Digressão a ler lembrada
Se te não decidires a resolver tudo,
acabarás por não resolver nada.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)
Ao longo dos anos tenho ressaltado preferências musicais e países que fazem parte de meu universo de afetos. Curiosamente, a partir dos anos 1970 voluntariamente escolhi caminho a seguir. Nunca abandonando por inteiro o repertório sacralizado, considerava àquela altura que há muita música praticamente olvidada e outras tantas a serem criadas na excelência e obedecendo a tendências várias, algumas decorrentes da tradição e inúmeras rompendo definitivamente com raízes sedimentadas há séculos. Só não aderi às criações hodiernas oriundas de escolas radicais que, não poucas vezes, têm forte conteúdo ideológico. O livre arbítrio ainda é um norte seguro para o prosseguimento da caminhada sem amarras.
Também exaltei em muitos blogs que jamais poderia me adequar à denominada carreira pianística, tão almejada por postulantes que têm suas razões para assim pensar. Considero-me um low profile. Sem jamais abdicar da apresentação qualitativa, não me sentiria confortável em ter seguidamente de estar em hotéis pelo mundo, ser recebido por um agente de organização promotora, tocar sempre o repertório sacralizado, arrumar as malas e prosseguir. Adoro fincar raízes humanas, retornar às cidades exigentes, mas sentir o calor de uma boa conversa amiga nos momentos de descontração. Estava a me lembrar da peça de Arthur Miller (1915-2005), “A Morte do caixeiro viajante”, a que assisti com meus pais na interpretação do grande Jaime Costa (1897-1967). Meu pai, ao chegar ao Brasil, também foi um caixeiro viajante, visitando cerca de 500 cidades brasileiras a representar firma francesa de produtos para perfumaria. Ao se casar, fixando-se em São Paulo, tornou-se um extraordinário vendedor, jamais desprezando a formação cultural dos quatro filhos e enraizando-se definitivamente em nossa cidade. Seriam talvez seus relatos que penetraram minha mente e que me desviaram certamente de uma carreira convencional que se apresentava promissora.
Apesar de dezenas de viagens à Europa, ultimamente sintetizei as escolhas. Portugal, Bélgica e França são meus afetos e países onde me sinto em casa. Sedentário pois, e minha cidade-bairro é sempre meu destino final. Escrevi nos três últimos blogs que faria um relato das apresentações realizadas em Portugal e Bélgica. Adoro tocar nesses países e verificar entre o público músicos notáveis. Tornam-se o termômetro do estímulo, ajudam-nos a crescer e a buscar a qualidade maior, sempre.
Em Guimarães, o Festival Internacional de Música Religiosa foi extraordinário. Realizado durante toda a semana Santa, estendeu-se oficialmente de 8 a 16 de Abril, apresentando obras referenciais do canto gregoriano à atualidade. Tive o prazer de assistir a alguns concertos corais de valor inestimável. Na manhã do sábado de aleluia, dia 15, dei palestra a abordar “Música como Missão” na sala da Fundação Martins Sarmento. No final da tarde deu-se o recital unicamente com obras voltadas à religiosidade, das Sonatas Bíblicas de Johan Kuhnau (1660-1722) às Profecias em forma de Estudo de Almeida Prado (1943-2010) e à Missa sem Palavras de Eurico Carrapatoso (1962- ), passando pelo romantismo inerente nas duas Légendes franciscanas de Franz Liszt (1811-1886). Público numeroso e receptivo nas duas atividades. O ilustre Eurico Carrapatoso fez-se presente para meu gáudio. Louve-se a magnífica organização de todo o Festival, a cargo do ilustre Professor José Maria Pedrosa Cardoso, que em todos os eventos realizava competentes esclarecimentos ao público. Sob aspecto outro, foi a primeira vez que me apresentei em Guimarães, cidade que conhecia, sempre de passagem. Devido aos eventos, nela permaneci com minha mulher Regina e a neta Valentina durante vários dias, hospedados na bela morada de António e Anita Cardoso, generosos anfitriões.
Desde 2004 apresentei-me várias vezes em Coimbra, sendo que na Biblioteca Joanina esta foi a quarta oportunidade. O que dizer do magnificente espaço para um recital!!! O piano em frente ao exuberante quadro a óleo da figura lendária de D.João V. Um prazer inominável apresentar-se nesse recinto mágico diante de um público que lotou a Biblioteca. Fora do contexto religioso, interpretei obras de Carlos Seixas (1704-1742), compositor conimbricense, Francisco Mignone (seis Estudos Transcencentais), François Servenière (1961- ), Claude Debussy (1862-1918), Franz Liszt e Alexander Scriabine (1872-1915). Uma alegria ter estado com o ilustre professor João Gouveia Monteiro e sua esposa Leonor. Fui presenteado com o livro “Guerra e Poder na Europa Medieval – Das Cruzadas à Guerra dos 100 anos”, obra caudalosa coordenada pelo notável medievalista (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015).
Creio que foram dez apresentações em Évora ao longo dos anos. O recital no Convento Nossa Senhora dos Remédios, sob a égide da Eborae Musica, revestiu-se de intensidade. Ao final, recebi o vídeo do recital inteiro, muito bem gravado pelo especialista Gavela nessa bela igreja, hoje não mais destinada ao culto, mas a guardar os símbolos e as imagens da Igreja Católica Romana. Évora é cidade singular no imenso Alentejo. Fomos guiados pela ilustre gregorianista Idalete Giga, que apresentou à nossa neta Valentina os mistérios da cidade e o enigmático Cromeleque dos Almendres, cuja construção inicial dataria do VI milênio a.C . e distante de pouco mais de uma dezena de quilômetros da cidade.
No dia 24 fui entrevistado em Lisboa pelo competente Paulo Guerra na RDP (Antena 2). Ao vivo, apresentamos durante meia hora obras constantes do CD “Éthers de l’Infini” – Études Contemporaines pour piano (selo Esolem), que seria lançado no dia 27 em Gent, na Bélgica. No próximo blog escreverei sobre o CD.
Gent. Quantos não foram os blogs sobre essa cidade, das mais queridas pelo intérprete, pois lá gravei meu primeiro CD no Exterior no longínquo 1995. Visitei-a mais de vinte vezes, sempre a tocar ou a gravar. Amizades sólidas apenas aguçam a vontade de estar em Gent. O recital, realizado no belo espaço da organização Quatre Mains, a aconchegante sala August De Schrijver, teve a afluência que eu desejaria ter. Entre amigos que cultivei na belíssima cidade, lá estavam quatro compositores ilustres: Raoul de Smet (vindo de Antuérpia para o recital), Daniel Gistelinck, Lucien Posman, assim como François Servenière, que veio de Le Mans, na França, para o lançamento do CD “Éthers de l’Infini”, que gravei em Mullem na igreja Saint-Hilarius na planura flamenga em 2015 e que foi produzido na França, sob a orientação plena de Servenière. Foi uma intensa alegria tocar diante de compositores de extraordinário mérito. Finda a apresentação em Gent, ainda tive o prazer de longas conversas com os compositores mencionados. Presentes também André Posman, dirigente da De Rode Pomp, hoje não mais em atividade. Nossa relação sempre foi profunda em torno dos recitais e gravações na De Rode Pomp. Finalmente, Johan Kennivé, um dos mais esplêndidos engenheiros de som do planeta. Quantos não foram os CDs gravados sob sua competente assistência! Dos 23 gravados no Exterior, 18 estiveram sob seus cuidados durante as longas noites de registros fonográficos, em Mullem.
No dia seguinte ao recital, despedi-me de Servenière e de sua graciosa filha Ambre, que completara 13 anos no dia anterior. Duas comemorações, pois Regina e eu comemorávamos 54 anos de casamento. No hotel onde se encontravam, Servenière e eu ainda tivemos tempo de jogar pimbolim ou matrecos. Ele com sua filha e eu só, pois Regina e Valentina chegaram após para as despedidas. Foi quando uma gentil moça grega, vendo-me enfrentar os dois, ajudou-me. Assim mesmo perdemos, pois já estava em desvantagem.
A presença da quarta neta, Valentina (16), foi deliciosa. Queria tudo aprender: história das cidades, conjuntos arquitetônicos medievais e barrocos, costumes da cidade… Falando perfeitamente italiano e bem em inglês, interagiu totalmente em Gent.
A música tem também esses encantos. Se tocar é para mim uma alegria que já perdura desde 1946, estreitar relações a partir da origem sonora leva-me a pensar nessa Missão, tema de minha palestra em Guimarães. O ímpeto de Valentina e a serenidade de Regina alegraram o velho intérprete. Já tenho planos para 2018 em terras europeias. Enquanto houver fôlego…
This post sums up the main events of my recent trip to Portugal — with recitals in Guimarães, Coimbra and Évora — and Belgium, where my performance in the city of Gent on 27 April was followed by the launch of the CD “Éthers de l’infini”, which will be the subject of my next post. In addition to music, I was delighted to meet old friends, exchange ideas and enjoy the simple pleasure of being connected with others.
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