Análise  crítica de François Servenière

O tempo do Barroco integrista passou.
A utilização de instrumentos de época
deixou de ser um dogma
ao qual os músicos são obrigados a aderir
sob pena de serem tratados de heréticos.
François Lesure
(Extraído do encarte do álbum “Rameau L’Oeuvre de Clavier”
Piano – José Eduardo Martins, selo De Rode Pomp – Bélgica)

No post anterior apresentei o ensaio que o ilustre compositor francês George Migot escreveu para a apresentação do álbum de LPs a conter a opera omnia original para teclado de Jean-Philippe Rameau, a primeira gravação mundial ao piano, realizada pela excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958) nos anos 1950. Ainda hoje essa gravação é referencial, mercê também de toda uma tradição da escuta que, desde o final do século XVIII, foi sendo passada paulatinamente de mestre a aluno, primeiramente tendo como instrumento o pianoforte e, a seguir, o piano.

No presente post, o texto crítico é do igualmente ilustre compositor e pensador francês François Servenière e extraído de seu opúsculo “Une Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins” (São Paulo, Giordano, 2012), a analisar meus 22 CDs gravados na Europa. A análise da segunda gravação mundial da obra original para teclado de Rameau interpretada ao piano, que realizei em 1997 na Sala Bulgária, em Sofia, agora acrescida de algumas das transcrições do compositor a partir de sua ópera-balé “Les Indes Galantes”, transcrições que não constam no registro fonográfico de Marcelle Meyer, substancia um conhecimento maior da interpretação ao piano, assim como evidencia a qualidade inefável da criação ramista. Apresentar na íntegra essa análise crítica implica inserir algumas louvações do músico à minha interpretação. Faço-o com o devido retraimento. Subtraindo-me desses elogios, transmito aos leitores que o texto de François Servenière é coeso, e suprimir frases ou segmentos implicaria perda de unidade.

Clique para ouvir no YouTube, com José Eduardo Martins ao piano, Les Niais de Sologne de Jean-Philippe Rameau

“Novamente num álbum duplo encontramos a excepcional interpretação de José Eduardo Martins, que nos faz esquecer a cada CD que um intérprete, um homem com os dedos de ourives, transmite a mensagem de um compositor. É um feito gravar ao piano a integral para teclado do compositor que a destinou originalmente ao cravo. O conjunto da obra não sofre pelo fato da suposta transgressão se não interpretado e gravado em instrumento da época, pois o piano não existia entre 1706 e 1747, período da criação das peças de Rameau para teclado. Diga-se que, na Itália, Bartolomeo Cristofori, que morreria em 1731, já construíra uma pequena série de pianofortes, e que o inventário da família Médicis indica a feitura de um exemplar em 1698. Pareceria evidente que o instrumento ainda estava em evolução e que o clavecin mostrava-se como preferido através de suas ressonâncias, tanto pelos compositores como pelos intérpretes, em detrimento daquele que, após aperfeiçoamentos, tornar-se-ia o rei dos instrumentos, o piano.

A escrita  de Jean-Philippe Rameau, nos dedos de José Eduardo Martins executando-a em um Steinway, não sofre absolutamente nada. Melhor ainda, essa escrita, graças ao estudo e análise sutis do intérprete, transmite os sentimentos do compositor francês com muito mais verdade humana que jamais poderia ser realizada em um cravo. Tanto é verdade que o cravo, instrumento curioso e atrativo a um pianista, rapidamente torna-se monótono por sua pobreza expressiva, mercê da mecânica de cordas pinçadas, processo técnico que não oferece a esse instrumento nenhuma profundidade de toque. Apoiar fortemente ou delicadamente sobre as teclas, como no órgão, não muda absolutamente o som. A técnica do clavecin é informática e binária, 0 ou 1: afundo a tecla, tenho um som, único, diga-se. Esta característica foi, aliás, a causa da relegação do clavecin em instrumento típico de uma época, seguindo-se o aperfeiçoamento do piano, em que a infinita riqueza do timbre é obtida pela variedade do toucher, graças ao princípio das cordas atingidas por martelos de madeira com feltros nas pontas. Nada disso existe no cravo. Uma mecânica autômata tocaria tão bem quanto um intérprete. Seria essa uma das razões que explicaria, para as poucas possibilidades instrumentais, o emprego, para fins interpretativos, de recursos próprios à condução da frase musical. Entre esses os rubati, accelerandi e ritardandi e figuras de estilo, como a decoração e os tremolos, não apenas para modelar o som, mas também para seduzir o público.

José Eduardo Martins apreende as versões perfeitas de cada peça com o toque aéreo e inspirado que lhe é característico. Não há nenhuma lassidão na escuta, mesmo se ele por vezes não utilize ou pouco acione o pedal forte, processo que lhe teria dado uma maior facilidade na obtenção de certo charme ou sedução do som, outra perspectiva em determinados clímax. Justamente aí reside a riqueza do trabalho de José Eduardo Martins, tudo soa pleno e cantante, pois se ouvem todas as partes, todas as nuances. Todos os estágios sonoros estão em seus devidos lugares, tudo o que deva ser tocado sotto é sotto, tudo o que é canto primordial não sofre qualquer concorrência. Essa perfeição na arquitetura sonora é admirável e procede evidentemente de um enorme trabalho de análise de cada peça, pois nada foi deixado ao acaso. Ao começar a escuta dos dois CDs, estava eu mais circunspecto depois de ouvir as obras de Carlos Seixas (1704-1742), que são mais vivazes, mais variadas, mais latinas, ou seja, mais exuberantes, enquanto as de Jean-Philippe Rameau são mais sóbrias e parecem ter sofrido influência alemã. E então, nestes CDs ramistas, operou-se o charme. A sobriedade da escrita coloca-nos em contato  com um refinamento raro naquela época.

Rameau é considerado o Bach francês. Vê-se como esse período histórico se exprime através da ‘Arte da Fuga’, modelo imposto desde então para os alunos da classe de escritura musical. A escuta da música dessa época remete-nos invariavelmente às mesmas disposições psicológicas e é justamente a essa técnica da fuga, ‘fuga’ em latim, que nós somos tributários. Nossa impressão, tanto para Jean-Philippe Rameau como para Jean-Sébastian Bach, é aquela de um continuum do tempo, herança direta dessa arte no domínio do contraponto, onde a técnica de escritura permite fazer com que a música não pare jamais, a dar a impressão de ir sempre à frente num verdadeiro perpetuum mobile.

O notável François Lesure tece comentários no encarte dos CDs: ‘Nós nos convenceremos ouvindo a gravação de José Eduardo Martins: a preocupação com a arquitetura, assim como a exuberância e o humor da linguagem de Rameau, são perfeitamente valorizados’. Assim, o pianista virtuose nos leva, através de sua incrível e difícil maestria no trato dessa opera omnia, ao objeto intrínseco da escritura ramista. Ele nos libera do tempo, somos conduzidos num mundo paralelo atemporal, metaforicamente, num relógio cuja perfeição mecânica atingiu seu termo. José Eduardo Martins parece mesmo manejar gêneros e lugares, culturas e fronteiras. Ele é o mestre da música, e esta, sob seus dedos, torna-se inebriante e puro deleite após uma longa escuta na tranquilidade. Algo comparável ao que acontece no esporte e nas caminhadas a pé, quando sentimos, após alguns quilômetros, o prazer ilimitado pela liberação de endorfinas, que leva à calma, ao silêncio e ao esquecimento das agruras. Nesses CDs contendo as obras para teclado de Jean-Philippe Rameau, gravados em 1997 na Sala Bulgária, em Sofia, pelo engenheiro de som Atanas Baynov, e lançados pelo selo belga De Rode Pomp em gravação e acústica perfeitas, acontece a elevação de nossa alma, mercê do encontro com um obra magistral, pouco conhecida, pouco difundida em concerto, sob os dedos de um pianista excepcional. Eis a impressão primeira, após sairmos, maravilhados, inebriados de alegria aos escutar essas duas horas de música. E não podemos nos impedir de pensar, tiens, c’est déjà terminé”. (tradução: J.E.M.).

Clique para ouvir no YouTube, com José Eduardo Martins ao piano, Les Cyclopes de Jean-Philippe Rameau

Continuing with the series of posts on Jean-Philippe Rameau, today I publish the French composer François Servenière’s critical appraisal of my recording of Rameau’s complete keyboard works. His appreciation was extracted from the booklet “Une Réflexion sur la Discographie du Pianiste Brésilien José Eduardo Martins” (São Paulo, Giordano, 2012).

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Nos dois próximos posts publicarei a apreciação sucinta do poeta e escritor Menotti de Picchia, quando dos recitais da primeira audição no Brasil da obra original para teclado de Jean-Philippe Rameau em 1971, recitais esses que apresentei no Auditório Itália, em São Paulo. Também apresentarei comentários de Claude Debussy sobre Rameau, assim como apreciações críticas advindas dos recitais e gravação.