Navegando Posts publicados em agosto, 2016

Alguns aspectos relacionados à interpretação ao piano

“É para a alma que a música deve falar”.
“Ao compor música, não busquemos lembrar as regras
que poderiam deixar nosso talento escravo”.
“A verdadeira música é a linguagem do coração”.
“Eu ousei, tive a felicidade, eu continuei”.
Frases de Jean-Philippe Rameau

Quatro posts foram dedicados a Jean-Philippe Rameau (1683-1764), um dos maiores compositores de toda a história da música. Neste quarto texto abordarei determinadas questões interpretativas, graças à execução ao piano. Nos blogs anteriores algumas competentes opiniões, entre elas as de Georges Migot, François Lesure e François Servenière, trataram positivamente a execução das composições de Rameau para teclado interpretadas ao piano. Somam-se a esses abalizados comentários os de seus respeitados biógrafos, Cuthbert Girdlestone, que observou que ¨a obra de Rameau para cravo ganha ao ser transferida para o piano”, e a de Philippe Beaussant, para o qual “sua generosa e rica escritura parece sempre ultrapassar os limites do teclado”. Alguns aspectos fulcrais, concernentes ao aprofundamento necessário para que a transferência do  cravo para o piano mantenha as qualidades essenciais da escrita de Jean-Philippe Rameau, merecem ser transmitidos ao leitor. Não sem razão, François Lesure coloca em causa a problemática que inquieta sobretudo os cravistas, mas não os pianistas. Diz o eminente musicólogo francês que “não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. Endosso as palavras dos ilustres músicos, pois ao piano a obra para clavecin de Rameau ganha em substância, devido, em parte, ao fato da possibilidade da ressonância através da valorização das fundamentais, fragilizada no instrumento original, e da ilimitada condição proporcionada pela dinâmica.

Baixo Fundamental

A obra para teclado de Rameau estende-se de 1706 a 1747. O célebre “Traité d’harmonie réduite a ses principes naturels” foi escrito em 1722. Para o leitor não familiarizado com o termo harmonia aplicado à música, servir-me-ei de frase constante no”Dicionário de Música”, de Tomás Borba e Fernando Lopes-Graça (Lisboa, Kosmos, 1956): “Arte e doutrina da formação e encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade”.  O “Traité…” de Rameau, dividido em quatro livros, deixa de maneira incisiva sua posição concernente aos baixos, às fundamentais, ou seja, aos sons graves. É Rameau que se posiciona no “Traité…”: “O Baixo fundamental não pode subsistir se não reinar sempre sob as outras partes; e se o todo não estabelecer com ele o Acorde perfeito…”. O baixo  fundamental é o alicerce que sustentará o acorde e a harmonia dependerá dessa estrutura. Rameau pormenorizar-se-á sobre o tema quinze anos após, ao escrever outro magnífico tratado, “Géneration Harmonique”, de 1737. Há herança de Pitágoras, passando também por Descartes. No primeiro e segundo posts, George Migot e François Servenière expõem com clareza os recursos do piano realçando os baixos. Temos ainda o enriquecimento sonoro através do emprego do pedal criterioso, que dimensionará as harmonias que se vão  sucedendo. O ilustre musicólogo Jacques Chailley (1910-1999) escreveria: “Em 2.500 anos de história escrita, a música não conheceu senão dois verdadeiros teóricos – pois os outros não fizeram mais do que acomodar ou remendar proposições. Um, no século VI antes de nossa era, foi o fabuloso Pitágoras. O outro morreu em Paris em 1764: Jean-Philippe Rameau”. O legado pitagórico, somado a um sólido cartesianismo, fê-lo ter na arguta  observação um dos princípios para a teorização que acarretaria a importância das fundamentais. Foi a observação que o levou a considerações após ouvir um simples artesão idoso que cantava os baixos de uma canção popular. Pormenoriza-se de maneira precisa sobre o fato e outros mais nas “Réflexions de Monsieur Rameau sur la manière de former la voix et d’apprendre la musique, et sur nos facultés en général pour tous les arts d’exercice”, texto precioso publicado pelo “Mercure de France” em 1752, após Rameau ter finalizado seus importantes tratados. Diria, síntese da observação arguta que o levou a estabelecer regras para a composição que perduraram através dos séculos. Seria a observação do movimento dos cavalos que o faria  refletir sobre a pulsação em muitas de suas obras. Andar e correr levam-no à comparação com a técnica dos dedos sobre o teclado no magnífico “De la méchanique des doigts sur le clavessin”, de 1724.

Clique para ouvir com José Eduardo Martins ao piano, de Jean-Philippe Rameau, Gavotte et Doubles.

Dinâmica, Agógica, Acentuação

O piano possibilita a plena aplicação da dinâmica a acompanhar o discurso musical, e essa característica, que foi resultado de longo debruçamento através da evolução dos recursos do instrumento, dimensiona a obra escrita para clavecin. A apreensão de peças como Les SoupirsLes Tendres Plaintes, La Boiteuse, La Poule, como exemplos, tem ao piano a perfeita valorização de acentos não indicados na partitura, mas inerentes na frase musical. Igualmente, o caráter de determinadas peças implica a aplicação natural da agógica, essa flexibilização “elástica” do discurso musical. A constatação é tão mais exata se apreendida na indicação de Rameau para uma de suas peças, L’Enharmonique. Segundo o compositor Saint-Saëns (1835-1921), no prefácio das Pièces de clavecin de Rameau editadas pela Durand em Paris (1895), as palavras “hardiment, sans altérer la mesure” (com brio, sem alterar o compasso), várias vezes inseridas  na peça “não teriam sentido se os executantes não tivessem o hábito de alterar o movimento uma vez ou outra”. Leva-se à suposição de que os intérpretes tomavam liberdades quanto à flexibilização e que, naquele segmento, Rameau não gostaria que isso acontecesse. Para Rameau, que entendia a música como a linguagem do coração, explica-se, pois. Sob outro aspecto, como não valorizar, ao piano, insisto, determinados segmentos em que a maestria no trato da harmonia em La Timide 2ème rondeau, das Pièces en concert, faz lembrar décadas após  Beethoven e até, bem mais tarde, Fauré (2ª parte de Le Rappel des oiseaux)?

Ornamentos

A problemática da ornamentação no período monárquico em França é até hoje discutida por musicólogos e outros especialistas. Também o é relacionada ao período na Alemanha e Itália. Sempre tive certa idiossincrasia a estudos hodiernos que anatematizam tradições estabelecidas no intuito de estabelecer regras “definitivas”. Cravistas franceses tinham suas tabelas para a execução exata dos ornamentos. Rameau fixaria duas, uma em 1706, quando da sua primeira incursão nas criações para cravo, aos 23 anos de idade, e em 1724 (vide ilustração). Na Alemanha, K.P.E.Bach (1714-1788), filho de J.S.Bach, no primeira parte de seu famoso Versuch über die wahre das Clavier zu spielen (Ensaio sobre a verdadeira arte de tocar Cravo) padroniza a realização do complexo quadro de ornamentos. Vê-se que não há uma interpretação única para esses “sinais” que proliferam na música do período composta para cravo. Quanto a Rameau, suas intenções são claras, precisas, de síntese, e tergiversar sobre os sinais por ele estabelecidos seria trair seu pensamento. A duração das notas pode eventualmente tornar um ornamento mais longo, só não deve implicar a não observância da condução melódica. Estruturada na trama da harmonia, dela a fazer parte, a melodia não poderia ser obliterada pela riqueza da ornamentação. Para minha gravação em Sofia segui à risca a tabela dos ornamentos ramistas, constante da edição J.-Ph. Rameau – pièces de clavecin, de Kenneth Gilbert para “Le Pupitre” (Paris, Heugel), coleção de música antiga publicada sob a direção de François Lesure, que me presenteou com um exemplar. Anteriormente servira-me da edição da Durand  realizada por Camille Saint-Saëns. Vale considerar que uma interpretação poderia ser considerada equivocada se atender ao livre arbítrio do intérprete. Sob outra égide, a ornamentação “pasteurizada”, ou seja, seguindo-se um só modelo “geográfico”, mormente se executada ao bel prazer, seja ela ao cravo ou o piano, em composições de Kuhnau, F.Couperin, Rameau, J.S.Bach, D.Scarlatti, Haendel, Seixas e tantos outros mestres do longo período, não se estabelece como qualquer referência.

Clique para ouvir com José Eduardo Martins ao piano, de Jean-Philippe Rameau, L’Egyptienne.

Forma e Música descritiva

Rameau, para o “Premier livre de pièces de clavecin”, de 1706, segue as titulações ditadas pela tradição. São nomes de danças tão a gosto daqueles utilizados por J.S.Bach para as suas suítes para teclado, allemande, courante, gigue, sarabande, courante. Abre a suíte com um magnífico prélude em que a primeira secção, sem barra de compassos, privilegia as fundamentais e a dissonância, prenúncio das teorias futuras. A forma obedece igualmente à tradição. É sensível o emprego da forma rondeau em inúmeras peças características. Em Les Niais de Sologne (1724) e na Gavotte variée (1728), Rameau organiza magistralmente a denominada variação. A partir das obras para clavecin contidas nos livros de 1724 e 1728, sem descartar o arcabouço formal da suíte, mais acentuadamente Rameau penetra no universo descritivo, tão a gosto dos clavecinistas franceses, mormente François Couperin. Inúmeras serão as peças que evocarão sentimentos, a natureza, o onomatopaico.

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Busquei apenas mencionar alguns aspectos da obra original para teclado de Jean-Philippe Rameau. Obra de síntese de um período em que o teórico estabelecia regras que perdurariam séculos a seguir. Se comparada às criações de F.Couperin, J.S.Bach, D.Scarlatti, G.F.Haendel, quantitativamente tem-se um conjunto bem menor, multum in minimo. Contudo, em suas Pièces de clavecin, que se estendem de 1706 a 1728, sem contar La Dauphine, composta em 1747, Rameau diferencia-se de seus coetâneos pela visão profética de uma escrita que anunciaria contínuos avanços no campo da harmonia. As cinco transcrições que realiza das Pièces de clavecin en concert (1741) para clavecin solo seguem a estrutura das obras camerísticas originais. O mesmo não ocorre com determinadas transcrições da ópera-balé Les Indes Galantes, entre as quais a Ouverture e a magnífica Chacone, que possibilitam uma visão orquestral quando interpretada ao piano.

Finda a criação para teclado, Rameau adentra o espaço reservado ao palco. Hippolyte et Aricie (tragédia lírica) é de 1733, Les Boréades (tragédia lírica) foi composta em 1763, um ano antes de sua morte. Tinha ele 80 anos. Nesse longo espaço, uma série de óperas-balés e tragédias líricas, assim como outros gêneros, foram compostos. Citemos, entre as mais ventiladas, Les Indes Galantes, Dardanus, Castor et Pollux, Les Fêtes d’Hébé, Zoroastre

A obra de Jean-Philippe Rameau tem sido redescoberta de maneira acentuada. Apresentadas com rica coreografia ou in concert, mais e mais seu gênio tem atingido no hemisfério norte um público que questiona a não frequência à sua monumental produção durante tão longo período. Lamentavelmente desconhecemos no Brasil suas tragédias líricas e suas óperas-balés. São encenadas no país as óperas consagradas, quase sempre as mesmas. O leitor saberá nomeá-las sem o menor esforço.

Diria, ao finalizar este quarto texto, que a intenção para os posts de Agosto foi a de transmitir uma panorâmica do grande Jean-Philippe Rameau, teórico e compositor. Quarenta e cinco anos separam a primeira audição que realizei em São Paulo de suas composições para teclado interpretadas ao piano, e trinta e três de uma segunda apresentação quando do tricentenário do nascimento de Rameau. Não tive seguidores. O acúmulo das décadas, que me levou a chegar aos 78 anos, torna improvável uma próxima integral após a presente. O ‘tempo é insubornável’, segundo Guerra Junqueiro. Mentes deveriam se abrir para uma renovação repertorial que se faz necessária, não apenas no caso de Rameau, mas de tantos compositores que, voluntariamente, agentes e sociedades de concerto ignoram ou ao menos fingem fazê-lo? A repetição de repertórios não os leva sequer ao rubor. Mario Vargas Llosa tem razão ao vaticinar um lamentável desmoronamento cultural que está a acontecer em termos globais, e mais acentuadamente em nosso país. Insistirei nesse caminho em busca de um incessante renovar. Transcrevendo uma das frases da epígrafe, reverencio-a, mas faço minhas as palavras de Jean-Philippe Rameau: “Eu ousei, tive a felicidade, eu continuei.”

My intention in August was to give a brief overview of Jean-Philippe Rameau as composer and music theorist whose “Treatise on Harmony” initiated a revolution in music theory. In this fourth post I address some key issues necessary to maintain the essential qualities of his writings for harpsichord when transferred to the piano: fundamental bass, dynamics, accents, agogics, embellishments, form, descriptive titles. As my recitals in São Paulo on 20 and 27 August with Rameau’s complete harpsichord pieces played on the piano approach, the words of the French musicologist François Lesure are worth reminding: “It is not the instrument that ensures a priori the authenticity of a work, but the performer’s style”.


 

 

 

 

Conceituações que se eternizam

A finalidade da música é a de agradar e de despertar em nós diversas paixões.
René Descartes (1596-1650)
(“Compendium Musicae”)

Queiram ou não,
Rameau é uma das bases mais certas da música,
e poderemos sem temor caminhar no belo caminho que ele traçou…
Claude Debussy
(“Monsieur Croche” et autres récits)

Rameau foi um dos eleitos de seu também notável póstero, Claude Debussy (1862-1918). Inúmeras foram as vezes em que Debussy, articulista em vários periódicos e missivista arguto, pormenorizou-se em Rameau. Em 1903, após ouvir atos da ópera “Castor et Pollux”, do mestre nascido em Dijon, Debussy escreve crítica a considerar que “os minutos de verdadeira alegria são raros e eu quis que eles não me pertencessem apenas”. Em 1912, ao mencionar o célebre Traité de l’Harmonie réduite  a ses principes naturels, Debussy se estende: “Na verdade, ele não duvida um instante sequer da verdade do velho dogma pitagórico… a música como um todo deve ser reduzida a uma combinação de números; ela é a aritmética do som, como a ótica é a geometria da luz. Rameau reproduz os termos, mas traça o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna e ele mesmo. Talvez tenha cometido um equívoco ao escrever suas teorias antes mesmo de compor suas óperas, pois seus contemporâneos encontraram o motivo para concluir a ausência de toda a emoção em sua música”. Noção obliterada, pois para Rameau a “música é a linguagem do coração”, como testemunhou, evidência real em sua obra lírica para a cena e, bem particularmente, na criação para teclado. Debussy, aliás, escreve no mesmo artigo: “A imensa contribuição de Rameau está no fato de ele ter descoberto a ‘sensibilidade na harmonia’; pois conseguiu chegar a certas cores, a determinadas nuances das quais, antes dele, os músicos não tinham senão sentimentos confusos”.

Clique para ouvir a abertura da ópera Castor et Pollux mencionada por Debussy. Fonte: YouTube.

Outras frases de Debussy a elogiar Rameau: “Clareza na expressão e fina elegância”, “Rameau grego e lírico” (1903), “o porquê de a música francesa esquecer Rameau durante meio século é um mistério frequente na história da arte, que não se explica, talvez, senão pelo arbitrário e estranho encadeamento dos eventos históricos”;  “escutemos o coração de Rameau: jamais voz tão francesa se fez ouvir, e há muito tempo, na ópera” (1908); “na verdade, desde Rameau não temos mais tradição nitidamente francesa” (1915). (tradução: J.E.M.).

Debussy, ao mencionar o teórico Rameau, possivelmente a eclipsar o compositor, fá-lo com a certeza de que os Conservatórios estudavam as teorias de Rameau. A tradição da escrita a partir da sedimentação da harmonia foi a segurança maior para legião de compositores. Esse viés professoral contido nos inúmeros tratados de Rameau provocaria a escuta naturalmente tendenciosa. Toda a estruturação das obras musicais ramistas passa por essa qualidade inalienável da maestria absoluta do conhecimento das regras que regem a composição. Tantas delas por ele criadas.

Clique para ouvir com a Orquestra Les Siècles sob a direção de François-Xavier Roth, Les Sauvages da ópera-balé Les Indes Galantes de Jean-Philippe Rameau. Fonte: YouTube.

Considero, a seguir, posições que têm acompanhado minha trilha solitária no Brasil a desvelar a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano, criações hoje frequentadas assiduamente por pianistas como Grigory Sokolov e outros do hemisfério norte. Mencionaria algumas críticas e comentários que se seguiram às apresentações ramistas.

Em 1971, quando da primeira audição no Brasil da obra completa original para piano, o grande poeta e escritor Menotti del Picchia (1892-1988)  escreveu para o folder que divulgou as apresentações. Semanas antes do magnífico e lúcido texto estive em casa do casal Menotti del Picchia e Antonieta Rudge (1885-1974) e toquei parte dessa integral para os ilustres ouvintes, ela excelsa pianista, um dos nomes referenciais do piano em nosso país. Eis o texto:

“Os gênios nutrem-se de imanente intemporalidade. Se, por circunstâncias acidentais, seu esplendor inicial se eclipsa, sua essência, que é imortalidade, aguarda apenas um reencontro com seu redescobridor para tornar a fulgurar com o mesmo brilho com que surgiu. O caso de Bach é típico. Típico e recente é o caso de Jean-Philippe Rameau.

O contemporâneo de Couperin, Vivaldi, Bach, Haendel e de Scarlatti, hoje colocado, pela crítica erudita, como primeiro elo da grande tradição musical francesa que continuou com Berlioz, Bizet, Chabrier e Debussy, teve, após seu triunfo na corte solar dos reis da França, seu prestígio e sua glória ofuscados pelo ciúmes populistas de Jean-Jacques Rousseau. A paixão política interfere até na área sagrada da arte, mas se, no caso, pode cobrir temporariamente com um crepe demagógico o esplendor de um gênio, isso em nada lhe afetou a essência. Esta tornou a resplandecer porquanto é infundível e eterna.

A glorificação atual de Rameau na França e no mundo não é mais que a afirmação do seu valor proclamado pelos mestres supremos da música. ‘Mal a França acaba de se reconciliar com Rameau – diz Jean Malignon – pondo termo a séculos de prevenção ou de negligência, redescobre ela o domínio de Versalhes, reconhece sua herança, apropria-se dela, reatualiza-a e nela penetra como se fosse pela primeira vez’.

José Eduardo Martins, uma das mais válidas revelações pianísticas da nova geração, a qual se orgulha da tríade incomparável Antonieta Rudge, Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro, não é apenas um virtuose consagrado por plateias nacionais e estrangeiras, como um estudioso erudito e pesquisador da música de todos os tempos. O redescobrimento de Rameau por P. Lalo levou o jovem paulista a estudar, com amor e profundidade, o tesouro musical que representa a obra do gênio gaulês. ‘Música pensada, equilibrada, austera, intelectual sem ser fechada, mas plena de nobreza e de refinamento’. Assim define as criações de Rameau o jovem mestre ao imergir-se nas composições, muitas delas por nós desconhecidas, desse redescoberto tesouro.

A série de concertos, ao lado de sua finalidade artística, importará numa incursão didática rica de inédita informação no plano mais alto da nossa cultura musical”.

Apresento quatro críticas escritas por músicos, diga-se, realidade fundamental nessa época atual de desmonte cultural, como bem afirma Mario Vargas Llosa, e plena de pretensos críticos sem as bases sólidas para o desempenho da função.

O Professor Caldeira Filho assim se referiu em “O Estado de São Paulo” (30/06/1971): “Mais do que revelar Rameau, José Eduardo revelou toda a beleza particular de uma época, de uma cultura e daquela fineza de espírito característica do espírito francês. Triunfou completamente. E não é preciso dizer mais”.

A compositora e professora Dinorá de Carvalho escreveria no “Diário de São Paulo” (06/07/1971): “O artista expôs minuciosamente a beleza de claridade dos planos sonoros, integra-se totalmente numa união íntima de fidelidade à obra de Rameau. O intérprete distingue os leves acentos, a cor, a graça numa afirmação viva imaginada, num dedilhar de beleza de sons cristalinos. Realiza com muito equilíbrio os graciosos e pomposos ornamentos apostos sobre as notas, produzindo deliciosos efeitos de surpreendente cintilação”.

O crítico e musicólogo do “Diário de Notícias” de Lisboa, Humberto d’Ávila, assim se pronunciou: “De formação essencialmente francesa (aperfeiçoou-se em Paris com Marguerite Long, Jacques Février e Jean Doyen), afinidades e sentimentos atraíram-no para a escrita de Debussy, de que se tornou um dos mais esclarecidos especialistas. Que divida com aquele um profundo interesse pela composição de tecla de Rameau, que cada vez se folheia menos, só o estranha quem não se lembrar da reverente admiração de Debussy pelos cravistas do siècle d’or francês”.

Buscando referências sobre Rameau, encontrei há meses comentário crítico que desconhecia e publicado em 2006, online. Escreve o autor: “I recently came across the 2-disc set of Rameau’s complete harpsichord works by Jose Eduardo Martins (release on Northern Flowers). Not knowing anything about that pianist, I hesitated before buying the discs but I’m really glad I splurged out as his performance is absolutely miraculous.”

Clique para ouvir com José Eduardo Martins ao piano, de Jean-Philippe Rameau, a trancrição para teclado de l’Air pour Borée et la Rose, des Les Indes Galantes.

No quarto e último blog sobre a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano, abordarei aspectos interpretativos dessa genial opera omnia original, e as possibilidades de execução nesse instrumento. Frase musical, ornamentação ramista, dinâmica abrangente e estilo. Convido meus leitores a conhecerem essa parte fundamental da criação de Jean-Philippe Rameau.

A apresentação da integral original para teclado e de algumas das transcrições de “Les Indes Galantes”, de Jean-Philippe Rameau, dar-se-á nos dias 20 e 27 de Agosto, às 20:00, no auditório da Sociedade Brasileira de Eubiose (Av. Lacerda Franco, 1059 – Cambuci, São Paulo, telefones: 3208-9914 / 3208-6699). Estará à disposição o álbum a conter os dois CDs com todas as obras dos recitais. Gravei-as na Sala Bulgária em Sofia, em 1997, e o álbum, inicialmente lançado em 2000 pelo selo belga De Rode Pomp, foi relançado no Brasil pela Clássicos em 2009.

Today’post presents Debussy’s views on Rameau as composer and music theorist, followed by four critical receptions of my performances of Rameau’s keyboard works.


 

 

Análise  crítica de François Servenière

O tempo do Barroco integrista passou.
A utilização de instrumentos de época
deixou de ser um dogma
ao qual os músicos são obrigados a aderir
sob pena de serem tratados de heréticos.
François Lesure
(Extraído do encarte do álbum “Rameau L’Oeuvre de Clavier”
Piano – José Eduardo Martins, selo De Rode Pomp – Bélgica)

No post anterior apresentei o ensaio que o ilustre compositor francês George Migot escreveu para a apresentação do álbum de LPs a conter a opera omnia original para teclado de Jean-Philippe Rameau, a primeira gravação mundial ao piano, realizada pela excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958) nos anos 1950. Ainda hoje essa gravação é referencial, mercê também de toda uma tradição da escuta que, desde o final do século XVIII, foi sendo passada paulatinamente de mestre a aluno, primeiramente tendo como instrumento o pianoforte e, a seguir, o piano.

No presente post, o texto crítico é do igualmente ilustre compositor e pensador francês François Servenière e extraído de seu opúsculo “Une Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins” (São Paulo, Giordano, 2012), a analisar meus 22 CDs gravados na Europa. A análise da segunda gravação mundial da obra original para teclado de Rameau interpretada ao piano, que realizei em 1997 na Sala Bulgária, em Sofia, agora acrescida de algumas das transcrições do compositor a partir de sua ópera-balé “Les Indes Galantes”, transcrições que não constam no registro fonográfico de Marcelle Meyer, substancia um conhecimento maior da interpretação ao piano, assim como evidencia a qualidade inefável da criação ramista. Apresentar na íntegra essa análise crítica implica inserir algumas louvações do músico à minha interpretação. Faço-o com o devido retraimento. Subtraindo-me desses elogios, transmito aos leitores que o texto de François Servenière é coeso, e suprimir frases ou segmentos implicaria perda de unidade.

Clique para ouvir no YouTube, com José Eduardo Martins ao piano, Les Niais de Sologne de Jean-Philippe Rameau

“Novamente num álbum duplo encontramos a excepcional interpretação de José Eduardo Martins, que nos faz esquecer a cada CD que um intérprete, um homem com os dedos de ourives, transmite a mensagem de um compositor. É um feito gravar ao piano a integral para teclado do compositor que a destinou originalmente ao cravo. O conjunto da obra não sofre pelo fato da suposta transgressão se não interpretado e gravado em instrumento da época, pois o piano não existia entre 1706 e 1747, período da criação das peças de Rameau para teclado. Diga-se que, na Itália, Bartolomeo Cristofori, que morreria em 1731, já construíra uma pequena série de pianofortes, e que o inventário da família Médicis indica a feitura de um exemplar em 1698. Pareceria evidente que o instrumento ainda estava em evolução e que o clavecin mostrava-se como preferido através de suas ressonâncias, tanto pelos compositores como pelos intérpretes, em detrimento daquele que, após aperfeiçoamentos, tornar-se-ia o rei dos instrumentos, o piano.

A escrita  de Jean-Philippe Rameau, nos dedos de José Eduardo Martins executando-a em um Steinway, não sofre absolutamente nada. Melhor ainda, essa escrita, graças ao estudo e análise sutis do intérprete, transmite os sentimentos do compositor francês com muito mais verdade humana que jamais poderia ser realizada em um cravo. Tanto é verdade que o cravo, instrumento curioso e atrativo a um pianista, rapidamente torna-se monótono por sua pobreza expressiva, mercê da mecânica de cordas pinçadas, processo técnico que não oferece a esse instrumento nenhuma profundidade de toque. Apoiar fortemente ou delicadamente sobre as teclas, como no órgão, não muda absolutamente o som. A técnica do clavecin é informática e binária, 0 ou 1: afundo a tecla, tenho um som, único, diga-se. Esta característica foi, aliás, a causa da relegação do clavecin em instrumento típico de uma época, seguindo-se o aperfeiçoamento do piano, em que a infinita riqueza do timbre é obtida pela variedade do toucher, graças ao princípio das cordas atingidas por martelos de madeira com feltros nas pontas. Nada disso existe no cravo. Uma mecânica autômata tocaria tão bem quanto um intérprete. Seria essa uma das razões que explicaria, para as poucas possibilidades instrumentais, o emprego, para fins interpretativos, de recursos próprios à condução da frase musical. Entre esses os rubati, accelerandi e ritardandi e figuras de estilo, como a decoração e os tremolos, não apenas para modelar o som, mas também para seduzir o público.

José Eduardo Martins apreende as versões perfeitas de cada peça com o toque aéreo e inspirado que lhe é característico. Não há nenhuma lassidão na escuta, mesmo se ele por vezes não utilize ou pouco acione o pedal forte, processo que lhe teria dado uma maior facilidade na obtenção de certo charme ou sedução do som, outra perspectiva em determinados clímax. Justamente aí reside a riqueza do trabalho de José Eduardo Martins, tudo soa pleno e cantante, pois se ouvem todas as partes, todas as nuances. Todos os estágios sonoros estão em seus devidos lugares, tudo o que deva ser tocado sotto é sotto, tudo o que é canto primordial não sofre qualquer concorrência. Essa perfeição na arquitetura sonora é admirável e procede evidentemente de um enorme trabalho de análise de cada peça, pois nada foi deixado ao acaso. Ao começar a escuta dos dois CDs, estava eu mais circunspecto depois de ouvir as obras de Carlos Seixas (1704-1742), que são mais vivazes, mais variadas, mais latinas, ou seja, mais exuberantes, enquanto as de Jean-Philippe Rameau são mais sóbrias e parecem ter sofrido influência alemã. E então, nestes CDs ramistas, operou-se o charme. A sobriedade da escrita coloca-nos em contato  com um refinamento raro naquela época.

Rameau é considerado o Bach francês. Vê-se como esse período histórico se exprime através da ‘Arte da Fuga’, modelo imposto desde então para os alunos da classe de escritura musical. A escuta da música dessa época remete-nos invariavelmente às mesmas disposições psicológicas e é justamente a essa técnica da fuga, ‘fuga’ em latim, que nós somos tributários. Nossa impressão, tanto para Jean-Philippe Rameau como para Jean-Sébastian Bach, é aquela de um continuum do tempo, herança direta dessa arte no domínio do contraponto, onde a técnica de escritura permite fazer com que a música não pare jamais, a dar a impressão de ir sempre à frente num verdadeiro perpetuum mobile.

O notável François Lesure tece comentários no encarte dos CDs: ‘Nós nos convenceremos ouvindo a gravação de José Eduardo Martins: a preocupação com a arquitetura, assim como a exuberância e o humor da linguagem de Rameau, são perfeitamente valorizados’. Assim, o pianista virtuose nos leva, através de sua incrível e difícil maestria no trato dessa opera omnia, ao objeto intrínseco da escritura ramista. Ele nos libera do tempo, somos conduzidos num mundo paralelo atemporal, metaforicamente, num relógio cuja perfeição mecânica atingiu seu termo. José Eduardo Martins parece mesmo manejar gêneros e lugares, culturas e fronteiras. Ele é o mestre da música, e esta, sob seus dedos, torna-se inebriante e puro deleite após uma longa escuta na tranquilidade. Algo comparável ao que acontece no esporte e nas caminhadas a pé, quando sentimos, após alguns quilômetros, o prazer ilimitado pela liberação de endorfinas, que leva à calma, ao silêncio e ao esquecimento das agruras. Nesses CDs contendo as obras para teclado de Jean-Philippe Rameau, gravados em 1997 na Sala Bulgária, em Sofia, pelo engenheiro de som Atanas Baynov, e lançados pelo selo belga De Rode Pomp em gravação e acústica perfeitas, acontece a elevação de nossa alma, mercê do encontro com um obra magistral, pouco conhecida, pouco difundida em concerto, sob os dedos de um pianista excepcional. Eis a impressão primeira, após sairmos, maravilhados, inebriados de alegria aos escutar essas duas horas de música. E não podemos nos impedir de pensar, tiens, c’est déjà terminé”. (tradução: J.E.M.).

Clique para ouvir no YouTube, com José Eduardo Martins ao piano, Les Cyclopes de Jean-Philippe Rameau

Continuing with the series of posts on Jean-Philippe Rameau, today I publish the French composer François Servenière’s critical appraisal of my recording of Rameau’s complete keyboard works. His appreciation was extracted from the booklet “Une Réflexion sur la Discographie du Pianiste Brésilien José Eduardo Martins” (São Paulo, Giordano, 2012).

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Nos dois próximos posts publicarei a apreciação sucinta do poeta e escritor Menotti de Picchia, quando dos recitais da primeira audição no Brasil da obra original para teclado de Jean-Philippe Rameau em 1971, recitais esses que apresentei no Auditório Itália, em São Paulo. Também apresentarei comentários de Claude Debussy sobre Rameau, assim como apreciações críticas advindas dos recitais e gravação.