A realização maior de um músico de imenso talento
Que o querer tenha sua origem e seu apoio
em coração aberto à nobreza, à beleza e à justiça;
de outro modo é apenas gume fino e duro de faca;
por isso mesmo frágil,
na sua aparente penetração e resistência.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)
O Talento é dom singular, a possibilitar contudo incontáveis destinações. Necessário em qualquer atividade, para que objetivos sejam alcançados em alto nível. Na área musical, o talento só resulta plenamente se houver harmonização de vários ingredientes que integram o músico completo. O compositor pode ser hábil ao escrever música, tudo está posto na partitura, mas se lhe faltar a criatividade, perder-se-á na poeira do tempo. O instrumentista pode ser habilíssimo sob a égide técnica, mas se não existir a essencial transmissão do que está a ser executado, faltar-lhe-á algo, ou muito. Há também o talento multidirecionado, raro, integralizado.
Durante minhas décadas como professor na Universidade de São Paulo tive o grato prazer de receber em minha classe de piano vários talentos amplos e quantidade de outros para os quais a música representava, hélas, apenas uma possibilidade de alguma realização profissional. Afirmei em muitos blogs, ao longo de quase dez anos, que não aceitava em minha sala alunos que tivessem como finalidade única participar de concursos pianísticos. Teria que conviver com discípulo com apenas uma fixação em mente, geralmente abstraído da verdadeira missão de um músico e de um aprimoramento humanístico necessário. Interessava-me, sim, formar o músico, não o simples tecladista. Dizia aos alunos que tocar bem é fulcral, mas não deve ser a única meta, pois a formação cultural homogênea possibilita o vislumbre de um norte, in conditio sine qua non. Sem a abertura da mente, lacunas são perceptíveis e podem tornar-se crônicas e irrecuperáveis.
Menos de dois anos antes de minha aposentadoria, em 2008, bateu à porta de minha sala na Universidade um aluno por quem tinha simpatia, mas não convívio. Em mais de uma oportunidade cheguei a ouvi-lo tocar, mercê da deficiência acústica notória existente àquela altura nas salas de aula do Departamento. Não sei se persiste. Sabia-o talentoso e, inclusive, promissor regente coral. Procurou-me por ter sido dispensado pelo professor que me antecedera em sua orientação pianística. Luiz Guilherme Godoy, olhar firme a não permitir tergiversação, cativou-me de imediato. Quis ouvi-lo e, à medida que tocava uma obra complexa e de grande interesse, o “Estudo nº 1″ de Osvaldo Lacerda, percebi de imediato que estava diante de um diamante raro em processo de lapidação. Logo após contou-me sua trajetória, pois, paralelamente ao curso universitário, estudava com o competente professor e pianista da Escola Municipal de Música, Renato Figueiredo. Durante muitos anos Renato foi mestre e, diria, mentor humanístico de Luiz Guilherme, pois ajudou-o a trilhar o longo caminho… O então aluno tem gratidão eterna a Renato e à sua esposa Fabiana, convidando-os, inclusive, para padrinhos de seu casamento, realizado em Viena. Gratidão, princípio fundamental para a harmonização de nosso interior. Externou-a também em relação à minha orientação, comovendo-me. Certamente guarda lembranças edificantes de outros mestres. Um belo caráter.
Foi com imenso gosto que acompanhei seus estudos até a brilhantíssima conclusão na universidade. Ele formado e eu aposentado, durante muitos meses ainda o assisti em minha casa com alegria e certeza de sua realização futura. Minha mulher Regina e eu conversávamos sobre essa “santa” altivez de Luiz Guilherme. Talento saindo pelos poros, execução firme, consciente, e o olhar sempre direto. Suas interpretações demonstravam a compreensão da obra musical além da partitura. Fiel ao texto, Luiz Guilherme demonstrava a rara qualidade da criatividade. Um pianista com reais méritos que se tornaria um ótimo pianista acompanhador, caminho indispensável para seu trilhar iluminado.
Lutou acirradamente pela subsistência. Orgulhava-se de sua origem. Seu dia era interminável, pois tinha pequenas atividades musicais para conseguir o prosseguimento de seus estudos. Renato Figueiredo e eu, nesse período difícil para Luiz Guilherme, demos esse apoio musical e externávamos plena amizade. Regina e eu tivemos o jovem promissor à nossa mesa em mais de um almoço, sempre nesse entendimento sereno.
Um belo dia, Luiz Guilherme chegou à aula muito sorridente. Obtivera bolsa para a Europa. Alegria plena do velho professor e igualmente de seu mestre Renato.
Luiz Guilherme singrou mares, sempre com o pensamento cônscio do valor autêntico, mas a guardar qualidades ímpares, a simplicidade e a gratidão. Disciplina, concentração, dedicação extrema fariam com que, pouco a pouco, completasse cursos em Portugal, na Alemanha e na Áustria, aperfeiçoando-se com mestres irretocáveis, um deles brasileiro, o pianista Paulo Álvares.
A ascensão de Luiz Guilherme evidencia bem o talento extraordinário do músico de apenas 28 anos de idade. A base sólida instrumental fê-lo estagiário como pianista preparador da Wiener Singakademie, coro da Konzerthaus de Viena, nas programações do biênio 2013-2014 junto a maestros como Sir Simon Rattle, Valerye Gergiev e Gustavo Dudamel. Logo a seguir, em 2015, teria a indicação para assistente da direção artística da instituição, que o levou a apresentações em centros essenciais da Europa.
O grande talento, possuidor de mente privilegiada, extraordinária formação musical, friso, bom senso e vontade férrea, fez com que atingisse nesse 2016 cumeeira jamais alcançada por músico brasileiro. Após rigorosíssima seleção de nível internacional foi apontado para o cargo de Kapellmeister (mestre de capela) do mais famoso conjunto vocal de meninos do planeta, os “Meninos Cantores de Viena”. A crítica europeia não cessa de elogiá-lo e uma delas destaca sua interpretação “autenticamente vienense”. A agenda de Luiz de Godoy estende-se até 2019 e o jovem brasileiro estará a conduzir o célebre coro em turnês pela Europa, Ásia e América do Norte.
Noite Feliz pelos Meninos Cantores de Viena
Saliente-se que nesses três anos em um dos mais importantes centros musicais do mundo, Viena, Luiz Guilherme já acumula outras funções de extrema responsabilidade que lhe foram confiadas, mercê desse talento hors série que enfatizo sempre: regente na Wiener Songakademie, Konzerthaus e da Chorakademie da Ópera Estatal de Viena.
Em uma de suas últimas mensagens (05/12), respondendo a um e-mail que lhe enviara, escreve: “Ainda não havia respondido por ter ficado o dia todo envolvido com longos ensaios da Missa in Tempore Belli, de Haydn, na companhia agradabilíssima e sob a direção exemplarmente respeitosa de Zubin Mehta. Esse grande maestro trabalhou hoje pela primeira vez com as ‘minhas crianças’ para um concerto que se realizará na semana que vem. Tendo chegado em casa agora, vim direto para o computador para redigir este e-mail”.
Adeste Fideles pelos Meninos Cantores de Viena
Repasso ao leitor um fato do cotidiano que me foi transmitido pelo dileto amigo Carlos Augusto Souza Lima, que, em recente viagem à Europa, visitou-o em Viena. Luiz Guilherme fê-lo ouvir um ensaio com os Meninos Cantores. Este findo, pediu para que um dos meninos, de apenas 11 anos, permanecesse na sala, a fim de cantar uma música para Carlos Augusto. O miúdo, natural da Albânia, cantou de maneira angelical uma pequena peça, a emocionar o visitante.
Toda essa ascensão de Luiz Guilherme de Godoy teve reconhecimento extraordinário, pois recebeu no dia 10 de Dezembro, em Viena, o Prêmio da Fundação Erwin Ortner, concedido anualmente a uma só personalidade do universo coral europeu. A lista que vem desde 1988 não deixa dúvidas quanto ao mérito insofismável de Luiz de Godoy.
Quanto à Universidade de São Paulo, Luiz Guilherme de Godoy torna-se certamente, entre alguns que lá se formaram com méritos e desenvolvem carreiras brilhantes, o nome maior em sua história na área musical.
Ao bater à minha porta na universidade, Luiz Guilherme deixava ao largo mágoas que poderiam desviá-lo dos altos desígnios que já pululavam em sua mente privilegiada. Tantos não resistem aos momentos difíceis… Vivendo em Viena de incontáveis tradições exemplares, totalmente diversa de nossa realidade, hélas, escreve Luiz Guilherme (22/12): ” Mesmo num país como a Áustria, onde música é matéria obrigatória nas escolas desde sempre, onde todo professor de ensino infantil tem que tocar um instrumento e cantar – no concurso de admissão! -, onde o ingresso para a ópera custa 3 euros… mesmo aqui há muitas medidas no sentido de tornar a arte ainda mais acessível, para atingir a todos os que possam se beneficiar dela. E a gente, por aí, indo na contramão disso, perdendo orquestras, perdendo festivais. Que tristeza!”. Nosso lamentável cotidiano cultural sem quaisquer perspectivas de melhoras!
Conhecendo o caráter íntegro de Luiz de Godoy, tenho a convicção de que o futuro revelará o sábio semeador das mensagens musicais. O diamante foi lapidado e já pertence aos teatros e salas espalhados pelo mundo. Renato Figueiredo e eu acompanharemos com felicidade interior intensa, essa luminosa carreira que se apresenta.
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Estava a inserir o post no presente blog, quando recebo de meu diletíssimo amigo e grande compositor português, Eurico Carrapatoso, um link que leva à sua criação “Dece do Ceo”, a partir de soneto do vate maior de nossa língua, Luiz Vaz de Camões. A obra foi estreada no último dia 17, no monumental Convento de Mafra, e teve como intérpretes: Joana Seara (soprano), Coro infantil, Coro misto e Coro de Câmara da Academia de Música de Santa Cecília, seis órgãos históricos comandados por Rui Paiva, Direção do maestro António Gonçalves (vide blog “Dece do Ceo” 28/05/16). Tão logo no YouTube indicarei o link aos leitores.
Nesse ambiente natalino insiro outra obra sublime de Eurico Carrapatoso interpretada pelos seguintes músicos: Angélica Neto – Soprano, António José Carrilho e Sofia Norton – Flautas de Bisel, Jenny Silvestre – Cravo, Coro e Ensemble instrumental Olisipo sob a direção de Armando Possante.
Ó meu Menino (excerto do Magnificat em Talha Dourada)
A todo leitor que me tem acompanhado nessa longa jornada a observar as insólitas transformações por que passa o cotidiano mundial, desejo um Natal de intenso congraçamento em torno da data maior da cristandade.
This post is about the brilliant career of my former student at Universidade de São Paulo, Luiz Guilherme de Godoy. From a humble background, he has had to overcome countless difficulties to pursue his dreams. With unique talent, he got a scholarship to Europe, studying in Portugal, Germany and Austria. Today he is choral conductor of the best known choir in the world, the Vienna Boys’ Choir and has just received the Erwin Ortner Award, given annually for a personality active in the field of collective singing in Europe. Luiz Guilherme is no doubt the greatest name in the history of Universidade de São Paulo in the area of music education and matter of pride for his former mentors, pianist Renato Figueiredo (Municipal School of Music) and me.