Navegando Posts publicados em novembro, 2016

Aspectos relativos ao recital piano solo

É melhor debater ideias sem regulamentá-las
do que regulamentá-las sem as ter debatido.
Joseph Joubert (1754-1824)

A recepção à epígrafe do post anterior, a abordar conceitos sobre a atividade “profissional” do pianista, causou-me surpresa. Reproduzo-a: “A carreira de pianista também é muito difícil. Há tanta dedicação! Se não houvesse essa vocação, esse talento, essa vontade, nada seria compensador. A recompensa é mais espiritual do que qualquer outra coisa: porque, material, certamente não é! A pessoa se dedica tanto! É uma experiência espiritual que eleva a pessoa. A pessoa penetra naquela música, e fica alheia do mundo por aquele período. Acaba levitando dentro daquela música.” Os inúmeros e-mails não deixaram de louvar, sem exceção, a pianista Eudóxia de Barros em seu trabalho cotidiano em prol da música brasileira e a epígrafe em apreço de Henrique Morelenbaum.

Considerando-se pianistas de minha geração, não é difícil concluir que havia no país uma maior oportunidade para recitais de piano, com cachets pertinentes. Apenas na cidade de São Paulo o pianista se apresentava algumas vezes ao ano e com salas abrigando bom público. Quase todos de minha geração tocaram, como exemplo, no Teatro Colombo, no Largo da Concórdia, no Brás, que seria consumido pelas chamas em 1966. Naquele período havia menos entraves burocráticos e as instituições, públicas ou privadas, convidavam o músico, recolhiam os impostos devidos e pagavam o que lhe era devido. Quanto aos entraves burocráticos, Eudóxia de Barros, em “Valeu a Pena?”, apresenta generosamente os passos para um intérprete conseguir dar entrada no Ministério da Cultura, a fim de obter o registro necessário e daí partir em busca de patrocinadores!!! Eudóxia de Barros comenta: “Já me aconteceu de que quando consegui o patrocinador, o prazo de validade do registro no MINC tinha expirado. Voltamos à estaca zero e daí resolvi nunca mais cuidar dessa parte tão burocrática e cansativa. Enfim, é muito complexa a intermediação entre as entidades que contratam e o pianista que precisa se atualizar com todos esses procedimentos para manter sua carreira!”. Servindo-me de várias observações pontuadas no livro “Valeu a Pena?”, a pianista Eudóxia de Barros, que percorreu centenas de cidades e Estados brasileiros, exceção a Tocantins – certamente aquela que visitou o maior número de localidades do país para recitais em teatros e auditórios -, verifica-se sensível declínio da apresentação piano solo. Factível uma das considerações, a apontar que o recital solo atualmente tem menor apelo junto às instituições e promotores, em detrimento da apresentação conjunta. Eudóxia de Barros é enfática ao observar que “as Secretarias de Cultura não vêm se interessando muito por recitais de piano. Não está fácil conseguir concertos, porque as Secretarias de Cultura, que existem aos milhares no Brasil, quase não contratam mais recitalistas. O pianista depende, sobretudo, de patrocinadores ou do SESC e SESI”. Sob outra égide, bem menos causadora de impacto no imenso Brasil, as “Grandes” Sociedades de Concerto, quando agendam um pianista pátrio – contam-se estes nos dedos de uma apenas das mãos – fazem-no prioritariamente no formato piano e orquestra.

Henrique Morelenbaum tem extrema razão ao dizer que “a recompensa é mais espiritual do que qualquer outra coisa: porque, material, certamente não é!” Tirando-se os que “se contam nos dedos de uma apenas das mãos”, os pianistas residentes no país sabem que os cachets são bem menores do que antanho, pois o interesse diminuiu. Se amparada pela lei Rouanet e por poderosos patrocinadores, as possibilidades se apresentam. Considere-se que a música popular e as “celebridades ‘vocais’ popularescas” têm consideravelmente uma guarida extremamente mais ampla – público avassalador em gestual uniformizado – e, em acréscimo, casos de desvios vêm a público. A decadência da arte erudita, enfatizada por Mario Vargas Llosa no livro “La Civilización del Espectáculo”, e a certeza de promotores visando à quantidade de público e rarissimamente à qualidade do ouvinte, explicariam em parte a queda dos valores eruditos. O lucro a preponderar sobre a Cultura. Antolha-se-me que, na música erudita ou de concerto, a apresentação individual de um intérprete não pertencente à “seleta” elite bafejada pelo binômio patrocínio-holofote, estará a cada ano mais restrita a público diminuto, mas geralmente qualificado. Diria, audiência de resistência. Sem o fator formado pelo binômio acima, o intérprete individual estará a buscar a “recompensa espiritual” mencionada  por Morelenbaum. Comentei, em tantos blogs, que voluntariamente muitos pianistas altamente qualificados não têm propensão a situações necessárias para serem ungidos, como a constante viagem ou o holofote que pode obliterar intenções mais dignas. Mencionei várias vezes meu Mestre em França, o pianista Jean Doyen (1907-1982), pertencente a um nível de primeiríssima elite, mas que era avesso às “badalações” mediáticas.

Para o pianista que pratica repertório conhecido do grande público, que insere composições brasileiras e, por motivos tantos, obtém patrocínios, as chances de ser abrigado pelas leis de incentivo são maiores. A realidade, contudo, é mais dramática para aqueles que, sem acesso a poderosos patrocinadores e consequente “amparo” da Lei Rouanet, insistem no piano solo em apresentações fortuitas. Se convidados por Universidades no país, têm de se sujeitar aos pro labores apenas; se lembrados por entidades particulares, ficam a mercê do imponderável. A universidade surgiria como “refúgio” de sobrevivência e possibilidade até de rumos outros, devido ao “canto das sereias” administrativo.

Considerando parcela apreciável de pianistas docentes na universidade, a hipótese de drástica desmobilização quanto à eventual carreira artística é real. São necessárias disciplina férrea e perseverança para conciliar aulas, burocracia imensa na Academia e o estudo pianístico e, nesse aspecto, Eudóxia de Barros mostra-se bem cética em “Valeu a Pena?”, justamente pelo desvio de foco. Apenas não menciona, por desconhecer possivelmente as entranhas universitárias, que incontáveis reuniões intramuros são estéreis, como, aliás, majoritariamente na vida política do país.

O consagrado pianista francês Désiré N’Kaoua – meu colega durante curso na classe da legendária Marguerite Long – afirmou recentemente, em longa e substancial entrevista para o site “Pianodoux”, que “o que eu não diria, sob pena de ser acusado de ‘tentativa de desmoralização da legião’ de pianistas, é que sou bem pessimista no que concerne ao futuro do piano, pelo menos em sua formatação de recital público. Creio que o piano está intimamente ligado ao período romântico, durante o qual ele era essencialmente vocal e não destinado a se tornar o símbolo da destreza e da percussão, tal qual o é atualmente. Outro motivo da redução do público: uma visão geopolítica da música ocidental nos revela rapidamente os gigantescos territórios que não mais estão dispostos a receber essa música essencialmente europeia, que alimentou toda a nossa existência. A rapidez dos meios de transporte e a propagação de CDs de todas as origens pelo planeta tiveram como consequência uma incrível proliferação de aprendizes-pianistas, assim como de concursos, sendo que esses oferecem uma sobrevida de curta duração ao laureado – até a aparição de um novo ungido -, abandonando-o à própria sorte, tornando o primeiro, doravante, um pianista em busca de algum concerto. Paralelamente ao rush de novos pianistas, o público que os acolhe encolheu drasticamente”. Em meu livro “Témoignages – Entretien avec le pianiste brésilien José Eduardo Martins” (Paris Sorbonne, 2012), abordava o tema e dizia que, anualmente, legião de pianistas do Extremo Oriente inunda concursos internacionais de piano, habilíssimos instrumentistas, mas na grande maioria com ausência de ideias precisas e criativas.

Pareceria evidente que há mercado para a quantidade de pianistas premiados em concursos internacionais, geralmente por período curto, raramente a ultrapassar um ano. A proliferação dos certames e a quantidade de primeiros prêmios agraciados por numerosos recitais e concertos, logo após a láurea máxima, não são garantias de carreira certa. Seriam as “leis da natureza” a minimizar o laureado anterior, a fim de promover o novo talento. Proliferam os exemplos. Essa assertiva ocorre basicamente em todas as áreas. Uma quantidade mínima consegue prosseguir com uma agenda de concertos preenchida. Vários fatores envolveriam o pianista eleito nesse desenvolvimento a ultrapassar a barreira do prazo vencido: talento indiscutível, patrocinadores relevantes, contatos certos e repertório. Muitos talentos sucumbem ao day after da premiação pelo fato da limitação de repertório e da impossibilidade de, em curto prazo, edificá-lo. O mercado é implacável e a depressão pode instaurar-se.

François Servenière elabora outra metáfora àquela que apresentei no livro citado. “Em seu livro da série ‘Témoignage’, publicado pela Sorbonne, do qual fui um dos entrevistadores, você estabelece metáfora em algumas páginas sobre a existência na ponta do iceberg do repertório super frequentado e na massa submersa, escondida, do repertório pouco tocado ou nunca programado. No âmbito da interpretação, proponho outra metáfora, da montanha. Há aqueles raríssimos, que conquistaram os 14 picos himalaios acima dos 8.000 metros e tantos outros que repartem os cerca de 200 picos na faixa dos 7.000m, também no Himalaia. Virtuosidade na ascensão, perigos enfrentados, risco mortal nas duas faixas de altitude evidenciam profundo valor. Todavia, a mídia apenas projeta todos os holofotes nos ungidos que realizaram o feito do acesso aos 14 picos, as cumeeiras, o Olimpo!!! Casta à parte e poderíamos considerar normal a atitude. Diria que a metáfora relativa ao Himalaia bem se aplica à elite na música, no caso, aos pianistas. A parte submersa do iceberg ou os dificílimos picos logo abaixo dos 8.000m não contam para a mídia. Ficam nas profundezas (iceberg) e na sombra (montanha), respectivamente. Apenas a elite tem o privilégio da unção, independentemente de talentos e qualidades individuais” (traduções: JEM). O certo é que, se aqueles que tiveram acesso aos picos próximos aos 8.000m têm pouca divulgação, menos ainda os que, meritórios, não atingiram os 7.000m. Lembremo-nos que a maior altitude abaixo dos 7.000m está distante da cordilheira do Himalaia. Trata-se do Aconcágua (6.962m) na Cordilheira dos Andes. Metáforas à parte, o recital de piano fora das condições de elite está em crise.

O tema é rico, polêmico e a ele darei espaço no próximo blog, aproveitando trechos da entrevista e da mensagem dos ilustres músicos Désiré N’Kaoua e François Servenière, respectivamente, que acrescentam, inclusive, outros temas significativos relativos à interpretação.

Nowadays space for soloists dwindles as sponsors focus primarily on pop shows and, in terms of classical music, on orchestras, since grandiose shows capture more public and bring in receipts in ticket sales. Only star soloists – in special foreign ones – have a chance and audiences get more of the same, for they keep hearing the same things again and again. Winners of international competitions may become overnight superstars, but just until the next winner is chosen. Profit prevails over culture and legions of excellent soloists remain unknown because financial backers prefer a handful of celebrated performers. As Vargas Llosa announced in his book “Notes on the Death of Culture: Essays on Spectacle and Society”, high culture is dying, replaced by mere entertainment.

 

A pianista Eudóxia de Barros e a revelação por inteiro

A carreira de pianista também é muito difícil.
Há tanta dedicação! Se não houvesse essa vocação,
esse talento, essa vontade, nada seria compensador.
A recompensa é mais espiritual do que qualquer outra coisa:
porque, material, certamente não é!
A pessoa se dedica tanto!
É uma experiência espiritual que eleva a pessoa.
A pessoa penetra naquela música,
e fica alheia do mundo por aquele período.
Acaba levitando dentro daquela música.
Maestro Henrique Morelenbaum

O que realmente importa em qualquer biografia
é o que a pessoa sente e não aquilo que fez.
Glenn Gould

Dentro das leituras existentes na ampla área musical destaca-se a biografia. Pode ser escrita pelo autor ou por outro, no caso, através de depoimentos ou material documental. Não poucas vezes a biografia adquire a roupagem de romance e todo o cuidado deve ser tomado para que equívocos não ganhem status de verdade.

Gosto do gênero biografia de músicos, mormente dos pianistas. Jamais as narrativas têm semelhanças, graças às categorias diferenciadas na abordagem.  Wilhelm Kempff  (1895-1991) narra com sensibilidade seus anos de juventude e cativa pela intensa visão espiritual (“Cette Note Grave – les années d’aprentissage d’un musicien”, Paris, Plon, 1955); Arthur Schnabel (1882-1951) aborda aspectos fundamentais relativos à interpretação e ao período em que viveu (“My life and music”, New York, Dover, 1988); Vladimir Horowitz (1903-1989) explora os muitos aspectos da carreira, comenta sobre pianistas coetâneos, evidencia suas preferências repertoriais (“Evenings with Horowitz” – entrevistas concedidas a David Dubal, New York, Citadel, 1994); Claudio Arrau (1903-1991) discorre sobre sua formação musical, carreira, repertório e, num anexo, tem longo e essencial texto em que aborda o intérprete frente à psicanálise (“Arrau Parle”, – entrevistas concedidas a Joseph Horowitz, Paris, Gallimard, 1985); Heinrich Neuhaus (1888-1964) realiza verdadeira explanação da sua metodologia de ensino, exemplificando processos técnicos, sem abandonar dados concernentes à sua trajetória de pianista e professor (“L’Art du Piano”, Tours, Van de Velde, 1971);  György Czifra (1921-1994) e Zhu Xiao Mei (1949- ) viveram experiências traumáticas. Aquele, prisioneiro dos nazistas e, após, de soviéticos durante a segunda grande guerra. Desde a infância, a trajetória pianística gloriosa teria lances dramáticos e, como toda a técnica pianística e a interpretação tiveram a mais absoluta naturalidade, pouco se refere a elas (“Des canons et des fleurs”, Paris, Laffont, 1977). Zhu Xiao Mei viveu a Revolução Cultural na China e descreve com agudeza os “campos de reeducação” onde esteve detida e sua prática digital-pianística sem piano, a visualização de fuzilamentos de seus mestres e todo o longo caminho até chegar a Paris e desenvolver carreira sólida (“La Rivière et son secret”, Paris, Laffont, 2007); Arthur Rubinstein (1887-1982), nas autobiografias “Les jours de ma jeunesse”, de 1973, e “Grand est la vie”, de 1980 (Paris, Laffont) e Magdalena Tagliaferro (1893-1986) em “Quase tudo” (Rio de Janeiro, 1979) permanecem preferencialmente nas exuberantes trajetórias, mas em abordagens nas quais as apresentações e o convívio social preponderam; João de Souza Lima (1898-1982) narra sua rica trajetória como pianista – dileto aluno de Marguerite Long -, maestro, professor e compositor (“Moto Perpétuo”, São Paulo, Ibrasa, 1982); João Carlos Martins (1940- ) esclarece seu envolvimento com a integral de J.S.Bach para teclado e os vários processos pianísticos criados, mercê de infortúnios que sofreu com as mãos (“Conversas com João Carlos Martins” – entrevistas concedidas a David Dubal, São Paulo, Green Forest do Brasil, 1999); Guiomar Novaes (1895-1979) apresenta-se em estudo multidirecionado onde não faltam depoimentos da pianista (“Uma arrebatadora história de amor” por Maria Stella Orsini, São Paulo, Editora C.I, 1992);   Glenn Gould (1932-1982) pormenoriza determinação consciente em suas interpretações, tantas delas polêmicas (“Glenn Gould – Uma vida e variações”, contém inúmeros depoimentos colhidos por Otto Friedrich, Rio de Janeiro, Record, 2000); Daniel Barenboim (1942- ), pianista, pensador e maestro, tem na polivalência uma de suas marcas essenciais, evidentes em duas autobiografias (“La musique éveille le temps” e “La musique est un tout”, Paris, Fayard, 2000 e 2008, respectivamente); Marguerite Long (1874-1966), em seus livros sobre três compositores franceses fulcrais, Gabriel Fauré, Claude Debussy e Maurice Ravel, expõe não apenas o convívio com os notáveis músicos, mas aspectos interpretativos deles aprendidos (“Au piano avec Gabriel Fauré”, Paris, Julliard, 1963; “Au piano avec Claude Debussy”, Paris, Julliard, 1960; “Au piano avec Maurice Ravel”, Paris Julliard, 1971). Considere-se que as três obras de grande importância, mas escritas bem tardiamente contêm, por vezes, fatos não comprovados. Seria Janine Weil que, ao escrever uma biografia da legendária pianista e professora, levaria ao leitor sua trajetória de maneira mais totalizante (“Marguerite Long, une vie fascinante, Paris, Julliard, 1969).

Essa breve panorâmica apreende fatores essenciais para a compreensão do pianista consagrado e do longo caminho percorrido. Cada um aborda, à sua maneira, as causas que o conduziram ao reconhecimento planetário. Contudo, processos do estudo pianístico ficam por vezes nebulosos, pois estaria mais em evidência o todo do aprimoramento.

Em “Valeu a Pena? – Conversando com Eudóxia de Barros”, entrevistas formuladas e colhidas por Rosângela Paciello Pupo (Brasília, Musimed, 2016), a pianista Eudóxia de Barros narra sua trajetória desde a infância e sua vocação insofismável, demonstrada desde os tenros anos, é largamente exposta. Os estudos no Brasil, em França, nos Estados Unidos e na Alemanha deram-lhe base sólida para a carreira escolhida. Apresentou-se com recepção crítica elogiosa, em muitos países europeus, nos Estados Unidos e na América Latina. Carreira consolidada, pois. Contudo seria, como afirma, a sua ligação umbilical ao Brasil que determinaria durante décadas sua afirmação como pianista pátria, nitidamente ratificada. Caminho escolhido, importaria a Eudóxia expor o seu envolvimento com a Música e, ainda mais, com o piano. “Valeu a Pena?” se diferencia das biografias apontadas pela visão “regional” da pianista, voltada preferencialmente para cenário no Brasil, país que apresenta severas deficiências relativas à cultura musical erudita ou clássica. Mostra-se corajosa nesse trabalho dignificante ao levar música de qualidade aos rincões mais afastados do nosso território.

Largamente comenta todos os processos de sustentação nessa dualidade imprescindível para o intérprete, a prática e a apresentação pública. Não sem razão, no raciocínio de Eudóxia a palavra “estudo”, como necessidade imperiosa, está presente em todos os capítulos. Seria ela a chave mestra, verdadeira fixação, que levaria a pianista a se manter ativa durante tantos decênios. Disciplina espartana quanto ao estudo, preparação para as apresentações, preferência repertorial, cotidiano voltado à música, mas também ao vestuário, às relações humanas, à saúde, ao saudoso marido, o compositor Osvaldo Lacerda, e a um verdadeiro “guru”, que ainda ouve seus programas montados para apresentações a cada ano, o maestro Henrique Morelenbaum, reiteradas vezes são mencionados. Rosângela Paciello Pupo, de maneira extremamente organizada, soube orientar as “entrevistas” para que nada pudesse ficar à margem.

Consideraria “Valeu a Pena?” um livro testemunhal de ordem prática. Quantas não são as vezes que Eudóxia de Barros se expõe de maneira confidencial? Dessa assertiva vem parte do interesse do livro. Revelar-se por inteiro, a não ocultar ao leitor pormenores “laboratoriais” rigorosamente íntimos, demonstra certezas, coragem e até possibilita armadilhas. Há retornos constantes a verdadeiros “dogmas” relacionados ao mencionado estudo diário inflexível, a obedecer regras e de preferência com horários fixos; ao estudo permanente com as mãos separadas; à memorização; à colocação de dedilhados em toda a partitura, mais ainda, em cada figura da trama musical; à prática diária da técnica pura; à preparação no dia de recitais e concertos, dela fazendo parte o estudo prolongado a anteceder a apresentação; à carreira como eixo paradigmático primordial em sua vida. Exaustivamente Eudóxia responde às perguntas inteligentes de Rosângela e, em determinadas reflexões sobre música e interpretação, demonstra até franqueza constrangedora. O leitor poderia se perguntar se estaria aí uma falha. Diria que temos em seus depoimentos a mais absoluta sinceridade, o que é raríssimo entre os intérpretes em suas biografias. Essa sinceridade é porosa, faz jorrar em cada página a descoberta de Eudóxia de Barros por inteiro e não seria essa autenticidade um dos aspectos a tornar “Valeu a Pena?” um livro de forte interesse? A ausência desse desnudamento não faria falta em tantas biografias, entre as quais algumas das acima citadas?

Sob outra égide, basicamente inexiste nas biografias mencionadas o autoelogio. Por questões éticas, de modéstia – ou ausência dela -, de foro íntimo, dificilmente um intérprete em texto faz referência às suas qualidades. Eudóxia, não como vanglória, frise-se, mas como necessidade de expor suas virtudes, revela essa franqueza que pode ser apreendida como vontade de transmitir aos seus incontáveis ouvintes qualidades que eles já tinham captado e que o documental escrito apenas solidifica em suas mentes. Proliferam os superlativos voltados à excelência das oitavas, da velocidade, da compreensão e do fraseado, da memória. Todas essas exaltações transcorrem normalmente e Eudóxia transmite o que ela sente, entende e assiste ao verificar suas facilidades frente ao teclado. Quem teria essa coragem? Quanto à memória, não poucas vezes ressalta ser inadmissível a interpretação tendo-se à frente a partitura em recital solo. Nesse aspecto, entendo o conceito passível de interpretação. Nem todos tem a memória de Eudóxia e, como narra em “Valeu a Pena?”, há todo um científico trabalho para se decorar uma obra. Contudo, tem-se de ver caso a caso. O grande Sviatoslav Richter (1915-1997) confessaria que, nas últimas décadas da vida, apresentava-se com partitura à frente. Assim procedeu tardiamente Roberto Szidon (1941-2011), dessa maneira habitualmente desempenha brilhante carreira o pianista português Arthur Pizarro (1968-  ). Certamente todos tiveram ou têm as obras absolutamente digeridas e a presença da partitura serve certamente como um conforto, a fim de que nada de anormal possa ocorrer. Apenas isso. Sabe-se que ela lá está. Assisti a um sem número de excelentes pianistas na Bélgica interpretando ou integrais ou recitais com obras diversas com a partitura como ajuda. Pessoalmente, mormente nestes últimos anos, assim procedo. O grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro já afirmava que “o tempo é insubornável”.

Uma das qualidades inalienáveis de Eudóxia, exposta com insistência, é o culto à música brasileira. Revela inquestionável missão, cruzada sem trégua a que se dedica desde jovem, não apenas a cultuar compositores consagrados, como Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1897-1986), Camargo Guarnieri (1907-1993) e seu discípulo e marido da pianista, Osvaldo Lacerda (1927-2011), mas também autores que eram desconhecidos do grande público. Dedicou-se igualmente ao repertório pátrio semi-erudito, clássico-ligeiro na visão de seu até hoje conselheiro musical, o Maestro Henrique Morelenbaum. Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935) tiveram suas obras estudadas, interpretadas e propagadas pelos mais distantes rincões do país. Contam-se às centenas as cidades brasileiras visitadas pela pianista nessa hercúlea tarefa. Do clássico-ligeiro ao popular tem-se um passo e Eudóxia demonstraria em sua carreira intrínseca intimidade com a música de Zequinha de Abreu (1880-1935) ou com grupos que praticam o chôro, os denominados Chorões. Polivalência relativa à música brasileira, do erudito ao popular.

Não tendo trilhado carreira acadêmica, Eudóxia faz críticas ao trabalho dentro da universidade e suas obrigações. Crê que a sobrecarga intramuros impeça o desenvolvimento de uma carreira como a que empreendeu.

Um longo capítulo apresenta situações hilariantes pelas quais a pianista passou ao longo da carreira. Tem muita graça, realmente diverte o leitor.

Apêndices apresentam o enorme repertório de Eudóxia de Barros. Verifica-se que, após perpassar parcela das composições sacralizadas e comuns a todos os pianistas, mais e mais ela revelou esse notável trabalho voltado aos compositores brasileiros. Um mérito indiscutível. Também sua larga discografia, críticas recebidas no Brasil e no Exterior e uma instigante entrevista de seu conselheiro musical – Maestro Henrique Morelenbaum – que descreve o perfil pianístico de Eudóxia, complementam o copioso livro. Serve o depoimento do ilustre músico para evidenciar esse entendimento profícuo estabelecido entre ambos.

“Valeu a Pena?” é obra obrigatória na biblioteca de músicos e leigos, mormente dos estudantes que terão em mãos um verdadeiro vade mecum voltado ao cotidiano pianístico, do estudo à apresentação pública, a ratificar in adendo, com letras maiúsculas, a imperiosa dedicação e disciplina para que objetivos sejam atingidos. Essas palavras apenas corroboram o caminho meritório e consagrado da pianista Eudóxia de Barros.

Today’s post addresses the book “Valeu a Pena?”, a series of conversations between the Brazilian pianist Eudóxia de Barros and journalist Rosângela Paciello Pupo. With honesty and candor, Eudóxia talks about a lifetime devoted to music: the discipline required for her daily piano practice, performance preparation routines, the importance of playing from memory, choice of repertoire, recordings, her option for the promotion of Brazilian composers since the beginning of her career. In my opinion, a mandatory reading for music lovers and in special for students, since it makes clear that nothing can be accomplished without practice, discipline and hard work.

 


Um duo exemplar

Não nos tornamos poetas a partir de uma manhã primaveril,
mas sim pela exaltação do poema.
André Malraux

Quando do curso que ofereci em Goiânia sobre a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau, em Setembro, tive o grato prazer de estar com a pianista Ana Flávia Frazão, professora da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Ofereceu-me DVD e CD em que apresenta, com o violinista alemão Laurent Albrecht Breuninger, obras importantes do repertório específico: Heitor Villa-Lobos, “Segunda Sonata-Fantasia”; Edino Krieger, “Sonâncias”; Henrique de Curitiba, “Sonata 87″ e  Camille Saint-Saëns, “Sonata op. 75 nº 1″.

Não poucas vezes neste espaço ressaltei a prevalência que existe de gravações realizadas em centros importantes do hemisfério norte. Há toda uma tradição voltada à arte de gravar, que vai desde a grande especialização dos engenheiros de som às salas escolhidas sob o aspecto acústico, à presença sempre de instrumentos – no caso o piano – de primeiríssima qualidade e o profissionalismo inerente a todos os envolvidos no processo. Essas também são as razões que me levam a gravar na Europa desde 1995. Não há parâmetro comparativo com o que temos no Brasil, apesar de esforços e da maior boa vontade dos envolvidos nesse mister. Sob outro aspecto, se oportunidade houver para o pianista brasileiro (no caso) estabelecer vínculos com  excepcionais instrumentistas de países onde a música erudita tem tradição e constância qualitativa, o aprimoramento se tornará mais acelerado devido, inclusive, ao ambiente e à salutar concorrência com maior número de músicos relevantes.

De há muito admiro a arte pianística voltada à música de câmara de Ana Flávia Frazão. Tive o prazer de participar do júri, juntamente com as ilustres professoras Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005) e Glacy Antunes de Oliveira, quando do ingresso de Ana Flávia na carreira docente junto à EMAC-UFG.  Já se apresentava como uma camerista de altíssima qualidade. Estudou em Goiânia com Ivana Carneiro e, na EMAC, na classe da professora Consuelo Quireze, tendo igualmente recebido a colaboração do pianista Luiz Medalha. Ana Flávia Frazão aperfeiçoou-se na Alemanha, de 1994 a 2002, como aluna da Escola Superior de Música de Karlsruhe. Na categoria Piano-Música de Câmara obteve a nota máxima no Konzertexamen.  Premiada em concursos internacionais, Ana Flávia já se apresentou no Japão, Estados Unidos, Europa, Argentina e em vários centros brasileiros.

Quanto ao violinista Laurent Albrecht Breuninger, trata-se um de instrumentista notável. Após estudos com Josef Rissin na Escola Superior de Música de Karlsruhe, aperfeiçoou-se com mestres absolutos: Henryk Szering, Ruggiero Ricci, Aron Rosand e Ivry Gitlis. Em 1997 obteve o segundo prêmio num dos mais importantes concursos do planeta, o Rainha Elizabeth, na Bélgica. Colecionou vários primeiros prêmios em outros significativos concursos na Europa e no Canadá.

Tive o grato prazer de ouvir e ver o DVD com as obras que também constam do CD mencionado. Encantou-me em todos os sentidos. Formam um duo rigorosamente entrosado e exibem, durante o transcurso do programa, todas as qualidades excelsas que encontramos nos mais destacados duos internacionais. Lirismo, virtuosismo abrangente sem jamais exceder os limites, fraseado impecável, senso profundo da agógica, da acentuação e da dinâmica, compreensão formal e estilística e, fundamental, a naturalidade sem qualquer artifício são algumas das muitas virtudes do duo.

Apraz-me considerar que Ana Flávia soube transmitir a Laurent Albrecht o gosto pela camerística brasileira. Independentemente da integral para violino e piano de Villa-Lobos, por eles gravada em 2012, constam do CD em apreço outras obras de autores pátrios significativos. Considere-se que pouco a pouco a qualitativa música de câmara brasileira penetra nos repertórios internacionais. Menciono a mesma integral de Villa-Lobos, anteriormente gravada pelo excelente violinista belga Paul Klinck com outro laureado no Concurso Rainha Elizabeth ao piano, Claude Coppens (Anvers, 1996). Em 1995 gravei em Bruxelas, para o selo PKP, a integral de Henrique Oswald para violino e piano com Paul Klinck.

A gravação de Ana Flávia e de Laurent Albrecht apreende todos os quesitos encontráveis na magnífica “Sonata-Fantasia nº 2″,  de Villa-Lobos. Uma plasticidade no tratamento da frase musical é explícita. Sob o aspecto de entrosamento, a impecabilidade mostra-se evidente entre os dois instrumentistas e corrobora a afirmação que ouvi certo dia, do renomado compositor mexicano Mario Lavista (1943- ), de que não é necessário usar um sombrero e enorme bigode para afirmar-se nascido no México. A compreensão de Laurent Albrecht da anima brasileira é integral.

Ninguém melhor do que o próprio compositor Edino Krieger (1928-  ) para opinar sobre a gravação de sua obra “Sonâncias II”: “É um privilégio para um compositor ter uma obra executada e perpetuada em CD por instrumentistas excepcionais como o violinista Laurent Albrecht Breuninger e a pianista Ana Flávia Frazão. Eles aliam à perfeição virtuosística da técnica uma compreensão musical que valoriza o conteúdo expressivo da obra”. “Sonâncias II”, composta em 1981, explora inúmeras capacidades do violino e do piano. Krieger entende-a como “uma grande cadência virtuosística em tempo livre, sem barras de compasso”. Há, em determinados trechos apontados na partitura, a intervenção livre do pianista. Sob outra égide, “Sonâncias” desenvolve-se nos limites extremos da dinâmica, mormente nos limites dos ffff dos clusters ou em momentos introspectivos nas baixas intensidades.

De Henrique de Curitiba (1934-2008) o duo apresenta a “Sonata 87″, dividida em três andamentos; “Allegro – de batuque”, “Lento e cantabile – de toada”, “Vivace – de xaxado”. A “Sonata 87″ (composta em 1987) é  estabelecida na pulsação, e a obra evolui ricamente a expor – os títulos assim demonstram -, a diversificação rítmica. Maiúscula interpretação da significativa “Sonata 87″. A versão para violino e piano deriva de composição anterior, a “Suíte Brasileira”, vertida para vários conjuntos camerísticos. Henrique de Curitiba é um desses nossos compositores que estariam a merecer divulgação maior. É triste verificar que alguns dos mais destacados criadores brasileiros são praticamente esquecidos post mortem.

A magnífica “Sonata op. 75, nº 1 em ré menor”, de Camille Saint-Saëns (1835-1921), finaliza o CD. Um dos maiores compositores do período, extraordinário pianista, primeiro verdadeiro globetrotter como músico, percorreu o mundo a tocar, inclusive no Brasil, onde se apresentou em duo pianístico com Henrique Oswald (1852-1931) aos 5 de Julho de 1899 no Salão Steinway em São Paulo. De sua vastíssima obra, destaca-se também a camerística. Compositor que percorreu parte da longa era romântica, tem inclinação ao virtuosismo não desprovido de intensa expressividade. A belíssima “Sonata op. 75 nº 1″ (1886) traduz esse envolvimento. Uma das melhores obras do período, tem todos os ingredientes para ser muitíssimo mais divulgada. Contudo, mercê dos repertórios repetitivos que se prolongam através das décadas, o público geralmente tem de ouvir a Sonata para violino e piano de Cesar Franck. Extraordinária obra, mas não única. A interpretação do duo Breuninger-Frazão da criação de Saint-Saëns é simplesmente empolgante, da mais absoluta qualidade.  O leitor poderá ouvir, ao acessar o link, o “elétrico” Allegro molto da Sonata op. 75 nº 1 de Camille-Saint-Saëns. A gravação foi realizada no interior da Escola Superior de Música de Karlsruhe, na Alemanha. Desnecessário ratificar sua qualidade.

Clique aqui para ouvir o Allegro Molto da Sonata op.75 no.1, de Camille Saint Saëns, com Laurent A. Breuninger ao violino e Ana Flávia Frazão ao piano. Gravação realizada na Alemanha, divulgada no CD “Sonâncias”.

Na longa conversa que mantive com Ana Flávia no mês de Setembro em Goiânia, após meu recital na cidade, mostrou-se ela com intenção de gravar a “Sonata” para violino e piano de Henrique Oswald, conhecedora da gravação que Paul Klinck e eu realizamos. Encorajei-a nesse sentido e vou propor-lhe uma excelente obra do período, a “Sonata Saudade”, de Óscar da Silva (1870-1958), compositor português de mérito e pianista virtuose, para compor, quem sabe, um belíssimo CD, pois há certa identidade entre as duas composições.

Aos 78 anos não mais tenho necessidade de causar melindres em afirmações. Contudo, acredito que Ana Flávia Frazão se apresenta hoje como a nossa mais representativa pianista dedicada à música de câmara, comparável, dúvidas não tenho, aos nomes mais significativos em termos mundiais. Quanto a Laurent Albrecht Breuninger, simplesmente um violinista da mais alta qualidade. Um Mestre.

My comments on the CD of the violin-piano duo formed by Laurent Albrecht (violin) and Ana Flávia Frazão (piano) with works by Camille Saint-Saëns, Edino Krieger, Henrique Curitiba and Villa-Lobos. I found it an extraordinary achievement in terms of artistry and technical qualities. The remarkable German violinist Laurent Albrecht Breuninger is a second prize winner in 1997 of the Queen Elizabeth Competition held in Brussels, and pianist Ana Flávia Frazão, first prize at the chamber ensemble competition in Kyoto in 2001, is in my view the best chamber music pianist in Brazil today.