Sublime soneto de Camões a inspirar o compositor Eurico Carrapatoso
Vê bem, se da razão se não desvia,
O altíssimo Ser, puro e divino,
que tudo pode, manda, move e cria;
Luís Vaz de Camões
(Terceto extraído da Elegia – “Se quando contemplamos as secretas”, Rimas, edição de 1616)
Foram inúmeros os posts em que comentei o fluxo que leva à obra de arte. Há a ideia, origem originária de qualquer criação. Haverá sempre o impulso, que pode ter os mais variados estímulos, para que o criador apreenda a mensagem e a concretize. Para o músico, o papel pautado a receber o resultado da ideia que se amalgamou a todo seu acervo cognitivo da área e, é de se louvar, de outras também, torna-se consequência natural da qualidade, se talento houver. Hoje, o teclado do computador recebe o jorro criativo através de vários programas disponíveis. Fixada e havendo qualidade, a obra ganha dimensão e terá o provável destino da interpretação a dar-lhe a possibilidade da recepção acolhedora do elo final, o ouvinte. A obra de arte musical, tantas vezes escondida através dos séculos, pode ressurgir com força inaudita, redescoberta, estudada e aceita. Apesar de fazer críticas insistentes ao repertório repetitivo, jamais me posicionei contra a qualidade dessas criações. Bato-me e continuarei a lutar pela inclusão de tantas e tantas obras magnificentes que têm de encontrar o espaço devido, primeiramente na mente de intérpretes e professores. Sei que o embate é quase que intransponível na atualidade, mas é necessário insistir. A ação de empresários e sociedades de concerto, amantes do status quo, impede essa ascensão de composições do passado à contemporaneidade que causariam o maravilhamento. Forçar o novo como atenuante das consciências é solução paliativa.
Em blog relativo à digressão em Portugal, escrevi sobre almoço com dois amigos preciosos, José Maria Pedrosa Cardoso e Eurico Carrapatoso, musicólogo e compositor, respectivamente, ambos professores. Também mencionei a obra monumental que está sendo gestada por Eurico. Será o novo a brandir espaços!!! Dois fatores essenciais, já mencionados em blog anterior, chamaram-me a atenção. Um primeiro relacionado à síntese da síntese representada pela Missa sem Palavras (cinco Estudos Litúrgicos) para piano, de Carrapatoso, que fará parte de minha última gravação de Estudos para piano, a ser lançada em França num CD previsto para 2017. CD contrastante, a ter os magníficos Études Cosmiques + Outono Cósmico de François Servenière, extremamente pianísticos e de plasticidade ímpar, o Iterum Venturus de Gheorghi Arnaoudov, grande compositor búlgaro que explora as fronteiras possíveis do timbre sob a aura de uma profunda espiritualidade, assim acredito, e mais o telúrico Étude V – Die Reihe Courante, de Jorge Peixinho. Missa sem palavras profundamente intimista. Diria que o segundo fator a me causar impacto relaciona-se ao opposite, pois se a Missa sem palavras tem o “aparente” despojamento que encobre uma riquíssima trama polifônica, creditando-se soberanamente uma inspiração hors concours, a narrativa de Carrapatoso, durante nosso almoço, sobre uma composição rigorosamente antagônica sob o aspecto de recursos a serem utilizados, quando massas corais e seis órgãos – da Epístola, do Evangelho, de São Pedro de Alcântara, de Santa Bárbara, do Sacramento e da Conceição – estarão “benfazejamente inundando” a Basílica de Mafra no dia 17 de Dezembro próximo com sons seráficos, deixou-me admirado.
A inspiração primeva, insofismável e intransferível surgiria para Eurico do absoluto soneto “Dece do Ceo” de Luís Vaz de Camões. O compositor me escreveria no dia seguinte: “Aqui te envio o soneto camoneano, solar e sonoro como um sino de Mafra”. Todo o soneto misticamente construído para o verso a finalizar e a traduzir a transcendência do homem frente ao mistério insondável: Se o homem quis ser Deus / que Deus seja homem. O derradeiro verso a penetrar as entranhas da mente de Eurico e a jorrar como lava vulcânica sonora. O soneto encanta também pela presença desse diálogo com um alguém imaginário. O pleno sentido do cristianismo no que concerne à Encarnação do Filho de Deus. Despoja-se o imenso vate e o Filho é cantado na proverbial humildade:
Dece do Ceo imenso Deus benino
Para encarnar na Virgem soberana.
“Por que dece Divino em cousa humana?”
“Para subir o humano a ser divino”.
“Pois como vem tão pobre e tão minino,
Rendendo-se ao poder de mão tirana?”
“Porque vem receber morte inumana,
Para pagar de Adão o desatino”.
“Pois como? Adão e Eva o fruto comem,
Que por seu próprio Deus lhe foi vedado?”
“Si, porque o próprio ser de Deoses tomem”.
“E por essa razão foi humanado?”
” Si, porque foi com causa decretado:
Se o homem quis ser Deus, que Deus seja homem”.
O impacto foi fulminante sobre o músico, utilizando-me de palavra dita por Eurico, “fere” de tão sublime.
O Palácio-Convento Nacional de Mafra, ao qual pertencem a notável Basílica e a renomada Biblioteca, é monumental. Sua construção iniciou-se em 1717, sob o reinado de D. João V. A Basílica possui seis órgãos desde a regência de D.João VI, que os encomendou. Foram construídos nas fronteiras dos séculos XVIII e XIX. Dão uma imponência ímpar à Basílica e tiveram restauração relativamente recente.
Finalizando, incluiria o plano “arquitetural” da criação de Eurico Carrapatoso. Escreve-me: “Eis a informação que me pediste: A minha obra ‘Dece do Ceo’ será criada em 17 de Dezembro de 2016, na Basílica de Mafra. Foi composta para Soprano Solo, Coro de Câmara (ca.20 vozes), Coro Grande (ca.150 vozes), Coro de Crianças (ca. 90 vozes) e para os seis órgãos históricos daquele espaço singular. Resulta de uma encomenda da Academia de Música de Santa Cecília, uma instituição ilustre de ensino geral e integrado de música, considerada como a melhor escola portuguesa Deseja-me sorte.
Abraço amicíssimo.
Eurico”.
Em torno do imenso Camões e da obra musical de Carrapatoso pude apreender as dimensões de um último verso de “Dece do Ceo” através da compreensão maiúscula de um dos maiores nomes da composição em Portugal.
One of the tracks of my new album to be released in 2017 is “Missa sem Palavras”, by Eurico Carrapatoso, one of the greatest names of Portugal’s contemporary classical music. In this post I address one of his new works, to be premiered on 17 December 2016 in Mafra. Commissioned by Academia Santa Cecília de Música, it has been written for soprano, chamber choir, large mixed choir, children choir and the six pipe organs of the Basilica of the Palace of Mafra. It was inspired by Luís de Camões’ (1524/5-1580) religious sonnet “Dece do Ceu”, transcribed here. Camões is generally regarded as the greatest poet of the Portuguese language.