São Paulo ouvirá pela terceira vez a integral interpretada ao piano
Para Rameau, o debate cravo piano não tem mais sentido,
na medida em que não é mais o instrumento
que assegura a priori a autenticidade da obra,
mas o estilo do intérprete.
François Lesure
(Extraído do encarte do álbum “Rameau L’Oeuvre de Clavier”
Piano – José Eduardo Martins, selo De Rode Pomp – Bélgica)
Dedicarei os quatro posts do mês de Agosto ao grande compositor e teórico francês Jean-Philippe Rameau (1683-1764), graças às apresentações que farei no auditório da Sociedade Brasileira de Eubiose, em São Paulo, nos dias 20 e 27 de Agosto, a privilegiar a obra completa original para teclado do insigne músico. Textos escolhidos de ilustres especialistas enriquecerão meus comentários sobre a específica obra de Rameau. Esses posts serão mais longos. Faz-se necessária essa atitude. Se compararmos com a divulgação que houve em 1971, quando da primeira apresentação que realizei da integral no Auditório Itália, em que espontaneamente, diga-se, jornais da cidade dedicaram vastos espaços aos eventos, a total ausência nos dias de hoje ratifica aquilo já denunciado várias vezes por Mario Vargas Llosa, a decadência nítida da cultura erudita, largamente mencionada em seu magnífico livro “La civilización del espectáculo”. Outros interesses estão em causa atualmente. Nada a fazer. Os cerca de 3.000 leitores que acompanham meu blog semanalmente terão uma espécie de síntese, mormente relativa à criação de Rameau para teclado. Contudo, não negligenciarei outros aspectos primordiais desse imenso compositor.
Nossas escolhas sempre têm origem. Elegemos nossos autores, não os abandonamos mesmo que possam ficar eclipsados durante certo período, pelo fato de agregarmos outros compositores à lista, no acúmulo das décadas da existência.
O primeiro contato que tive com a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano veio através de dois LPs que meu pai me ofereceu em aniversário no segundo lustro dos anos 1950. Tratava-se de l’Oeuvre pour Clavier, interpretada pela excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958), um dos nomes maiores do piano em França. Jovem, fiquei subjugado pela qualidade da obra e pela interpretação simplesmente extraordinária da pianista (vide blog “Marcelle Meyer – A redescoberta merecida”, 06/03/2007). O texto do álbum vinha com a assinatura do ilustre compositor, ensaísta e pintor francês George Migot (1891-1976). Motivos já apontados em posts bem anteriores aproximaram-me da obra de Jean-Philippe Rameau para teclado. A integral dessa produção, interpretada ao piano, teve de minha parte duas apresentações anteriores em São Paulo. Em 1971, no Auditório Itália, e em 1983, ano do tricentenário de nascimento do compositor, durante a temporada da Sociedade de Cultura Artística. Para a primeira audição, o folder continha expressivo texto do ilustre poeta e escritor Menotti del Picchia (1892-1988), a saudar os eventos. A comemorativa aos 300 anos, devo-a a convite do saudoso musicólogo Alberto Soares de Almeida, dirigente da SCA. Naquele ano, apresentei igualmente a integral no Teatro São Luiz, em Lisboa, e na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. As apresentações em São Paulo e em Lisboa entraram no catálogo de eventos internacionais do ano Rameau publicado pelo Ministère de la Culture da França. Somente em 1997 gravaria a integral original para teclado e algumas das transcrições para cravo de “Les Indes Galantes”, realizadas pelo autor. Deu-se a gravação na sala Bulgária, em Sofia, em 1997, e o lançamento dar-se-ia em Gent em 2000 (selo De Rode Pomp) e em 2009 ( selo Clássicos Editorial).
A presente integral reveste-se de importância singular, mercê da qualidade de uma produção excepcional e também graças à inexistência de uma adesão maior à divulgação, em nosso meio, das obras para teclado de Jean-Philippe Rameau executadas ao piano. Passaram-se 45 e 33 anos das apresentações mencionadas e o silêncio será quebrado neste Agosto, tão pleno de acontecimentos outros.
Ouvir os LPs na interpretação de Marcelle Meyer representou para o jovem que eu era uma das mais sensíveis revelações musicais de minha vida. A corroborar a qualidade dos LPs (Les Discophiles Français, (DF 98-99), o magnífico texto de George Migot. Reproduzo para o leitor alguns segmentos desse ensaio preciso, escrito na década de 1950, frise-se, mas atualíssimo em tantos pontos fulcrais:
“Enquanto esse mestre, entre os maiores, não ocupar o lugar a que tem direito, a História da Música, no século XVIII e nos vindouros, não terá a sua total orientação. Efetivamente, nem a escola austro-alemã, tampouco a italiana desse século XVIII, formularam, juntas ou separadamente, toda a estética, toda a vida, toda a beleza. Essas duas escolas, com seus mestres músicos, não apresentaram esteticamente senão uma parte daquilo que se convencionou nomear classicismo. O teatro sinfônico e lírico de Rameau para o século XVIII é tão importante como aquele de Berlioz e de Wagner para o século XIX e de Debussy para o século XX. O inovador é incontestavelmente Rameau ao renovar a concepção da harmonia obedecendo a uma ordem perfeita. Rameau seguia o ritmo do coração”.
Clique para ouvir no YouTube, com Marcelle Meyer ao piano, Le Rappel des Oiseaux de J-P.Rameau
“Qual a causa do ostracismo de Rameau? A Revolução Francesa fez de Rameau aquele que poderia ser. Representar suas obras em público – e o teatro lírico assim exige – seria revelar a magnificência de um outro regime. Passada a Revolução, a música francesa praticada durante o esplendor de Versalhes foi olvidada, até a aparição de Hector Berlioz, que à época foi consagrado inicialmente como músico europeu, antes mesmo de ter sido reconhecido como compositor francês”. Em vários escritos na década de 1970 já mencionava que uma outra razão teria sido a prevalência dos valores profanos na obra de Rameau, diversamente daqueles de seu exato contemporâneo, J.S.Bach, pois a vasta criação de obras religiosas do Kantor alemão não sofreria questionamentos. A magnificência das óperas monárquicas, com enredos voltados prioritariamente ao mitológico e apoiadas por maquinaria extraordinária, já não mais encontrava espaço na sociedade francesa, no caso específico. Um duro golpe já acontecera quando, ao modelo francês monárquico, foi proposto o modelo da ópera italiana, com enredos populares. Jean-Philippe Rameau e Jean-Jacques Rousseau e os adeptos das duas correntes se antagonizaram na célebre “Querelle des Bouffons” ou “Guerre des Coins” (1752-1754). Dezenas de escritos e panfletos publicados!!! Mais de sessenta!!! Prenúncio da Revolução Francesa. Na realidade, Rousseau, filósofo mas músico diminuto, mais do que pregar uma ideologia visou ao homem Rameau, que fizera comentários não elogiosos a uma sua obra musical, e aquele não esqueceria o fato.
Continuemos com George Migot:
“Sem Intérpretes formados nas escolas de música ao serviço da obra de Jean-Philippe Rameau, público algum pode se reunir em torno dela”.
“A obra para cravo de Rameau traz para a música um testemunho durável, igual em qualidade, mas de diferente natureza se comparada à de J.S.Bach. Seu charme, no senso estrito da palavra, é semelhante na ternura e no patetismo; seu espírito e sua ‘raça’ respondem à proposição de Watteau e exprimem-se em formas cujo movimento e lógica estética realizam um classicismo impregnado da arquitetura do Palácio de Versalhes, satisfazendo ao mesmo tempo a inteligência e a sensibilidade, a Natureza e o Homem. Essas obras para teclado têm uma grande importância: introduzem a opera omnia de Rameau. Não podemos escutar essas composições através de um conhecimento das obras de Bach ou de seus contemporâneos italianos: a prosódia expressiva é diferente, assim como distinta é a de Racine comparada à de Schiller. Rameau, inovador, libera-se de determinadas disciplinas de escritura para realizar outras, a arquitetar, como sói acontecer, a pujança expressiva das harmonias, a ousadia de suas modulações e, por vezes, uma emocionante rudeza em sua sóbria escritura. Não se trata mais de um helenismo sonoro duplo ou triplo, mas de um ato arquitetural sonoro. Música nova, anunciadora de uma nova etapa através de sua escritura vertical, onde os contrapontos são tratados como nervuras na arquitetura”.
George Migot penetra a seguir num campo que, durante as décadas que se seguiram, foi verdadeiramente minado: o instrumento.
“Nesta gravação (referindo-se à Marcelle Meyer) o piano sucede o clavecin para revelar a música encontrável nessas páginas. Semelhante sucessão instrumental está na tradição. Desde a Idade Média, na verdade até o século XVI, na música vocal, muitas vezes uma ou várias partes cantadas de uma obra eram confiadas aos instrumentos, destinando-as em determinadas oportunidades em sua totalidade. A música não perdeu seus direitos. Na sequência histórica, os atuais instrumentos do quarteto de cordas substituíram pouco a pouco os da família anterior, assim como os de sopro, seus antepassados e o órgão moderno, os ancestrais instrumentos do gênero. Uma obra é antes de tudo música e isso além mesmo do instrumento que a faz ser ouvida. Quantas não foram as peças de órgão de Bach que o compositor não tocava ao cravo ou inversamente? As obras antigas não perdem nada de sua vida interior. Obras de Bach são impostas nos concursos de piano. Por que não as de Rameau? Se a cor instrumental renova-se, a música estará sempre presente. Entender que a cor instrumental imponha-se como necessidade absoluta é acreditar que ela supere o intrínseco valor de uma obra. Sem negar, essa não é minha intenção, e há prazer verdadeiro ao ouvirmos os timbres instrumentais antigos. Não devemos chegar a um estado de espírito semelhante ao do espectador que não aceita ouvir uma obra de Corneille ou de Racine a não ser que interpretada por atores pronunciando as palavras à la manière do século XVII e vestidos com roupas realmente empoeiradas da época”. Mencionaria que, no tricentenário de Carlos Seixas (1704-1742), o coordenador do festival dedicado ao ilustre coimbrão, Prof. Dr. José Maria Pedrosa Cardoso, teve a feliz ideia de realizar na cidade que o viu nascer, Coimbra, Colóquio comemorativo. Três recitais foram programados e a obra para teclado do ilustre conimbricense foi ouvida ao cravo e ao piano na magnífica Biblioteca Joanina e ao órgão na bela capela no Pátio das Escolas da Universidade de Coimbra. Recepção plena!!! Incumbi-me do recital ao piano, apresentando mais de uma dezena de Sonatas para teclado.
George Migot atinge o cerne da questão, as fundamentais de Rameau, base primeira de toda a construção de seu “Traité de l’Harmonie réduite a ses principes naturels” de 1722.
“Indo mais longe, podemos pensar que a concepção harmônica e o baixo fundamental ramista permitem a utilização de um instrumento mais ‘ressonante’ do que o cravo, e o fato não se apresenta como atentatório à obra, muito ao contrário. Se Bach ocupa o lugar que lhe é merecido, é também pela razão de sua divulgação ao piano. Por que não se privilegiar Rameau, cuja escritura vertical, a responder a todas as pesquisas sobre a harmonia, pode resultar magnífica resposta graças às qualidades do piano? Sob outra égide, constitui verdadeiro maravilhamento ouvir toda a vida esplendorosa de uma obra fora de sua época instrumental. Essa assertiva permite dizer-se que a música está entre a notas e não sobre as notas e os timbres instrumentais decorrentes”.
Numa idealização de autores que escreveram para o cravo, Migot comenta:
“Poderíamos acreditar que Bach ou Rameau teriam sido ‘seduzidos’ se ouvissem suas composições para cravo executadas ao piano. François Couperin, o Grande, pressentia para suas obras um outro instrumento que o clavecin. Explica-se: organista como Rameau e Bach, tinha ele conhecimento do valor expressivo dos sons sustentados”.
Georges Migot conclui, a observar a escuta da obra de teclado de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano na magistral execução de Marcelle Meyer:
Estamos agora preparados para ouvir todas as obras de clavecin do grande Jean-Philippe Rameau interpretadas ao piano. Cada peça deverá ser analisada na plasticidade de suas linhas, em suas harmonias, em suas modulações onde se manifestam o tonal e o modal, em sua arquitetura. Constataremos, então, que esse conjunto constitui o Pórtico por onde transcorre a música dos séculos passados em direção à música moderna.
Ouçamos essas páginas não somente com a emoção musical (no sentido exato da palavra), mas também descobrindo a nobre arquitetura até nas páginas mais descontraídas, assim como toda a rítmica interior. Assim como Bach, do mesmo período, diga-se, é gênio terminal de uma época da música, é Rameau anunciador de uma nova época. Não é mais um gótico em sua síntese posterior: é uma arquitetura nova. Rameau extasiou seus coetâneos, assim como fez Debussy. Sua linha sonora não é mais decorativa: ela é plástica. Foi criada tanto no Espaço como no Tempo.
Escutemos, com ouvidos renovados e liberados de todos partis pris, a admirável mensagem musical de Jean-Philippe Rameau por Marcelle Meyer”. (tradução J.E.M.).
Ensaio emblemático, que já perdura desde os anos 1950.
Clique para ouvir no YouTube, com Marcelle Meyer ao piano, Gavote et ses doubles de J-P.Rameau
Tendo sido o segundo pianista a gravar a integral de Rameau para teclado (obra original), acrescida de algumas das transcrições feitas pelo autor de “Les Indes Galantes”, apresentarei no próximo post o texto fulcral do compositor e pensador francês François Servenière, datado de 2011, a analisar o álbum mencionado e extraído de “Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins”.
As my recitals in São Paulo with the complete keyboard works by Jean-Philippe Rameau approach, the next four blogs will be dedicated to relevant articles and opinions written on this great composer and my considerations about his works for clavier. To begin with, I translate segments of a critical appraisal made by the French composer, poet and painter George Migot (1891-1976) of the first recording of Rameau’s complete “pieces de clavecin” played on the piano with magnificent artistry by the French pianist Marcelle Meyer (1897-1958).