Alguns aspectos relacionados à interpretação ao piano
“É para a alma que a música deve falar”.
“Ao compor música, não busquemos lembrar as regras
que poderiam deixar nosso talento escravo”.
“A verdadeira música é a linguagem do coração”.
“Eu ousei, tive a felicidade, eu continuei”.
Frases de Jean-Philippe Rameau
Quatro posts foram dedicados a Jean-Philippe Rameau (1683-1764), um dos maiores compositores de toda a história da música. Neste quarto texto abordarei determinadas questões interpretativas, graças à execução ao piano. Nos blogs anteriores algumas competentes opiniões, entre elas as de Georges Migot, François Lesure e François Servenière, trataram positivamente a execução das composições de Rameau para teclado interpretadas ao piano. Somam-se a esses abalizados comentários os de seus respeitados biógrafos, Cuthbert Girdlestone, que observou que ¨a obra de Rameau para cravo ganha ao ser transferida para o piano”, e a de Philippe Beaussant, para o qual “sua generosa e rica escritura parece sempre ultrapassar os limites do teclado”. Alguns aspectos fulcrais, concernentes ao aprofundamento necessário para que a transferência do cravo para o piano mantenha as qualidades essenciais da escrita de Jean-Philippe Rameau, merecem ser transmitidos ao leitor. Não sem razão, François Lesure coloca em causa a problemática que inquieta sobretudo os cravistas, mas não os pianistas. Diz o eminente musicólogo francês que “não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. Endosso as palavras dos ilustres músicos, pois ao piano a obra para clavecin de Rameau ganha em substância, devido, em parte, ao fato da possibilidade da ressonância através da valorização das fundamentais, fragilizada no instrumento original, e da ilimitada condição proporcionada pela dinâmica.
Baixo Fundamental
A obra para teclado de Rameau estende-se de 1706 a 1747. O célebre “Traité d’harmonie réduite a ses principes naturels” foi escrito em 1722. Para o leitor não familiarizado com o termo harmonia aplicado à música, servir-me-ei de frase constante no”Dicionário de Música”, de Tomás Borba e Fernando Lopes-Graça (Lisboa, Kosmos, 1956): “Arte e doutrina da formação e encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade”. O “Traité…” de Rameau, dividido em quatro livros, deixa de maneira incisiva sua posição concernente aos baixos, às fundamentais, ou seja, aos sons graves. É Rameau que se posiciona no “Traité…”: “O Baixo fundamental não pode subsistir se não reinar sempre sob as outras partes; e se o todo não estabelecer com ele o Acorde perfeito…”. O baixo fundamental é o alicerce que sustentará o acorde e a harmonia dependerá dessa estrutura. Rameau pormenorizar-se-á sobre o tema quinze anos após, ao escrever outro magnífico tratado, “Géneration Harmonique”, de 1737. Há herança de Pitágoras, passando também por Descartes. No primeiro e segundo posts, George Migot e François Servenière expõem com clareza os recursos do piano realçando os baixos. Temos ainda o enriquecimento sonoro através do emprego do pedal criterioso, que dimensionará as harmonias que se vão sucedendo. O ilustre musicólogo Jacques Chailley (1910-1999) escreveria: “Em 2.500 anos de história escrita, a música não conheceu senão dois verdadeiros teóricos – pois os outros não fizeram mais do que acomodar ou remendar proposições. Um, no século VI antes de nossa era, foi o fabuloso Pitágoras. O outro morreu em Paris em 1764: Jean-Philippe Rameau”. O legado pitagórico, somado a um sólido cartesianismo, fê-lo ter na arguta observação um dos princípios para a teorização que acarretaria a importância das fundamentais. Foi a observação que o levou a considerações após ouvir um simples artesão idoso que cantava os baixos de uma canção popular. Pormenoriza-se de maneira precisa sobre o fato e outros mais nas “Réflexions de Monsieur Rameau sur la manière de former la voix et d’apprendre la musique, et sur nos facultés en général pour tous les arts d’exercice”, texto precioso publicado pelo “Mercure de France” em 1752, após Rameau ter finalizado seus importantes tratados. Diria, síntese da observação arguta que o levou a estabelecer regras para a composição que perduraram através dos séculos. Seria a observação do movimento dos cavalos que o faria refletir sobre a pulsação em muitas de suas obras. Andar e correr levam-no à comparação com a técnica dos dedos sobre o teclado no magnífico “De la méchanique des doigts sur le clavessin”, de 1724.
Clique para ouvir com José Eduardo Martins ao piano, de Jean-Philippe Rameau, Gavotte et Doubles.
Dinâmica, Agógica, Acentuação
O piano possibilita a plena aplicação da dinâmica a acompanhar o discurso musical, e essa característica, que foi resultado de longo debruçamento através da evolução dos recursos do instrumento, dimensiona a obra escrita para clavecin. A apreensão de peças como Les Soupirs, Les Tendres Plaintes, La Boiteuse, La Poule, como exemplos, tem ao piano a perfeita valorização de acentos não indicados na partitura, mas inerentes na frase musical. Igualmente, o caráter de determinadas peças implica a aplicação natural da agógica, essa flexibilização “elástica” do discurso musical. A constatação é tão mais exata se apreendida na indicação de Rameau para uma de suas peças, L’Enharmonique. Segundo o compositor Saint-Saëns (1835-1921), no prefácio das Pièces de clavecin de Rameau editadas pela Durand em Paris (1895), as palavras “hardiment, sans altérer la mesure” (com brio, sem alterar o compasso), várias vezes inseridas na peça “não teriam sentido se os executantes não tivessem o hábito de alterar o movimento uma vez ou outra”. Leva-se à suposição de que os intérpretes tomavam liberdades quanto à flexibilização e que, naquele segmento, Rameau não gostaria que isso acontecesse. Para Rameau, que entendia a música como a linguagem do coração, explica-se, pois. Sob outro aspecto, como não valorizar, ao piano, insisto, determinados segmentos em que a maestria no trato da harmonia em La Timide 2ème rondeau, das Pièces en concert, faz lembrar décadas após Beethoven e até, bem mais tarde, Fauré (2ª parte de Le Rappel des oiseaux)?
Ornamentos
A problemática da ornamentação no período monárquico em França é até hoje discutida por musicólogos e outros especialistas. Também o é relacionada ao período na Alemanha e Itália. Sempre tive certa idiossincrasia a estudos hodiernos que anatematizam tradições estabelecidas no intuito de estabelecer regras “definitivas”. Cravistas franceses tinham suas tabelas para a execução exata dos ornamentos. Rameau fixaria duas, uma em 1706, quando da sua primeira incursão nas criações para cravo, aos 23 anos de idade, e em 1724 (vide ilustração). Na Alemanha, K.P.E.Bach (1714-1788), filho de J.S.Bach, no primeira parte de seu famoso Versuch über die wahre das Clavier zu spielen (Ensaio sobre a verdadeira arte de tocar Cravo) padroniza a realização do complexo quadro de ornamentos. Vê-se que não há uma interpretação única para esses “sinais” que proliferam na música do período composta para cravo. Quanto a Rameau, suas intenções são claras, precisas, de síntese, e tergiversar sobre os sinais por ele estabelecidos seria trair seu pensamento. A duração das notas pode eventualmente tornar um ornamento mais longo, só não deve implicar a não observância da condução melódica. Estruturada na trama da harmonia, dela a fazer parte, a melodia não poderia ser obliterada pela riqueza da ornamentação. Para minha gravação em Sofia segui à risca a tabela dos ornamentos ramistas, constante da edição J.-Ph. Rameau – pièces de clavecin, de Kenneth Gilbert para “Le Pupitre” (Paris, Heugel), coleção de música antiga publicada sob a direção de François Lesure, que me presenteou com um exemplar. Anteriormente servira-me da edição da Durand realizada por Camille Saint-Saëns. Vale considerar que uma interpretação poderia ser considerada equivocada se atender ao livre arbítrio do intérprete. Sob outra égide, a ornamentação “pasteurizada”, ou seja, seguindo-se um só modelo “geográfico”, mormente se executada ao bel prazer, seja ela ao cravo ou o piano, em composições de Kuhnau, F.Couperin, Rameau, J.S.Bach, D.Scarlatti, Haendel, Seixas e tantos outros mestres do longo período, não se estabelece como qualquer referência.
Clique para ouvir com José Eduardo Martins ao piano, de Jean-Philippe Rameau, L’Egyptienne.
Forma e Música descritiva
Rameau, para o “Premier livre de pièces de clavecin”, de 1706, segue as titulações ditadas pela tradição. São nomes de danças tão a gosto daqueles utilizados por J.S.Bach para as suas suítes para teclado, allemande, courante, gigue, sarabande, courante. Abre a suíte com um magnífico prélude em que a primeira secção, sem barra de compassos, privilegia as fundamentais e a dissonância, prenúncio das teorias futuras. A forma obedece igualmente à tradição. É sensível o emprego da forma rondeau em inúmeras peças características. Em Les Niais de Sologne (1724) e na Gavotte variée (1728), Rameau organiza magistralmente a denominada variação. A partir das obras para clavecin contidas nos livros de 1724 e 1728, sem descartar o arcabouço formal da suíte, mais acentuadamente Rameau penetra no universo descritivo, tão a gosto dos clavecinistas franceses, mormente François Couperin. Inúmeras serão as peças que evocarão sentimentos, a natureza, o onomatopaico.
_______
Busquei apenas mencionar alguns aspectos da obra original para teclado de Jean-Philippe Rameau. Obra de síntese de um período em que o teórico estabelecia regras que perdurariam séculos a seguir. Se comparada às criações de F.Couperin, J.S.Bach, D.Scarlatti, G.F.Haendel, quantitativamente tem-se um conjunto bem menor, multum in minimo. Contudo, em suas Pièces de clavecin, que se estendem de 1706 a 1728, sem contar La Dauphine, composta em 1747, Rameau diferencia-se de seus coetâneos pela visão profética de uma escrita que anunciaria contínuos avanços no campo da harmonia. As cinco transcrições que realiza das Pièces de clavecin en concert (1741) para clavecin solo seguem a estrutura das obras camerísticas originais. O mesmo não ocorre com determinadas transcrições da ópera-balé Les Indes Galantes, entre as quais a Ouverture e a magnífica Chacone, que possibilitam uma visão orquestral quando interpretada ao piano.
Finda a criação para teclado, Rameau adentra o espaço reservado ao palco. Hippolyte et Aricie (tragédia lírica) é de 1733, Les Boréades (tragédia lírica) foi composta em 1763, um ano antes de sua morte. Tinha ele 80 anos. Nesse longo espaço, uma série de óperas-balés e tragédias líricas, assim como outros gêneros, foram compostos. Citemos, entre as mais ventiladas, Les Indes Galantes, Dardanus, Castor et Pollux, Les Fêtes d’Hébé, Zoroastre…
A obra de Jean-Philippe Rameau tem sido redescoberta de maneira acentuada. Apresentadas com rica coreografia ou in concert, mais e mais seu gênio tem atingido no hemisfério norte um público que questiona a não frequência à sua monumental produção durante tão longo período. Lamentavelmente desconhecemos no Brasil suas tragédias líricas e suas óperas-balés. São encenadas no país as óperas consagradas, quase sempre as mesmas. O leitor saberá nomeá-las sem o menor esforço.
Diria, ao finalizar este quarto texto, que a intenção para os posts de Agosto foi a de transmitir uma panorâmica do grande Jean-Philippe Rameau, teórico e compositor. Quarenta e cinco anos separam a primeira audição que realizei em São Paulo de suas composições para teclado interpretadas ao piano, e trinta e três de uma segunda apresentação quando do tricentenário do nascimento de Rameau. Não tive seguidores. O acúmulo das décadas, que me levou a chegar aos 78 anos, torna improvável uma próxima integral após a presente. O ‘tempo é insubornável’, segundo Guerra Junqueiro. Mentes deveriam se abrir para uma renovação repertorial que se faz necessária, não apenas no caso de Rameau, mas de tantos compositores que, voluntariamente, agentes e sociedades de concerto ignoram ou ao menos fingem fazê-lo? A repetição de repertórios não os leva sequer ao rubor. Mario Vargas Llosa tem razão ao vaticinar um lamentável desmoronamento cultural que está a acontecer em termos globais, e mais acentuadamente em nosso país. Insistirei nesse caminho em busca de um incessante renovar. Transcrevendo uma das frases da epígrafe, reverencio-a, mas faço minhas as palavras de Jean-Philippe Rameau: “Eu ousei, tive a felicidade, eu continuei.”
My intention in August was to give a brief overview of Jean-Philippe Rameau as composer and music theorist whose “Treatise on Harmony” initiated a revolution in music theory. In this fourth post I address some key issues necessary to maintain the essential qualities of his writings for harpsichord when transferred to the piano: fundamental bass, dynamics, accents, agogics, embellishments, form, descriptive titles. As my recitals in São Paulo on 20 and 27 August with Rameau’s complete harpsichord pieces played on the piano approach, the words of the French musicologist François Lesure are worth reminding: “It is not the instrument that ensures a priori the authenticity of a work, but the performer’s style”.