Conceituações que se eternizam

A finalidade da música é a de agradar e de despertar em nós diversas paixões.
René Descartes (1596-1650)
(“Compendium Musicae”)

Queiram ou não,
Rameau é uma das bases mais certas da música,
e poderemos sem temor caminhar no belo caminho que ele traçou…
Claude Debussy
(“Monsieur Croche” et autres récits)

Rameau foi um dos eleitos de seu também notável póstero, Claude Debussy (1862-1918). Inúmeras foram as vezes em que Debussy, articulista em vários periódicos e missivista arguto, pormenorizou-se em Rameau. Em 1903, após ouvir atos da ópera “Castor et Pollux”, do mestre nascido em Dijon, Debussy escreve crítica a considerar que “os minutos de verdadeira alegria são raros e eu quis que eles não me pertencessem apenas”. Em 1912, ao mencionar o célebre Traité de l’Harmonie réduite  a ses principes naturels, Debussy se estende: “Na verdade, ele não duvida um instante sequer da verdade do velho dogma pitagórico… a música como um todo deve ser reduzida a uma combinação de números; ela é a aritmética do som, como a ótica é a geometria da luz. Rameau reproduz os termos, mas traça o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna e ele mesmo. Talvez tenha cometido um equívoco ao escrever suas teorias antes mesmo de compor suas óperas, pois seus contemporâneos encontraram o motivo para concluir a ausência de toda a emoção em sua música”. Noção obliterada, pois para Rameau a “música é a linguagem do coração”, como testemunhou, evidência real em sua obra lírica para a cena e, bem particularmente, na criação para teclado. Debussy, aliás, escreve no mesmo artigo: “A imensa contribuição de Rameau está no fato de ele ter descoberto a ‘sensibilidade na harmonia’; pois conseguiu chegar a certas cores, a determinadas nuances das quais, antes dele, os músicos não tinham senão sentimentos confusos”.

Clique para ouvir a abertura da ópera Castor et Pollux mencionada por Debussy. Fonte: YouTube.

Outras frases de Debussy a elogiar Rameau: “Clareza na expressão e fina elegância”, “Rameau grego e lírico” (1903), “o porquê de a música francesa esquecer Rameau durante meio século é um mistério frequente na história da arte, que não se explica, talvez, senão pelo arbitrário e estranho encadeamento dos eventos históricos”;  “escutemos o coração de Rameau: jamais voz tão francesa se fez ouvir, e há muito tempo, na ópera” (1908); “na verdade, desde Rameau não temos mais tradição nitidamente francesa” (1915). (tradução: J.E.M.).

Debussy, ao mencionar o teórico Rameau, possivelmente a eclipsar o compositor, fá-lo com a certeza de que os Conservatórios estudavam as teorias de Rameau. A tradição da escrita a partir da sedimentação da harmonia foi a segurança maior para legião de compositores. Esse viés professoral contido nos inúmeros tratados de Rameau provocaria a escuta naturalmente tendenciosa. Toda a estruturação das obras musicais ramistas passa por essa qualidade inalienável da maestria absoluta do conhecimento das regras que regem a composição. Tantas delas por ele criadas.

Clique para ouvir com a Orquestra Les Siècles sob a direção de François-Xavier Roth, Les Sauvages da ópera-balé Les Indes Galantes de Jean-Philippe Rameau. Fonte: YouTube.

Considero, a seguir, posições que têm acompanhado minha trilha solitária no Brasil a desvelar a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano, criações hoje frequentadas assiduamente por pianistas como Grigory Sokolov e outros do hemisfério norte. Mencionaria algumas críticas e comentários que se seguiram às apresentações ramistas.

Em 1971, quando da primeira audição no Brasil da obra completa original para piano, o grande poeta e escritor Menotti del Picchia (1892-1988)  escreveu para o folder que divulgou as apresentações. Semanas antes do magnífico e lúcido texto estive em casa do casal Menotti del Picchia e Antonieta Rudge (1885-1974) e toquei parte dessa integral para os ilustres ouvintes, ela excelsa pianista, um dos nomes referenciais do piano em nosso país. Eis o texto:

“Os gênios nutrem-se de imanente intemporalidade. Se, por circunstâncias acidentais, seu esplendor inicial se eclipsa, sua essência, que é imortalidade, aguarda apenas um reencontro com seu redescobridor para tornar a fulgurar com o mesmo brilho com que surgiu. O caso de Bach é típico. Típico e recente é o caso de Jean-Philippe Rameau.

O contemporâneo de Couperin, Vivaldi, Bach, Haendel e de Scarlatti, hoje colocado, pela crítica erudita, como primeiro elo da grande tradição musical francesa que continuou com Berlioz, Bizet, Chabrier e Debussy, teve, após seu triunfo na corte solar dos reis da França, seu prestígio e sua glória ofuscados pelo ciúmes populistas de Jean-Jacques Rousseau. A paixão política interfere até na área sagrada da arte, mas se, no caso, pode cobrir temporariamente com um crepe demagógico o esplendor de um gênio, isso em nada lhe afetou a essência. Esta tornou a resplandecer porquanto é infundível e eterna.

A glorificação atual de Rameau na França e no mundo não é mais que a afirmação do seu valor proclamado pelos mestres supremos da música. ‘Mal a França acaba de se reconciliar com Rameau – diz Jean Malignon – pondo termo a séculos de prevenção ou de negligência, redescobre ela o domínio de Versalhes, reconhece sua herança, apropria-se dela, reatualiza-a e nela penetra como se fosse pela primeira vez’.

José Eduardo Martins, uma das mais válidas revelações pianísticas da nova geração, a qual se orgulha da tríade incomparável Antonieta Rudge, Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro, não é apenas um virtuose consagrado por plateias nacionais e estrangeiras, como um estudioso erudito e pesquisador da música de todos os tempos. O redescobrimento de Rameau por P. Lalo levou o jovem paulista a estudar, com amor e profundidade, o tesouro musical que representa a obra do gênio gaulês. ‘Música pensada, equilibrada, austera, intelectual sem ser fechada, mas plena de nobreza e de refinamento’. Assim define as criações de Rameau o jovem mestre ao imergir-se nas composições, muitas delas por nós desconhecidas, desse redescoberto tesouro.

A série de concertos, ao lado de sua finalidade artística, importará numa incursão didática rica de inédita informação no plano mais alto da nossa cultura musical”.

Apresento quatro críticas escritas por músicos, diga-se, realidade fundamental nessa época atual de desmonte cultural, como bem afirma Mario Vargas Llosa, e plena de pretensos críticos sem as bases sólidas para o desempenho da função.

O Professor Caldeira Filho assim se referiu em “O Estado de São Paulo” (30/06/1971): “Mais do que revelar Rameau, José Eduardo revelou toda a beleza particular de uma época, de uma cultura e daquela fineza de espírito característica do espírito francês. Triunfou completamente. E não é preciso dizer mais”.

A compositora e professora Dinorá de Carvalho escreveria no “Diário de São Paulo” (06/07/1971): “O artista expôs minuciosamente a beleza de claridade dos planos sonoros, integra-se totalmente numa união íntima de fidelidade à obra de Rameau. O intérprete distingue os leves acentos, a cor, a graça numa afirmação viva imaginada, num dedilhar de beleza de sons cristalinos. Realiza com muito equilíbrio os graciosos e pomposos ornamentos apostos sobre as notas, produzindo deliciosos efeitos de surpreendente cintilação”.

O crítico e musicólogo do “Diário de Notícias” de Lisboa, Humberto d’Ávila, assim se pronunciou: “De formação essencialmente francesa (aperfeiçoou-se em Paris com Marguerite Long, Jacques Février e Jean Doyen), afinidades e sentimentos atraíram-no para a escrita de Debussy, de que se tornou um dos mais esclarecidos especialistas. Que divida com aquele um profundo interesse pela composição de tecla de Rameau, que cada vez se folheia menos, só o estranha quem não se lembrar da reverente admiração de Debussy pelos cravistas do siècle d’or francês”.

Buscando referências sobre Rameau, encontrei há meses comentário crítico que desconhecia e publicado em 2006, online. Escreve o autor: “I recently came across the 2-disc set of Rameau’s complete harpsichord works by Jose Eduardo Martins (release on Northern Flowers). Not knowing anything about that pianist, I hesitated before buying the discs but I’m really glad I splurged out as his performance is absolutely miraculous.”

Clique para ouvir com José Eduardo Martins ao piano, de Jean-Philippe Rameau, a trancrição para teclado de l’Air pour Borée et la Rose, des Les Indes Galantes.

No quarto e último blog sobre a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano, abordarei aspectos interpretativos dessa genial opera omnia original, e as possibilidades de execução nesse instrumento. Frase musical, ornamentação ramista, dinâmica abrangente e estilo. Convido meus leitores a conhecerem essa parte fundamental da criação de Jean-Philippe Rameau.

A apresentação da integral original para teclado e de algumas das transcrições de “Les Indes Galantes”, de Jean-Philippe Rameau, dar-se-á nos dias 20 e 27 de Agosto, às 20:00, no auditório da Sociedade Brasileira de Eubiose (Av. Lacerda Franco, 1059 – Cambuci, São Paulo, telefones: 3208-9914 / 3208-6699). Estará à disposição o álbum a conter os dois CDs com todas as obras dos recitais. Gravei-as na Sala Bulgária em Sofia, em 1997, e o álbum, inicialmente lançado em 2000 pelo selo belga De Rode Pomp, foi relançado no Brasil pela Clássicos em 2009.

Today’post presents Debussy’s views on Rameau as composer and music theorist, followed by four critical receptions of my performances of Rameau’s keyboard works.