Tem-se que Preservar o Espírito de Congraçamento

E agora, no coração da noite como um vigia,
ele descobre que ela mostra o homem:
apelos, luzes, inquietude.
Essa simples estrela na sombra:
o isolamento de uma casa. Uma luz se apaga:
o lar se fecha sobre seu amor.
Antoine de Saint-Exupéry
(Vol de Nuit)

Dá-me prazer inserir no blog um conto de Natal nesse período onde almejamos a paz, a reunião de parentes e amigos no lar aconchegante, o destino mais ameno dos infortunados, o fim do pesadelo político que nos assola. Como bálsamo para a cristandade, o Natal é a mais bela das datas, pois evoca o nascimento de Cristo. Contos de D. Henrique Golland Trindade, arcebispo de Botucatu, e de Idalete Giga, especialmente para o blog, enriqueceram posts natalinos anteriores.

Nós elegemos nossos autores e, à medida que o acúmulo dos anos nos dá a possibilidade do conhecimento de tantas obras do passado e recentes, a aventura extraordinária da leitura mostra-se uma das mais apaixonantes de nossas vidas. Ler e reter para sempre a essência dos livros escolhidos. Das muitas centenas de livros percorridos intensa e inteiramente pelo olhar e assimilados pela mente, um número determinado de compêndios constitui nossa biblioteca essencial.

Ao longo dos anos, quantos não foram os blogs nos quais a obra de Saint-Exupéry (1900-1944) foi mencionada, tanto na interpretação de segmentos como no empréstimo de sábias epígrafes extraídas da monumental Citadelle, um dos livros referenciais de minha vida? Tenho-o à minha cabeceira, pois o fervor está presente em toda a obra, os caminhos que conduzem o homem a Deus e os valores essenciais do viver, como família, relação humana, atividade profissional e, a pairar sobre tópicos fundamentais, a responsabilidade. Não são poucos os que consideram Citadelle como a bíblia do século XX.

Saint-Exupéry em seus escritos busca menos a contundência literária e mais o aprofundamento no anseio moral. Literatura como instrumento para aperfeiçoar a civilização. Preferencia personagens atemporais. Preocupa-o o destino humano e o condicionamento do homem, como bem pondera sua irmã, Simone de Saint-Exupéry. Tive o maior privilégio de, ao correr de ano e meio, durante meus estudos em Paris, tê-la ouvido na leitura dos textos esparsos de Citadelle, que Simone organizara com outros especialistas. No apartamento de seu primo-irmão, o Baron André de Fonscolombe, todas as quartas-feiras à noite, Simone apresentava gravações feitas pelo irmão e que seriam datilografadas pela secretária do escritor-piloto nos dias subsequentes. Foram cerca de 1.000 páginas reestudadas, que deveriam compor Citadelle, que viria a público em edição primorosa (1959) após a primeira, de 1948. Trabalho hercúleo dos organizadores das oeuvres de Saint-Exupéry.

Na narrativa, constante do capítulo CXXII de Citadelle, o Natal é evocado. A pena sensível, lírica e onírica do autor capta a essência essencial da noite mágica. Há muito da parábola nas narrativas de Saint-Exupéry.  No breve e profundo relato da noite de maravilhamento que a cristandade cultua, o autor penetra num universo metafórico que lhe é sempre caro. Como mestre de um Império atemporal, herança de seu pai, Saint-Exupéry, pela voz do herdeiro imperial, escreve sobre um de seus soldados, a buscar motivação para morrer.

Eis o pungente segmento  referente ao Natal, encontrável no capítulo mencionado:

“Estou a me lembrar do soldado que desejava morrer, pois apreendera, através do canto de uma lenda nórdica que lhe vinha vagamente à memória, que em determinada noite do ano os habitantes caminham sobre a neve fofa, sob o céu pleno de estrelas, em direção às casas de madeira iluminadas. E se, após o percurso, entrares em uma sala plena de luz e colares o rosto nos vidros das janelas, saberás que a claridade vem de uma árvore. E te dirão que é uma noite que tem o gosto de brinquedos de madeira envernizada e o aroma de vela acesa. Dir-te-ão, igualmente, que os semblantes dessa noite são extraordinários. Todos esses rostos estão à espera de um milagre. E verás que todos os velhos, que retêm a respiração e fixam os olhos nas crianças, estão sujeitos ao acelerar do coração. Algo intangível e de valor inestimável percebe-se no olhar dessas crianças. Porque durante todo o ano tu edificaste sonhos, através da espera e mais, pelas narrativas e promessas, mormente tuas árias ouvidas e tuas alusões secretas e a imensidão de teu amor. E agora, tu vais retirar da árvore um objeto simples qualquer de madeira envernizada e dá-lo ao pequenino, segundo a tradição de teu cerimonial. E eis que o instante chega. Respiração suspensa de todos. E a criança tem as pálpebras semi fechadas, pois foi acordada abruptamente para o evento. E ela está lá, sobre teus joelhos com aquele odor típico de criança que acaba de ser acordada, mas que, ao te abraçar, emana algo que é fonte para o coração e sacia a tua sede. (O maior tédio das crianças é verem-se despojadas de uma fonte que lhes é inerente, mas para elas desconhecida, embora todos os que envelheceram no coração nela venham beber, a fim de reconquistar a mocidade perdida). Há uma pausa para os beijos trocados. A criança olha a árvore e tu fixas o olhar nesse seu gesto. Porque se trata de colher uma surpresa encantada, como uma flor rara que nascesse uma vez ao ano na neve.

És tu um privilegiado ao observares uma certa cor de olhos que se tornam sombrios, pois a criança abraça seu tesouro, para toda ela se iluminar no seu interior tão logo o presente é tocado, como as anêmonas- do-mar. E ela fugiria se tu a deixasses partir. E não há qualquer esperança de a alcançar. Não lhe fales, ela não mais ouve.

Essa atitude é passageira e mais leve do que uma nuvem sobre o campo e não venhas tu me dizer que ela não tem peso. Mesmo que ela fosse única recompensa de teu ano e da transpiração de teu trabalho e de tua perna perdida na guerra, e de tuas noites de meditação e afrontas e de sofrimentos suportados, eis que ela te pagaria e te maravilharia, pois tu ganhas com essa troca. Porque não há razão para raciocinar sobre o amor pela propriedade, sobre o silêncio do templo, tampouco sobre este instante incomparável.

O certo é que meu soldado queria morrer. Ele que vivera, que sob o sol e sobre a areia não conhecera qualquer árvore de luz e vagamente sabia a direção do Norte, mas ouvira dizer que determinada conquista em algum lugar pusera em risco um certo aroma de vela e uma certa cor dos olhos e que os poemas lhe chegaram tenuemente, como o vento traz o odor das ilhas. Não conheço uma razão melhor para morrer”. (tradução: JEM).

A tradução livre na segunda pessoa, a mais adequada no caso, teve que apreender “possíveis” intenções do autor, pois não raras vezes há que se prospectar num de profundis pleno de mistérios, onde a metáfora sugere interpretações várias. Se difícil foi quando da primeira edição francesa em 1948, maior aprofundamento teve a edição de 1959 (A. de Saint-Exupéry. Oeuvres. Paris, Bibliothèque de la Pleiade). A edição portuguesa data de 1996 (Cidadela. Lisboa, Editorial Presença. Prefácio e tradução: Ruy Belo).

Finalizando incluo poema recebido nesses dias, de minha dileta amiga e gregorianista portuguesa Idalete Giga. Escreveu após ver na internet foto recente de crianças em “trabalho escravo” na emergente Índia, como afirma.

Presentes de Natal

Quero pegar ao colo estas crianças
e segredar baixinho ao seu ouvido:
não chorem mais meus pequeninos
Venham comigo
Tenho uma Escola-Mágica só para vós
Vamos brincar
à cabra-cega
à macaca
às escondidas
ao pião
Vamos fazer balões coloridos
com espuma de sabão
Depois vamos descobrir
o nome das flores
das árvores
dos pássaros
que estão esperando por nós
Corram, corram, corram
Venham comigo
Não tenham medo
Não chorem mais meus pequeninos
Não chorem mais
Não chorem mais

A todos os leitores que me têm prestado generoso estímulo, desejo um Natal pleno de Paz e congraçamento.

On Christmas season, I publish a story extracted from Citadelle, by Saint-Exupéry, my bedside book. With delicacy, lyricism and dreamlike mood, he captures the magic of Christmas night through metaphors that allow different interpretations. Also included is a poem sent at the very last moment by Idalete Giga ─ a very dear friend, teacher and Gregorianist living in Portugal: simple lines dedicated to children who go through pain and suffering in the world.
To all my readers, I wish a season filled with beautiful moments and cherished memories.