Heitor Rosa e a ficção embasada em personagem de nossa História ligada à Arte Sacra
Do trilho só entende quem o trilha.
Adágio Popular Açoriano
A literatura ficcional tem características próprias. Decorre da livre fantasia do autor, tanto na criação de personagens imaginários como na ressurreição de “biografados” cuja documentação é escassa ou inexiste. Quando o autor busca a ficção estruturada em figuras da História, o cuidado toma dimensões por vezes hercúleas. Em situações rigorosamente distintas, Humberto Eco em “O Nome da Rosa” e a trama em mosteiro medieval, Marguerite Yourcenar em “Memórias de Adriano”, numa recriação, e Jean Echenoz na fantasia sobre o cotidiano real em “Ravel”, como exemplos meritórios, percorrem essa senda que, a depender do talento e da seriedade do autor, pode ser enriquecedora ou levar ao vulgar simulacro.
A biografia fidedigna de figura relevante dificilmente deixa de ter cunho austero, pois amarras impedem quase sempre o florescimento da imaginação. Se essa ocorre sem fundamentação, pode-se chegar ao equívoco histórico, pernicioso sob todos os aspectos. Personagens da História com larga bagagem documental têm de ser tratados com merecido rigor, e não poucas vezes o debruçamento sobre fontes primárias e outras levam o autor ao impasse, geralmente resolvido com abundantes notas de rodapé ou mesmo considerações a respeito das controvérsias existentes.
A ficção pela ficção só adquire interesse se talento existir por parte do autor. A grande dificuldade da ficção “histórica” reside no peso da narrativa. Tantos foram os escritores que se embrenharam nessa seara absolutamente desprovidos de conhecimento até básico da figura representada ou de épocas definidas. E grotescos erros ficaram evidentes.
Tenho acompanhado a literatura do ilustre médico e professor universitário goiano Heitor Rosa, escritor pleno de méritos. Resenhei anteriormente “Memórias de um Cirurgião Barbeiro” (vide blog de 10/09,2016). Para tratar da figura do notável Girólamo Fracastoro (1478-1553), médico, humanista, poeta e filósofo italiano, Rosa teve de pesquisar longamente fontes europeias in loco, a fim de colher dados referentes à ação de Fracastoro, período em que viveu, instrumental cirúrgico, medicamentos utilizados na época e sobre a sífilis, que dizimava paulatinamente gerações.
O novo livro de Heitor Rosa, “A História de André da Conceição” (Goiânia, Cânone, 2017), aborda área acalentada pelo povo goiano. Ao adentrar a seara da denominada arte sacra barroca de Goiás, que vigorou basicamente dos meados do século XVIII à segunda metade do século XIX, legando igrejas, capelas, pinturas e imagens de extraordinária valia, mercê sobretudo do despojamento, a contrastar com o que foi criado em Minas Gerais e Bahia, Heitor Rosa concentrou-se na Igreja São Francisco de Paula da antiga Vila Boa, posteriormente cidade de Goiás. Erigida em 1761 por Antônio Thomaz da Costa e outros personagens, teve o forro da capela-mor pintado por André Antônio da Conceição em 1869-70, segundo livros da Irmandade. Escreve o pesquisador Eduardo Etzel em livro memorável – “O Barroco no Brasil – Psicologia – Remanescentes” (São Paulo, Edusp-Melhoramentos, 1974) – em que estuda manifestações do barroco em regiões menos favorecidas (vide blog ” Eduardo Etzel – II, Literatura sobre Arte Sacra no Brasil”, 25/08/2007): “Chama a atenção nesta igreja o forro todo pintado, que se poderia considerar do século XVIII, não fossem as provas encontradas nos livros da irmandade. Tal fato mostra, ainda uma vez, como é difícil afirmar a época do acabamento das obras religiosas, salvo a data do início da construção, pois na vida de uma igreja, conta-se o início pela terminação, às vezes parcial, do arcabouço, o suficiente para comportar um altar improvisado. Daí para seu acabamento podem-se passar decênios, sem falar em reformas consequentes a desmoronamento, acréscimos e mesmo modificações estruturais, que deformam inteiramente a construção primitiva. É preciso não esquecer estes elementos quando se julga o estado atual de uma igreja, e o exemplo da São Francisco parece-nos bastante incisivo, pois o forro fora pintado 108 anos após a data de sua construção”.
Heitor Rosa ficou impactado pelo forro da capela-mor, a apresentar cenas de milagres atribuídos a São Francisco de Paula e pelas iniciais do pintor dessa modesta igreja, AACD. Quis conhecer mais sobre o artista e escreve na Introdução: “Quem foi ele? Resposta; ninguém sabe.” Seguiram-se anos de pesquisa relacionada à pintura do forro, materiais utilizados, costumes do período, poder vigente de coronel e da autoridade eclesiástica dessas pequenas vilas, a sociedade que, encerrado o ciclo do ouro, permanecia na esfera rural, as desavenças das várias irmandades, os lupanares existentes, os trajetos da antiga Vila Rica em Minas Gerais à Vila Boa em Goiás, em que ataques de índios, de quilombolas ou mesmo de onças eram comuns. Faltava erigir o herói e Heitor trabalhou em sua “ressurreição”, a “história” de André Antônio da Conceição.
Dados históricos paralelos servem de suporte à ficção que acompanha André Antônio da Conceição, mulato, como tantos outros artistas que, principalmente a partir do século XVIII, criaram obra sacra de qualidade em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Dá-lhe olhos azuis, o que evidenciaria a ascendência paterna diferenciada. No romance, André adquire conhecimentos básicos de desenho, pintura e restauração em Vila Rica, onde mora e exerce várias funções junto a uma paróquia. Contudo, problemas relacionados à ligação passional com prostituta que ficaria grávida, mais desconfianças que sobre ele recaem injustamente, concernentes ao roubo de obras sacras, fazem com que empreenda, com um companheiro experiente, longa viagem da cidade mineira até Vila Boa, hoje cidade de Goiás. Heitor Rosa conheceu esses trajetos, por vezes perigosos.
Um dos interesses de “A História de André da Conceição” reside na descrição dessa travessia. Aldeias e vilas são descritas com suas particularidades e André da Conceição se detém mais tempo em algumas, pois, tão logo conhecidos seus dons como pintor e restaurador de igrejas, realizava alguns trabalhos para angariar dinheiro para a continuação da saga. Heitor pesquisará a alimentação do período, mencionando sempre a econômica variação durante as andanças de André e de seu companheiro.
O destino final, Vila Boa, onde se encontra a Igreja São Francisco de Paula, cujo forro sem pintura da capela-mor e um altar-mor a ser reformado levam à contratação de André por irmandade local. A ficção une-se à verdade e as iniciais de André Antônio da Conceição conduzem ao motivo maior do enredo. Sob outra égide, o herói da ficção dialoga com o mentor da Irmandade, maçom, sobre o desejo deste de ver pintado o símbolo maçônico, sendo que André teria entendido tratar-se da Santíssima Trindade. Um pequeno trecho da pintura do forro, não finalizada, possibilita ao ficcionista Heitor Rosa o desfecho derradeiro do instigante livro, que desperta interesse da primeira à última página.
Ao resenhar “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” e peripécias em “Histórias da Creusa” (vide blog 26/10/2016), salientava os dons excepcionais do ficcionista estudioso e do contista hilariante. A mídia de São Paulo, que tanto tem saudado e premiado ficcionistas medianos, lembrar-se-ia de um autor do porte de Heitor Rosa? Ares da Província ainda permanecem no ar.
Today’s post is an appreciation of the book “A História de André da Conceição”, written by the Brazilian doctor and university teacher Heitor Rosa. It is about André da Conceição, who painted the chancel ceiling of Saint Francis of Paula church in Goiás in the years 1869-70 and whose life story is completely unknown. Fascinated by the paintings, after years of serious research Heitor Rosa was able to weave factual details and fictional characters into an interesting account of what the painter’s life might have been like. An absorbing, seductive read by an author that deserved to gain traction in the mainstream of our literary world.