A seguir ao original, Lopes-Graça faria duas versões, para quarteto de câmara e piano (1961) e para orquestra (1962). Solicitei cópias a Romeu Pinto da Silva, responsável pela fundamental “Tábua Póstuma…”, e que tem o mérito, inclusive, de colher, durante anos de convívio, intenções do músico nascido em Tomar. Gentilmente me enviou reproduções fotocopiadas dos três manuscritos em questão. Considere-se inicialmente que Lopes-Graça, ao realizar as duas versões de Canto de Amor e Morte para piano, já as deveria ter em mente num sentido de expandir a criação essencial. Ter abandonado o manuscrito original em sua configuração básica, a admitir rasuras e palavras concernentes às correções que deveriam ser feitas, anotar com firmeza quantidade abundante de dedilhados em segmentos precisos, a contrapor uma ainda provável indecisão no que tange outras indicações, teriam levado Lopes-Graça já a entender Canto de Amor e de Morte como uma obra que ultrapassaria, em sua visão pessoal macroscópica, os limites do piano. As inserções na página de rosto do original para piano das palavras “inutilizar” e da frase “há versão de câmara e versão de orquestra”, com caligrafia hesitante – tardias? – fariam supor  que o autor já estivesse satisfeito com a expansão, não retornando ao material primeiro.

A leitura do manuscrito de Canto de Amor e de Morte para piano, primeiro momento do pensar criativo do autor vertido para o papel pautado, trouxe  nessa  vestimenta inicial uma série de problemas. As rasuras tornaram-se menos importantes do que o termo “corrigir”, escrito pelo mestre tomarense em tantos segmentos. As notas colocadas no pentagrama no jorrar da criação, inúmeras vezes inseridas de maneira a possibilitar a dúvida, a ausência de muitos sinais referentes à agógica, dinâmica e articulação – presentes nas versões -, igualmente a suscitar outros questionamentos, tornaram imperativo o cotejamento desse primeiro impulso com os manuscritos copiados cuidadosamente por Lopes-Graça para as versões transcritas adequadamente e aprovadas para serem executadas. Sob outro aspecto, concernente a uma das características da anima, as indicações metronômicas da versão camerística serviram de orientação quando há ausência dessa marcação no original. Seria, contudo, a imensa possibilidade decorrente do som do quarteto e dos instrumentos de orquestra que faz entender a magia do manuscrito original, momento em que ideias “amplificadas” já se mostravam subjacentes. Só após o pormenorizar esses aspectos fulcrais da leitura foi possível verificar que Canto… está absolutamente completo, a não faltar rigorosamente nada essencial. Há apenas pequena diferença no número de compassos, pertinentes se considerarmos as destinações. Sob égide outra, já prefigura o original todos os anseios timbrísticos que vieram a partir da instrumentação. Pode-se entender o ‘orquestral’ em tantas intenções no Canto… primeiro. Essa assertiva não apenas dimensionaria uma visão abstrata não desprovida de emoção, mas também a longa permanência nas baixas intensidades, evidenciando mais agudamente as dissonâncias mínimas e os contrastes dinâmicos. A de-dinamização prolongada em segmentos longos e lentos de Canto… implicaria um cuidado diferenciado quanto à interpretação. O todo da criação primeva indicaria sensível percepção do equilíbrio, a produzir em Canto de Amor e de Morte, no original para piano, efeitos desconhecidos em outras obras de Lopes-Graça.

A leitura de dois textos emblemáticos, escritos por Jorge Peixinho (1940-1995) e Mário Vieira de Carvalho a respeito de Canto de Amor e de Morte (1961) em sua versão camerística com piano, leva o leitor a querer conhecer mais aprofundadamente essa obra. O porquê dessas menções assinadas por duas figuras essenciais na modernidade musical portuguesa? Lembre-se que ambos desconheciam o original para piano. Canto… pairaria no cimo da produção musical em toda a história da música em terras lusíadas, segundo os ilustres autores. Em análise competente, o compositor Jorge Peixinho observa com contundência: “O Canto de Amor e de Morte é, de fato, uma cúpula na música portuguesa: o ponto final de uma dialética entre diatonismo e cromatismo, resolvida ainda no âmbito de um contexto tonal levado às últimas consequências e por isso mesmo expressão dramática da incapacidade de síntese que só uma nova organização do espaço sonoro poderia atingir; e, ao mesmo tempo, a obra mais consequente e coerente na relação entre os diversos níveis de organização que a música portuguesa, com toda a verossimilhança, terá alguma vez logrado” (1966). Mário Vieira de Carvalho busca captar esse de profundis que caracteriza a obra: “Movimento em suspensão. Profunda tristeza.  Introspecção pungente. Valeram a pena o sonho, a luta, a esperança? A experiência íntima da pessoa que sofre, do artista que se põe em causa e à sua trajetória e ao seu destino, do cidadão frustrado pelo falhanço de alternativas socialmente libertadoras – é essa experiência íntima, onde tudo se mistura e tudo se condensa num sofrimento maior, que está incorporada em cada nota do Canto de Amor e de morte” (2006).

Canto de Amor e de Morte torna-se, numa apreensão técnico-pianística, glossário de fórmulas existentes ou que percorreriam outras criações. Detectam-se na obra elementos recorrentes e vindouros. Poder-se-ia acrescentar, sob égide outra, que há a presença de um idiomático tipificado, atuante na obra de Lopes-Graça destinada ao piano quando a temática é a morte. Processos que caminham desde os Três Epitáfios de 1930 estariam a demonstrar um arquivo técnico-pianístico. A proposta para o terceiro dos Epitáfios – Para o Autor - não anunciaria a presença da morte, acompanhante do compositor em sua trajetória como homem, músico e pensador, mors certa hora incerta? Alguns motivos – ou mesmo células geradoras – que tendem ao desenvolvimento estariam a evidenciar que Lopes Graça tem impregnado esse código voltado à morte, sendo possível supor que a ideia, ao surgir, já encontraria formatações definidas aprioristicamente. Se algumas são originais em Canto… , encontrar-se-iam sur le tard nas Músicas Fúnebres (1981-1991), sob diferentes vestimentas.

Uma situação singular surgiu quando pensei gravar e apresentar Canto de Amor e de Morte para piano solo. Pode o intérprete desrespeitar a intenção do compositor que assinalou – seria possível supor -  tardiamente “inutilizar” no frontispício do manuscrito? Esse questionamento esteve presente de maneira até conflitante, mercê da leitura prévia do que reza a Tábua… concluída por Romeu Pinto da Silva. Ao fim da leitura de Canto de Amor e de Morte, na certeza de que ela estava rigorosamente conclusa, corroborava os pensamentos de ilustres predecessores no julgamento da obra na versão camerística, Jorge Peixinho e Mário Vieira de Carvalho. Acrescentaria que não apenas é um dos cimos da criação em Portugal, como uma das mais significativas composições para piano solo da segunda metade do século XX em termos mundiais. Numa outra visão, considerando o exposto na Tábua…, que introduziu-me em incômoda posição de consciência, mormente se considerar o afeto pessoal que sempre tive pelo grande mestre Lopes-Graça desde o convite que ele me fez para um primeiro recital na Academia de Amadores de Música em Lisboa, no distante 1959, fiquei mergulhado num turbilhão de ideias contraditórias. Ao me decidir por apresentá-la em público em Maio de 2010 em várias cidades portuguesas, sendo que a primeira se deu no templo de Lopes-Graça, a Academia de Amadores de Música em Lisboa, fui levado por duas decisões após longos solilóquios: pode uma obra- prima ser escondida? Veio-me pensamento expresso em O Nome da Rosa, de Humberto Eco, “a ciência usada para ocultar, ao invés de iluminar”. Qual a razão de Lopes-Graça, um memorialista nato, não ter destruído de vez o original para piano, recomendando a Romeu Pinto da Silva que mantivesse esse primeiro Canto…  sem opus? Poetas, escritores, pintores e compositores destroem tantas vezes criações que não lhes agradam. Não rasgada ou jogada ao fogo, fatalmente Canto… iria para o acervo do compositor no fundamental Museu da Música Portuguesa, o que realmente ocorreu. Num futuro sem data serviria para possível tema de mestrado ou doutorado, com envolvimento maior ou menor por parte de um orientando. Antecipei-me, é certo, jamais movido por interesse outro que não a qualidade ímpar de Canto de Amor e de Morte para piano solo, como também pela mais profunda admiração, respeito e gratidão pelo extraordinário compositor Fernando Lopes-Graça.

This week’s post ends the triptych devoted to “Viagens e História”, cycle of lectures and recitals promoted by Unibes Cultural and the Portuguese Consulate-General in São Paulo with focus on the Portuguese composer Fernando Lopes-Graça. This final chapter addresses Lopes-Graça’s masterpiece ‘Cantos de Amor e de Morte’, that was composed in 1961 and received its Brazilian premiere during the course of the cycle. For the first time on the American continent an event of such dimension has been dedicated to the most outstanding name of classical music in Portugal in the 20th century – or even perhaps in its history.

 

 


Uma das Obras Essenciais Apresentadas no Ciclo da Unibes

Assim o povo,
que tem sempre melhor gosto

e mais puro do que essa escuma descorada
que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade,
os seus passeios favoritos são a Madre-de-Deus
e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas.
Almeida Garrett (1799-1854)
(Viagens na Minha Terra)

No blog anterior apresentamos o texto impecável do musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso sobre os 12 Cantos Sefardins, de Fernando Lopes-Graça. A obra fundamental do compositor teve a primeira audição mundial neste último dia 15 de Outubro. Às melodias tradicionais sefarditas, Lopes-Graça estabelece como acompanhamento uma escritura por vezes transcendente no aspecto de entrosamento, pois propõe uma série de soluções complexas nessa combinação simplicidade melódica e refinadíssima composição pianística. O que poderia parecer antagonismo insolúvel resulta numa qualidade ímpar quanto à possível “união dos contrários”.

Os três textos que constam do opúsculo distribuído graciosamente pela Unibes não são propriamente notas de programa, geralmente textos informativos retirados de enciclopédias ou livros afins. Resultam dos aprofundamentos a que se propuseram Pedrosa Cardoso (Cantos Sefardins) e este músico para as obras mencionadas no título do post. Transcrevo, pois, excertos do texto sobre Viagens na Minha Terra, obra apresentada no programa que incluía os 12 Cantos Sefardins, interpretados em primeira audição mundial com recepção calorosa por parte do seleto público.

Apresentei Viagens na Minha Terra em São Paulo no ano de 2003 e em várias cidades portuguesas no mesmo ano, tendo gravado a magnífica coletânea, juntamente com outras importantes obras de Lopes-Graça, para CD do selo Portugaler. Escrevi o texto do encarte que reproduzo no presente blog. No recital do último dia 15 de Outubro tivemos datashow preparado pelo competente musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso (Universidade de Coimbra), a particularizar “didaticamente” cada uma das 19 aldeias e vilas percorridas por Lopes-Graça.

Viagens na Minha Terra, cujo título e expressiva epígrafe são extraídos da obra homônima de Almeida Garrett, serve como homenagem ao grande escritor português e pretexto para o compositor penetrar Portugal em uma de suas essencialidades. Tão logo aceitas as iniciais, Lopes-Graça empreende outras viagens, percorrendo caminhos geográficos sob a égide da observação sensível e evocativa, sempre a ter esse povo da tradição como desiderato maior. Sente a grandeza de Portugal, como escreve em fevereiro de 1959: “[...] estímulo para novas partidas, para novas viagens neste continente ainda tão mal conhecido que é a música portuguesa”.

Viagens na Minha Terra expõe, em segmento expressivo da coletânea, o culto voltado ao religioso. Sete das dezenove “pequenas peças para piano sobre melodias tradicionais portuguesas”, subtítulo do álbum, têm a participação do povo da pequena cidade, do vilarejo ou da aldeia no intrínseco histórico de sua religiosidade, nessa prática dos ritos populares, acalentada diariamente pelo campesino ou citadino mais simples, no aguardo do evento que sempre ocorrerá, mesmo que seja anual. Existindo a preservação da tradição, o tempo escoa sem ser sentido. Procissões, rezas, folguedos sacroprofanos incorporam-se à série de peças, dando-lhes homogeneidade. Nessa atmosfera objetivo-subjetiva, Lopes-Graça descreve sugerindo, como a convidar o ouvinte àquilo que foi captado pelos sentidos e reinterpretado pela técnica apurada.

O ouvinte seguirá a procissão de penitência em São Gens de Calvos; a romaria do Senhor da Serra de Semide e mesmo a romaria de Póvoa de Val de Lobo, onde troam os adufes profanos; acompanhará o gestual e os sons do lundum em Figueira da Foz e também o fandango em Alcobaça; ouvirá o Bendito em São Miguel d’Acha; os cantos dos festejos de Reis em Rezende ou a velhinha de Pegarinhos em sua solidão, a expressar-se através de antiga canção de roca; contemplará o singelo Natal no Ribatejo; lançará um olhar às faldas da Serra da Estrela, à Citânia de Briteiros e às terras do Douro, e ainda ao ritmo da barcarola, conhecerá a Ria de Aveiro; presenciará as cenas campesinas em Monsanto da Beira, quando apanham a margaça; em Setúbal, onde comem a bela laranja, e em Vinhais, quando escutam um velho romance; constatará a ausência das que foram moiras encantadas em Silves. Todo esse mágico desfilar guiado pelas mãos de um autor autêntico.

Quanto ao idiomático técnico-pianístico, há profunda consistência intervalar e a utilização constante de oitavas paralelas nos movimentos lentos, enfatizando melodias, quintas, segundas maiores ou menores; apojaturas expressivas; o elemento percussivo, como rítmica complexa, a aparente aridez do rústico, rudeza poética, configurando determinadas características estilísticas do autor.

Viagens na Minha Terra foram dedicadas ao grande pianista brasileiro Arnaldo Estrela (1909-1980), que comungava de ideais sociopolíticos com o compositor português.

Há que se considerar, sempre, o entusiasmo de Lopes-Graça quanto às viagens em Portugal para recolha do material da música popular tradicional. Tinha em mente, no decênio da criação das Viagens…, a difusão dessa recolha: “[...] tendo eu regressado com um pequeno pecúlio de canções saborosíssimas, umas, outras de uma profundidade de expressão rara, todas oferecendo mais ou menos, por este ou aquele aspecto, matéria de meditação aos estudiosos do assunto”.

A revisitação às Viagens… dar-se-á em 1969, quando Lopes-Graça orquestrará todas as pequenas peças do álbum. Estaria a demonstrar o carinho para com a obra e esse novo debruçar propicia o descortino de todo um universo timbrístico, quiçá existente em 1953-1954, mas que, mercê do “processo de amadurecimento progressivo”, enriquece-se de concepções imaginárias outras. Maurice Ravel voltou-se para os Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, deles oferecendo uma leitura orquestral. Lopes-Graça faz o mesmo consigo próprio. Em ambos os casos, temos pequenos quadros musicais. Nas duas situações, a orquestra apenas ratifica a qualidade das obras pianísticas.

Lembrar Lopes-Graça é a certeza de nos depararmos com o grande gênio musical português do século XX em sua absoluta abrangência multifacetada, um dos vultos que melhor soube amar as terras e o povo de Portugal.

Brief considerations on the great composer Fernando Lopes-Graça’s works “Viagens na Minha Terra” e “12 Cantos Sefardins”, both presented at my piano recital held last 15 October in São Paulo, the latter with the participation of the Portuguese mezzo soprano Rita Morão Tavares and the professor José Maria Pedrosa Cardoso.