Gyovana de Castro Carneiro e a relação amorosa com um tema

Damo-nos valor por o que pensamos,
em vez de por o que fazemos.
Esquecemos que o não fizemos, não o fomos;
que a primeira função da vida é a acção,
como o primeiro aspecto das coisas é o movimento.
Fernando Pessoa

Inúmeras foram as vezes em que me deparei com recém-mestres ou doutores. Tenho por hábito formular a mesma pergunta relacionada à continuação das pesquisas sobre os temas que os levaram à defesa de dissertações e doutorados. Com desapontamento escrevi em muitos posts sobre abandonos voluntários de pesquisas por parte de mestres e doutores que até se mostravam, hélas, “libertos” de temas que prefeririam doravante esquecer. Trata-se de posição vergonhosa, tantas e tantas vezes nesse espaço comentada e que persiste como chaga à nossa vida acadêmica. Os almoxarifados das universidades estão repletos de dissertações e teses que jamais serão consultadas, pois faltou o verdadeiro espírito que leva às obras bem feitas e, a preponderar, a relação amorosa com a pesquisa. Envolvimentos superficiais, unicamente com propósito de ascensão na vida universitária, só podem resultar no equívoco. E os Congressos sobre Música no Brasil não estão plenos de papers com o objetivo preciso de obter pontos nos currículos? Bolsas de estudo, que deveriam tantas vezes merecer destinação outra, são distribuídas generosamente por parte do Estado e de Fundações diversas, mas sem longo e rigoroso controle pós-defesa, para que o desacerto não se acentue e trabalhos acadêmicos, nascidos estiolados, não proliferem. Competiria aos outorgantes observar através dos anos o desenrolar de vidas acadêmicas dependentes de auxílio e os resultados das pesquisas beneficiadas.

A cáustica premissa se faz necessária, pois tive o grato prazer de participar de tese de doutoramento, na Universidade Nova de Lisboa, defendida pela Profª. Gyovana de Castro Carneiro, da Universidade Federal de Goiás. Sua tese, sob o título “A prática do Piano a Quatro mãos no Brasil de 1808 a 1889″, é inédita em nossa vida acadêmica. Antolha-se-me que a observância da trajetória da professora Gyovana apresenta-se como antítese ao exposto anteriormente. Desde o curso de Bacharelado em Instrumento – Piano, na Universidade Federal de Goiás, a professora se dedica ao repertório específico. Realizou monografia no Curso de Especialização em Música Brasileira, sob o título “Música para piano a quatro mãos de cinco compositores brasileiros vivos” (2000) e dissertação de Mestrado em Música na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, a ter como título “Momentos brasileiros para piano a quatro mãos de 1900 a 2000″ (2004). Evidente que o acervo cultural adquirido e o aprofundamento notório levaram a professora a escolher tema de doutoramento mais complexo, pois difícil foi chegar às fontes encontradas no Brasil e em Portugal. Obteve a Profª. Gyovana precioso material documental ao longo de mais de três lustros, o que fez com que sua tese tivesse o peso para a apreciação de júri da maior competência. A tese foi orientada pelo notável Prof. Paulo Ferreira de Castro, da Universidade Nova, um dos nomes referenciais da musicologia em Portugal. Compunham o júri o ilustre Prof. David Cramer, também da Universidade Nova, a Profª e pianista da Universidade de Aveiro, Helena Marinho, a Profª e pianista titular aposentada da UFG, Glacy Antunes de Oliveira, e eu, sob a presidência da respeitada Profª Salwa Castelo Branco.

A tese, dividida em três partes, abordou inicialmente a “introdução” do piano a quatro mãos no Império, com a chegada de D.João VI e parte da corte portuguesa ao Rio de Janeiro (1808), assim como a presença de ilustres músicos vindos logo após, como Marcos Portugal (1762-1830) e Sigsmund Neukomm (1778-1858), entre outros, que souberam transmitir aos membros do séquito real e à aristocracia em torno fundamentos musicais e igualmente a prática do piano a quatro mãos. D. Pedro I praticou o gênero e chegou a compor para essa disposição, incluindo clarineta. Numa segunda parte foi abordado o período que se estende de 1831 ao fim do Império, em 1889, quando a vinda de outros músicos estrangeiros corroborou a prática do piano a quatro mãos. A importação se acentua – o Brasil foi o terceiro maior importador de partituras da França na década de 1830 – e a edição de obras para piano edificaria o pianista e compositor português Arthur Napoleão (1843-1925), que viveu muito tempo no país. O ensino de música floresce, estabelecimentos voltados ao aprendizado musical são criados, eventos como saraus e outras apresentações proliferam e a prática do piano a quatro mãos se estende à burguesia, mormente entre as mulheres, que encontravam na música um dos alicerces da boa educação.

Independentemente de todo um processo recente e sistemático a denegrir a vinda da corte portuguesa ao Brasil, e livro que teve sucessivas edições no país a contar história distorcida da realeza, a Profª. Gyovana, a certa altura em sua sustentação, posicionou-se com clareza, colocando questão fulcral: como estaríamos musicalmente sem a vinda de parte da corte portuguesa ao Rio de Janeiro? Fato que nos leva a reflexões. Uma terceira parte foi dedicada à análise de diversas peças escritas para piano a quatro mãos no período. Basicamente descritiva, o repertório escolhido revelou parcela considerável de obras que eram transcritas para piano a quatro mãos, como o Hino Nacional Brasileiro, de Francisco Manuel da Silva (1795-1865); a Marcha Imperial para piano a quatro mãos e clarineta, de D. Pedro I (1798-1834); a Simphoniette em ré menor, de Henrique Oswald (1852-1931); o Batuque, de Alberto Nepomuceno (1864-1920); a Paysage, de Francisco Braga (1868-1945) e outros.

Considere-se que o piano a quatro mãos, de importância fundamental, mormente no aprendizado do jovem pianista, tem sido negligenciado não apenas pela grande maioria dos músicos, como também pelos aspirantes à carreira pianística. Poderia ser visto por estes como um “empecilho” que os distrairia do “grande” repertório. É fato. Quando intérpretes consagrados realizam performances a quatro mãos, fazem-no, quase sempre, como uma descontração. Também é fato.

A tese da Profª. Gyovana vem demonstrar que obras para quatro mãos tiveram importância fundamental no aprendizado e no aprimoramento do gosto musical durante os dois últimos séculos, da realeza à vida republicana, servindo inclusive para percepções multum in mínimo de composições camerísticas, corais ou orquestrais. Quantas não foram as gerações do passado que tiveram conhecimento de obras importantes para conjuntos através dessas pormenorizadas transcrições destinadas a quatro mãos? Repertório e prática que descortinaram vocações, pois não foram poucos aqueles que adquiriram certezas após a prática salutar a dois, tanto para desenvolvimento individual como coletivo?

Acredito firmemente que, após revisão dos vários trabalhos acadêmicos da Profª. Gyovana, um imprescindível livro poderia advir, a abordar o repertório a quatro mãos de 1808 aos nossos dias, catalogando todo o material e ainda encontrando obras ocultas, não só do Brasil como estendendo-se à produção portuguesa. São pouquíssimos os duos brasileiros de mérito, preferenciando os pianistas a prática do repertório a dois pianos, mais virtuosístico e que revela, por que não asseverar, aplausos mais efusivos. Esquecer por vezes os egos na divulgação repertorial é no mínimo salutar.

Se a tese tem real mérito, ressalte-se a exemplar sustentação realizada pela Profª. Gyovana. Mercê de repertório que lhe é familiar desde a juventude, revelou a postulante ao doutorado absoluto domínio em todas as suas respostas, a se considerar, inclusive, a admissão de determinadas incorreções existentes, fato presente e “humano” na grande maioria das teses. Ressaltou o ilustre Prof. Paulo Ferreira de Castro que a sustentação de uma tese é de suma importância na avaliação do todo e reveladora da segurança e competência do postulante.

Aprovada com o grau máximo outorgado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a agora Doutora Gyovana de Castro Carneiro tem do que se orgulhar, e a Universidade Federal de Goiás merece parabéns por ter em seus quadros uma professora que deverá formar gerações de alunos voltados à prática pianística específica.

On the PhD thesis (The practice of piano four-hands in Brazil from 1808 to 1889) defended in Lisbon by Gyovanna de Castro Carneiro, from Universidade Federal de Goiás, where she has a teaching position. Addressing the subject from historical and practical viewpoints, the work has shed some lights on the often neglected repertoire for piano four-hands, stressing its importance for piano practicing and in confirming an inclination to follow a career. As a member of the examination board, I may say it was a great example of a professional with a lifetime involvement with the subject of her dissertation, a reflection of Gyovanna’s commitment to her research field.